LE
GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média: Conversas com Jean-Luc Pouthier. 2º
Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
Le
Goff, consagrado Historiador da terceira geração do Annales, é uma das vozes
mais requisitadas quando o assunto é o período medieval, que tradicionalmente é
recortado entre a queda do império romano do ocidente (476) a conquista de
Constantinopla pelos turcos otomanos (1453). O colapso do império de Roma que
lentamente foi se efetivando com as migrações e invasões bárbaras, finalmente
cedeu a uma nova forma de governo, ou melhor dizendo, governos (os feudos). As instâncias
políticas, sociais, jurídicas, econômicas e religiosas, sofreram progressivas
mudanças, ocasionadas pela fusão entre o modo de ser romano e a cultura
germânica, não esquecendo, é claro, das concepções religiosas/teológicas legadas
pelo cristianismo. O comércio do mediterrâneo não desapareceu, mas declinou
consideravelmente com as migrações urbanas para o meio rural (90% de toda a
população), como resultado da desintegração do Estado romano, que já não podia
controlar as invasões.
Com
o imperador Constantino, a religião do homem da Galiléia passa a ser praticada
sem os entraves do estado (313). Décadas depois com Teodósio, ela passa a ser a
religião oficial do império romano (380). O mundo ocidental europeu começa a se
formar. A igreja católica foi sem dúvida a maior instituição da Idade Média,
controlando a vida de reis, cavaleiros e servos.
Adentrando
o livro propriamente dito, ele é em forma de entrevista, onde o Historiador e
Jornalista Jean-Luc Pouthier é o entrevistador. Em tom respeitoso e não
crítico, Le Goff passa a falar dos aspectos religiosos que existiram no
medievo, enfatizando as mudanças e evoluções de como o europeu passou a ver Jesus,
Deus, o Espírito Santo, a igreja...
Em
certo momento ele diz:
“A imagem de Deus numa sociedade depende sem dúvida da
natureza e do lugar de quem imagina Deus. Existe um Deus dos clérigos e Deus
dos leigos; um Deus dos monges e um Deus dos seculares; um Deus dos poderosos e
um Deus dos humildes; um Deus dos pobres e um Deus dos ricos. [...] as imagens
de Deus mudam com o correr do tempo”.
P. 11, 12.
Tenho a impressão de que muitos Teólogos fundamentalistas gabaritados não entendem isso. Parece que muitas vezes escrevem, dissertam, falam sobre o cristianismo e
teologias cristãs, como se a mesma fé e o mesmo modo de se relacionar com o
divino, fossem uniformes ao longo desses quase dois mil anos, não atentando
para as grandes mudanças que ocorreram e ainda ocorrem nesse relacionamento do homem e das comunidades com
Deus. A visão do que é pecado muda. A visão do que Deus deseja, muda. A maneira
de como se relacionar com a igreja e o mundo, muda.
Quanto
à cobrança de dinheiro feita pela igreja no mundo medieval, o livro explica:
“Na Idade Média, no sistema político
feudal, como de um modo geral no conjunto da existência, a Igreja desempenha um
papel essencial. É preciso ver isso de um nível econômico e social muito
humilde, o do imposto, do pagamento de foros. A Igreja cobrava dízimos e
sustenta os senhores que cobram foros. E na vida do dia-a-dia, nos sermões, a
Igreja afirma que o dízimo não é dado a ela, o que seria constrangedor, mas a
Deus, ou com mais rigor, a São Pedro. Por outro lado, os padres, os monges,
explicam que pagar os foros aos senhores é fazer a vontade de Deus, porque Deus
lhes confiou um poder de comando que corresponde a suas intenções”. P. 82.
Acho que me enganei, a esperteza de como legitimar a doação
de grana para os cofres da igreja continua a mesma, ou muito semelhante, agora com
o agravo de não somente a igreja católica cobrar, mas também das igrejas
protestantes.
Era somente pela exclusiva mediação da igreja, que as pobres
pessoas podiam adentrar ao céu.
“Os principais instrumentos da dominação
da Igreja foram a consolidação da teologia e a prática dos sacramentos. O
século XII é aquele em que se estabelecem firmemente os sete pecados capitais,
os sete dons do Espírito Santo e os sete sacramentos. E como a Igreja é a única
a distribuir os sacramentos, o homem não pode se salvar não a ser pela Igreja e
graças à Igreja”. P. 88.
“Era muito difícil, insisto neste ponto,
para os homens e as mulheres da Idade Média ter um contato direto com Deus,
isto é, um contato sem a mediação da Igreja. Portanto, através dela é que
muitos cristãos e cristãs da Idade Média buscaram um acesso a Deus que
sentissem como contato verdadeiro e individual. A Igreja, para satisfazer a
essa aspiração sem renunciar a seus privilégios e à sua dominação, fez com que
evoluísse o sistema dos sacramentos, sistema que tinha a vantagem de tornar sua
intervenção obrigatória, preparando uma relação direta da pessoa batizada com
Deus”. P. 98.
Como a teologia católica mudou, hoje não é mais assim.
A igreja dispunha de vários meios para manter os seus fiéis
sob as suas rédeas. Eis mais um:
“Outro meio utilizado pela Igreja para
manter sua situação privilegiada entre Deus e o fiel foi, durante muito tempo,
fazer com que se falasse latim com Deus. Quando os valdenses, no fim do século
XII, quiseram ler a Bíblia numa tradução em língua vernácula [o francês que
nascia], foram condenados, ainda que suas crenças e suas práticas fossem, no
conjunto ortodoxas. Com efeito, os cristãos e as cristãs da Idade Média parecem
ter sofrido de certo modo uma frustração no seu relacionamento com Deus, e é
provável que esse sentimento de frustração tenha sido uma das condições
favoráveis ao nascimento Reforma, na qual muitos pensaram achar um acesso mais
autêntico e mais direto a Deus”. P. 100.
As igrejas protestantes estão sujeitas a tantas críticas
quanta a católica, mas o aparecimento delas, em todo caso, foi uma benção para
a humanidade. O cristianismo saiu do curral romano e se diversificou, diluiu o
seu centro de poder. Acho que nunca é demais lembrar disso, mesmo sabendo que
os ramos protestantes têm dado péssimos exemplos de moral e conduta, não
conseguindo estar a altura de seus discursos morais tão elevados.