CORTELLA, Mário Sérgio; FILHO, Clóvis de
Barros. Ética e Vergonha na Cara. São Paulo: Papiro 7 Mares, 2014. (PDF).
Venho trazer aqui, mais um livro escrito por
dois intelectuais queridinhos do grande público. Acadêmicos populares, que vem
ganhando muito destaque nos últimos anos. Mário Cortella (Doutor em Educação na
PUC-SP) e Clóvis Filho (Doutor em Ciências da Comunicação na USP).
O
livro é basicamente um diálogo super inteligente entre os dois. Concordam em
tudo. Não é debate, não é um confronto de ideias. O tema gira em torno da ética
do cotidiano, como o título já diz.
Num determinado ponto do diálogo, Barros
fala:
“Quando visitamos
empresas, geralmente nos deparamos com o banner de valores. E, em alguns, podemos ler:
HONESTIDADE, CRIATIVIDADE, TRANSPARÊNCIA; em seguida, o invariável: FOCO NO
RESULTADO. Um fato interessante é que a palavra foco inevitavelmente vem acompanhada da palavra resultado, como se fosse uma obviedade. Não sei também se
você, Cortella, já refletiu sobre a bobagem que é fazer uma lista em que um dos
itens tem a palavra foco. Porque nesse
caso ficam anulados os outros itens. Se o oftalmologista diz: ‘Foque a terceira
letra’, todas as outras letras perdem o foco.” P. 13.
As
empresas acabam se contradizendo. O foco
delas é o FOCO. Honestidade e Transparência, em não raras vezes não são os
meios para se chegar ao fim (FOCO). E a Criatividade? Esta é usada para
alcançar o FOCO, sem muita (ou nenhuma) relação com aquelas. Como Barros fala
um pouco antes:
“A lógica do resultado, da meta e do sucesso acaba
se impondo de tal forma que os procedimentos e a maneira de atingir um objetivo
acabam sendo sucateados e colocados como uma questão menor”. P. 13.
Ele pergunta:
“[...] se uma conduta vale em função do seu
resultado, qual é o bom resultado que me autoriza a concluir que agi adequadamente?”
P. 18.
Qual
é a lógica empresarial?
“Não vamos ser hipócritas. A definição dos
resultados é um gesto de poder que deixa bem claro o que importa. E o curioso
no caso das organizações é que elas são muito pouco cínicas e dissimuladoras.
Afinal, o foco é no resultado, só não vê quem não quer. Qualquer outro princípio
é válido desde que não comprometa o princípio maior, que é o do resultado. Enquanto
estivermos apoiados nessa lógica, parece-me absolutamente compreensível que as
pessoas ‘colem’, que comprem as respostas do concurso público, porque fomos treinados
para isso.” P. 21.
Acho
extremamente difícil encontrar uma empresa que trabalhe de maneira totalmente idônea.
Mas diante dos altos impostos cobrados, por exemplo, pelo Estado brasileiro,
fica muito difícil trabalhar na base da Honestidade e Transparência. Qual é a
empresa que nunca sonegou um imposto sequer? Devem todas serem condenadas? Talvez
não. O governo de certa forma estimula-nos a ir contra as leis, quando cobra
demais, e não repassa em infra-estrutura, educação, saúde e segurança, os
impostos recolhidos. Ou melhor dizendo: os impostos que nos são roubados. Bem, os autores não
concordarão com essa minha “defesa” de sonegação de impostos. Seria uma atitude
cínica de minha parte, na visão deles.
A
Ética conforme Barros diz, é transcendente. Nós, humanos, temos a capacidade de
abstração; de racionalização; de introspecção. Não agimos somente por instinto,
como os outros animais. Temos as prerrogativas da escolha.
“O homem transcende a sua natureza. Ele inventa,
cria, improvisa, inova, empreende, pensa em soluções nunca antes pensadas para
situações nunca antes vividas. E tenho a impressão de que, se não se entende
isso, a ideia de ética fica 'capenga'. Porque a ética surge por isso. Ela é a
transcendência em relação à natureza; a necessidade de encontrar caminhos quando
o instinto não responde mais; a necessidade de perceber que vontade não é
desejo, porque vontade, muito mais do que uma inclinação do corpo, é uma
decisão racional, elaborada e criativa sobre para onde queremos ir. E, por
isso, claro está que cabe ao homem fazer o que nenhuma outra criatura mais
precisa fazer, como já mencionei: inventar, criar, improvisar, inovar,
empreender e, sobretudo, refletir sobre a melhor maneira de conviver.” P. 25.
“Ou seja, as relações sociais, os papéis sociais
são o que são, mas poderiam ser
diferentes. Porque não somos regidos pela nossa natureza, podemos
transcendê-la. Devemos transcendê-la.
Devemos sempre buscar, portanto, uma solução de convivência que nos pareça mais
adequada”. P. 26.
Cortella
concorda:
Gosto de refletir sobre isso. Trabalho um pouco
essa ideia que você expôs quando digo que a ética é uma transgressão da
biologia, isto é, uma transgressão da natureza. Toda a ética, no meu ponto de
vista, é transcendental sem ser necessariamente religiosa ou metafísica. Claro
que é possível ter uma ética religiosa ou metafísica, sem dúvida. Aliás, estão
aí os fundamentos kantianos, os fundamentos aristotélicos, os fundamentos
platônicos... até Espinosa vai dar certa fundamentação metafísica à questão
ética. Mas penso que a ética é transcendência nesse sentido rousseauniano que
você usou do ir além-corpo, além-biologia, além-natureza; isto é, ruptura,
estilhaçamento daquilo que é o instinto indomável que nós não temos”. P. 27.
Cortella
conclui:
“Assim, o que nos caracteriza é a possibilidade
que a formiga, o gato e o pássaro não têm, isto é, a possibilidade de escolher
a conduta. Inclusive, escolher errado. E escolher certo ou errado é justamente
o campo da ética como princípio.” P. 27.
Segundo
Cortella, “a
ética implica necessariamente conduzir a si mesmo.” P. 28.
De
onde vem a ideia de que a virtude é algo que por vontade própria escolhemos
fazer? E a ideia de igualdade? Barros responde:
“O que é mais bonito no pensamento cristão – com o
perdão pela ousadia – é a própria mudança da ideia de virtude. Para os gregos,
a virtude é a própria força, é o talento natural, digamos, atualizado. A
virtude é a própria beleza, a própria rapidez, é um atributo da natureza de um
corpo. No pensamento cristão, a virtude deixa de ser isso. Ela passa a ser
aquilo que livremente decidimos fazer com os talentos que são os nossos. Fiz
minha tese de doutorado na França com a ajuda do professor Bourdieu. Eu
conversava com ele e tinha a nítida sensação de que não jogávamos na mesma
divisão, porque seu patamar de intelecção é outro. Ele falava e eu, muito mais
novo, quase um moleque, procurava aprender... O que diria um grego? ‘Há uma
discrepância de virtude porque ele tem uma capacidade intelectiva que você não
terá nunca.’ O que dirá o pensamento cristão? ‘Não é bem assim. Vai depender do
que ele decidir fazer com o talento que é o dele e vai depender do que você
decidir fazer com o talento que é o seu.’ Podemos não perceber, mas isso é
redentor. Porque a própria ideia de igualdade, que é absolutamente fundamental
em qualquer reflexão sobre ética, surge aí. A ética grega é uma ética aristocrática”.
P. 35-36.