terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Crer ou cão crer: uma conversa sem rodeios entre um historiador ateu e um padre católico


MELO, Fábio; KARNAL, Leandro. Crer ou cão crer: uma conversa sem rodeios entre um historiador ateu e um padre católico. 1. ed. São Paulo: Planeta, 2017.

Um diálogo! E não um debate de um querendo convencer o outro; seja catequizando o ateu, para que este torne-se um cristão católico; seja a catequese às avessas, de um Historiador querendo incutir o ceticismo, para que o padre torne-se um ateu.

Uma conversa cordial entre dois amigos, que mostram os seus motivos de "crer ou não crer", sem ofender e sem achar que um é superior ao outro.

Gostei.

Algumas falas do Padre Fábio de Melo, 
Mestre em Teologia no Instituto Santo Inácio, em Belo Horizonte:

"Tenho dificuldades em acreditar em um Deus que negocie favores. E o pior, favores que são concedidos mediante exigências sádicas. Alguém promete que atravessará uma passarela de joelhos para que Deus lhe conceda um favor. Há um equívoco por trás dessa compreensão." P. 29.

"Há tanto a evoluir, há tanto a avançar. Pode ser que daqui a algum tempo cheguemos à conclusão de que estávamos errados em matar e comer animais, não sei". P. 35.

"Eu encontrei na religião um conjunto que me anima. Minha religiosidade contempla arte, conhecimento, oração, cuidado com o corpo, terapia. Faço questão de viver uma religiosidade plural, que dialogue com o mundo que me cerca. Mas preciso reconhecer que encontro pessoas que não optaram pela religião e que desfrutam benefícios muito semelhantes aos que eu desfruto com as escolhas que fiz. Pessoas que descobriram o sustento, o ânimo por outras vias.

[...]

Posso identificar em muitas pessoas fora do cristianismo um movimento de evolução, de humanização, de superação daquilo que nos faz retroceder à crueza tribal. Pessoas já maduras para a prática da solidariedade, com senso de justiça apurado. Não estão ali os resultados do cristianismo que tanto que alcançar?

[...]

Encontrei muitos homens e mulheres que não professavam uma fé institucional e que sopravam ânimo em mim. Eu tive professores ateus no curso de Filosofia que me fizeram tão bem quanto os diretores espirituais, porque me aproximaram com muita reverência do mistério humano.

[...]

Hoje, para quem sou, crer como creio, preciso reconhecer as experiências que me foram proporcionadas pelos ateus. Ou pelos indiferentes religiosos, pelos que experimentaram Deus por outras vias". P. 73, 75. 

"Quando movida por interesses políticos, econômicos, ideológicos, a religião torna-se um mero instrumento de poder. Ao abrir-se ao processo mundano, esquecendo-se de que seu papel é promover o amor a Deus e o respeito ao humano, a religião passa a ser um obstáculo ao amadurecimento espiritual. Um discurso religioso tanto pode favorecer a maturidade humana como pode dificultá-la". P. 79. 

"Eu tenho uma repulsa natural ao discurso religioso que tenha como pano de fundo um Deus mercador negociando os seus favores. Eu acho que isso é mesquinho demais para ser cultivado. É um desserviço à fé. [...] Muita gente gravita nessa visão mesquinha de Deus. Para algumas pessoas é assim que funciona. Deus é o mercador com quem se negociam diariamente milagres e favores." P. 111. 

Algumas falas do Leandro Karnal, Doutor em História na USP:

"Quando passei por risco de morte, fiquei curioso se eu apelaria a uma oração, como numa aterrissagem forçada na África. Não aconteceu. Quando vi meu pai num caixão, também imaginei que seria um momento no qual a fé poderia tentar voltar, como memória daquele homem tão católico que eu amava. Não rezei e tive a certeza de que ali se acabava tudo. Meu pai existiria apenas em fotos e na lembrança do bem que fez. Mas, insisto, não foram pessoas ou atos que me afastaram da ideia de um Deus criador. Todo o sistema teológico e explicativo da religião foi parecendo ofensivo à razão e incapaz de se sustentar". P. 41. 

"Nunca considerei as religiões ruins em si (ou pelo menos piores do que todo o resto que criamos), mas passei a considerá-las humanas. Estados ateus matam e Estados religiosos também matam. Cientistas podem eliminar pessoas como inquisidores o fizeram. Mas cientistas e inquisidores são parte da aventura humana, bela e trágica. [...] A questão que tudo isso é humano, explicável, cognoscível, possível de ser dissecado em todas as suas fibras. [...] Nossa consciência humana valida milagres, cria curas, comprova aparições, atesta possessões, entrega-se ao poder de amuletos e sente bem-estar em lugares sagrados. Esse emaranhado de feixes nervosos e neurônios que, desde cognitiva, há 70 mil anos, elabora linguagens complexas também cria e mata deuses. Osíris existiu por mais tempo do que Jesus na crença dos egípcios. Deuses também morrem quando seus adoradores morrem." P. 46, 47-48. 

"Eu acho que nós inventamos essências, uma delas é o amor eterno, romântico; a outra é Deus; a outra é a bondade humana. Inventamos essências que tornam esse vale de lágrimas tolerável. São opiáceos variados em meio a muitas dores. Existe a dor, a solidão, o medo, a finitude representada pela morte, a ausência permanente da paz, o risco da perda de quem amamos, para insegurança quando um filho tarda em voltar para casa... muitas ansiedades. Como não ceder ao consolo da oração, da promessa, da entrega a um poder maior?" P. 57-58. 

"Eu gosto de repetir que se mata em nome de Deus, como por exemplo na Inquisição. Mata-se em nome do ateísmo: os regimes mais genocidas do século XX foram ateus, a União Soviética de Stálin e a China de Mao. Mata-se perseguindo religiosos; Fidel Castro em Cuba, contra a santeria: mata-se em nome do estado e da purificação de raças (eugenia). O que eu acho comum em tudo isso é que gostamos de matar. [...] Então, diferentemente dos divulgadores do ateísmo, como Richard Dawkins, por exemplo, que começa citando John Lennon, 'Imagine um mundo sem Deus, esse é um mundo de paz', eu não acredito nisso, porque o que causa a nossa violência não é Deus ou o ateísmo. [...] As utopias matam muito, Utopias religiosas, utopias socialistas, todas elas. Porque querem produzir um mundo bom, e para esse mundo existir têm que eliminar..." P. 67. 

"O argumento clássico contra os ateus é que eles não explicam a origem de tudo. Tem gente que me pergunta: 'Então de onde você veio?'. Pelo que eu saiba foi da minha mãe. E a mãe dela? E assim até o símio ancestral. Então vem a pergunta: 'De onde veio o macaco?'. Eu digo: 'Da macaca!'. Aí é a minha vez de perguntar: Não é possível então que algo venha de nada? Não. Não é possível que algo gere a partir do nada? Não. Então de onde veio Deus? Ah Deus sempre esteve. Bom, aí no único caso em que essa explicação o favorece, você aceita que o nada gere nada." P. 164.