ALMEIDA,
Leandro Thomaz. É necessário queimar os hereges. São Paulo: Fonte Editorial,
2014.
Concomitante
ao livro Nazismo e Cristianismo, estava também lendo e apreciando essa obra,
que traz um tema e um texto inédito sobre os eventos que fizeram parte da
Reforma Protestante do século XVI.
Muito se
fala e se lê sobre Lutero e Calvino – mas sobre Sébastien Castellion, apenas
tinha visto poucas páginas dedicadas a ele em alguns livros biográficos sobre
João Calvino.
De acordo
com o Leandro Thomaz de Almeida (Ph.D em Letras na Unicamp), seu interesse
surgiu em pesquisar essa figura pouco conhecida da Reforma Protestante, quando
estava fazendo estudos do seu Doutorado na França, e acabou descobrindo por lá,
os documentos referentes a Castellion e sua atuação religiosa e apaziguadora
nos anos loucos do século XVI.
Castellion
foi um homem a frente de seu tempo que teceu criticas ajuizadas e certeiras
contra Calvino e Beza, reformadores de Genebra, que foram coniventes com a
morte na fogueira de Michel Servetus, um homem que ousou pensar diferente. E
não apenas isso, Castellion, em cartas e livros apelou para a tolerância às
ideias divergentes, não impondo sobre seus discordantes a pecha de hereges ou
de caluniadores de Deus.
“Lembremo-nos que nessa época,
ideias levavam à morte, livros podiam ser passaporte à fogueira e mesmo
afirmações que lançassem uma centelha de dúvida sobre o pensamento ortodoxo
podia ser sinônimo de degredo perpétuo”. P. 33.
Para muitos
protestantes e católicos nada mais nada menos que a morte na fogueira e de
quebra, a eternidade no INFERNO DE FOGO sofrendo os suplícios flamejantes ali
presentes, estavam reservados para os que divergissem de seus pontos de vista.
Questiúnculas bestas (para eles, era da maior importância, menos para
Castellion), tais como se o batismo deve ser ministrado às crianças ou não, era
suficiente para se criar um real inimigo e, assim, tentar destruí-lo, caso não
abandonasse as suas ideias.
Almeida
dispara:
“Os dois maiores nomes da Reforma Protestante
aboliram a autoridade papal e logo em seguida cuidaram de estabelecer outra: as
suas próprias. Lutero perseguiria os anabatistas, Calvino os hereges, assim
chamados [...] não necessariamente por não desejarem seguir as Escrituras, mas
por não fazê-lo segundo a opinião do mestre [Lutero ou Calvino]. Destronado o
papa enquanto figura de autoridade, outras foram erigidas, mas com um
agravante: disfarçadas, agora, sob a propaganda do livre acesso à Bíblia, sob
um suposto contato direto com a Palavra de Deus”. P. 96.
E hoje
continua da mesma forma. Milhares de igrejas evangélicas, se dizendo guardiãs
da “sã doutrina”, são campeãs em condenar os outros a fogueira. Muitos líderes,
se possível, mandariam para a forca os que lhe contradizem. E tudo isso, usando
os supostos textos-provas da bíblia.
Em uma
severa e contundente crítica ao fanatismo e fundamentalismo religioso tão
presente na Europa do século XVI (os anos turbulentos da Reforma Protestante),
Sébastian Castellion, um dos reformadores, traduz corretamente como um suposto
herético era muitas vezes identificado:
“Certamente, após ter
frequentemente procurado o que é um herético, não encontro outra coisa senão
que estimamos heréticos todos aqueles que não concordam conosco em nossa
opinião”. P. 113.
Em não raras
ocasiões, pessoas eram entregues as masmorras e mortes, por não compactuarem
com as ideias religiosas vigentes em dada região. Isso valia tanto para
territórios católicos como protestantes.
Sébastien
Castellion, em carta endereçada a um príncipe, lhe diz a que pé estava os “seguidores”
de Jesus uns em relação aos outros:
“[...] os Católicos, os Luteranos,
os Zuinglianos, os Anabatistas, os Monges e outros se condenam e perseguem mais
cruelmente uns aos outros, como não se vê nem entre os Turcos em relação aos
Cristãos. Tais ruídos e dissensões não vêm de outro lugar, senão da ignorância
quanto à verdade. [...] Pois isto é certo, que à medida que alguém conhece
melhor a verdade é menos inclinado a condenar os outros”. P. 116.
Ainda em sua
carta endereçada a um certo príncipe, Castellion lamenta a triste situação de
católicos e protestantes no contexto do século XVI:
“Como, no entanto, combatemos uns
contra os outros por ódios e perseguições, vamos cada dia de mal a pior, e não
nos lembramos de nosso ofício, mas estamos ocupados em condenar os outros, de
tal modo que o Evangelho é hostilizado entre os Gentios por nossa falta. Pois
quando eles nos veem correndo uns após os outros furiosamente como bestas, e os
mais fracos serem oprimidos pelos mais fortes, eles têm horror ao Evangelho e o
destetam, como se ele tivesse ordenado tais coisas, e odeiam a Cristo como se
ele tivesse ordenado tais coisas. [...] Pois quem iria querer se tornar Cristão
quando vê que aqueles que professam o nome de Cristo são mortos por Cristãos,
pelo fogo, pela água, pela espada, sem qualquer misericórdia, e tratados mais
cruelmente que malfeitores ou assassinos? Quem não pensaria que Cristo não
seria algum Moloque [deus a quem as crianças eram sacrificadas], ou um Deus
qualquer, se ele quer que os homens lhe sejam imolados vivos?” P. 116-117.
Livro
apaixonadamente recomendado. Serve de alerta aos donos da “verdade”. O título desse livro é uma ironia que traduz fielmente o sentimento de muitos pastores ávidos por controlar suas massas e exercer o terror psicológico sobre elas.