MELO, Fábio; KARNAL,
Leandro. Crer
ou cão crer: uma conversa sem rodeios entre um historiador ateu e um padre
católico. 1.
ed. São Paulo: Planeta, 2017.
Um diálogo! E não um debate de um querendo convencer o outro; seja catequizando o ateu, para que este torne-se um cristão católico; seja a catequese às avessas, de um Historiador querendo incutir o ceticismo, para que o padre torne-se um ateu.
Uma conversa cordial entre dois amigos, que mostram os seus motivos de "crer ou não crer", sem ofender e sem achar que um é superior ao outro.
Gostei.
Algumas falas do Padre Fábio de Melo, Mestre em Teologia no Instituto Santo Inácio, em Belo Horizonte:
"Tenho dificuldades em acreditar em um Deus que
negocie favores. E o pior, favores que são concedidos mediante exigências
sádicas. Alguém promete que atravessará uma passarela de joelhos para que Deus
lhe conceda um favor. Há um equívoco por trás dessa compreensão." P. 29.
"Há tanto a evoluir, há tanto a
avançar. Pode ser que daqui a algum tempo cheguemos à conclusão de que
estávamos errados em matar e comer animais, não sei". P. 35.
"Eu encontrei na religião um
conjunto que me anima. Minha religiosidade contempla arte, conhecimento,
oração, cuidado com o corpo, terapia. Faço questão de viver uma religiosidade
plural, que dialogue com o mundo que me cerca. Mas preciso reconhecer que
encontro pessoas que não optaram pela religião e que desfrutam benefícios muito
semelhantes aos que eu desfruto com as escolhas que fiz. Pessoas que
descobriram o sustento, o ânimo por outras vias.
[...]
Posso identificar em muitas pessoas
fora do cristianismo um movimento de evolução, de humanização, de superação
daquilo que nos faz retroceder à crueza tribal. Pessoas já maduras para a
prática da solidariedade, com senso de justiça apurado. Não estão ali os
resultados do cristianismo que tanto que alcançar?
[...]
Encontrei muitos homens e mulheres que
não professavam uma fé institucional e que sopravam ânimo em mim. Eu tive
professores ateus no curso de Filosofia que me fizeram tão bem quanto os
diretores espirituais, porque me aproximaram com muita reverência do mistério
humano.
[...]
Hoje, para quem sou, crer como creio,
preciso reconhecer as experiências que me foram proporcionadas pelos ateus. Ou
pelos indiferentes religiosos, pelos que experimentaram Deus por outras
vias". P. 73, 75.
"Quando movida por interesses
políticos, econômicos, ideológicos, a religião torna-se um mero instrumento de
poder. Ao abrir-se ao processo mundano, esquecendo-se de que seu papel é
promover o amor a Deus e o respeito ao humano, a religião passa a ser um
obstáculo ao amadurecimento espiritual. Um discurso religioso tanto pode
favorecer a maturidade humana como pode dificultá-la". P. 79.
"Eu tenho uma repulsa natural ao
discurso religioso que tenha como pano de fundo um Deus mercador negociando os
seus favores. Eu acho que isso é mesquinho demais para ser cultivado. É um
desserviço à fé. [...] Muita gente gravita nessa visão mesquinha de Deus. Para
algumas pessoas é assim que funciona. Deus é o mercador com quem se negociam
diariamente milagres e favores." P. 111.
Algumas falas do Leandro Karnal, Doutor em História na
USP:
"Quando passei por risco de morte, fiquei curioso
se eu apelaria a uma oração, como numa aterrissagem forçada na África. Não
aconteceu. Quando vi meu pai num caixão, também imaginei que seria um momento
no qual a fé poderia tentar voltar, como memória daquele homem tão católico que
eu amava. Não rezei e tive a certeza de que ali se acabava tudo. Meu pai
existiria apenas em fotos e na lembrança do bem que fez. Mas, insisto, não
foram pessoas ou atos que me afastaram da ideia de um Deus criador. Todo o
sistema teológico e explicativo da religião foi parecendo ofensivo à razão e
incapaz de se sustentar". P. 41.
"Nunca considerei as religiões ruins em si (ou pelo
menos piores do que todo o resto que criamos), mas passei a considerá-las
humanas. Estados ateus matam e Estados religiosos também matam. Cientistas
podem eliminar pessoas como inquisidores o fizeram. Mas cientistas e
inquisidores são parte da aventura humana, bela e trágica. [...] A questão que
tudo isso é humano, explicável, cognoscível, possível de ser dissecado em todas
as suas fibras. [...] Nossa consciência humana valida milagres, cria curas,
comprova aparições, atesta possessões, entrega-se ao poder de amuletos e sente
bem-estar em lugares sagrados. Esse emaranhado de feixes nervosos e neurônios
que, desde cognitiva, há 70 mil anos, elabora linguagens complexas também cria
e mata deuses. Osíris existiu por mais tempo do que Jesus na crença dos
egípcios. Deuses também morrem quando seus adoradores morrem." P. 46, 47-48.
"Eu acho que nós inventamos essências, uma delas é
o amor eterno, romântico; a outra é Deus; a outra é a bondade humana.
Inventamos essências que tornam esse vale de lágrimas tolerável. São opiáceos
variados em meio a muitas dores. Existe a dor, a solidão, o medo, a finitude
representada pela morte, a ausência permanente da paz, o risco da perda de quem
amamos, para insegurança quando um filho tarda em voltar para casa... muitas
ansiedades. Como não ceder ao consolo da oração, da promessa, da entrega a um
poder maior?" P.
57-58.
"Eu gosto de repetir que se mata em nome de Deus,
como por exemplo na Inquisição. Mata-se em nome do ateísmo: os regimes mais
genocidas do século XX foram ateus, a União Soviética de Stálin e a China de
Mao. Mata-se perseguindo religiosos; Fidel Castro em Cuba, contra a santeria:
mata-se em nome do estado e da purificação de raças (eugenia). O que eu acho
comum em tudo isso é que gostamos de matar. [...] Então, diferentemente dos
divulgadores do ateísmo, como Richard Dawkins, por exemplo, que começa citando
John Lennon, 'Imagine um mundo sem Deus, esse é um mundo de paz', eu não
acredito nisso, porque o que causa a nossa violência não é Deus ou o ateísmo.
[...] As utopias matam muito, Utopias religiosas, utopias socialistas, todas
elas. Porque querem produzir um mundo bom, e para esse mundo existir têm que
eliminar..." P.
67.
"O argumento clássico contra os ateus é que eles
não explicam a origem de tudo. Tem gente que me pergunta: 'Então de onde você
veio?'. Pelo que eu saiba foi da minha mãe. E a mãe dela? E assim até o símio
ancestral. Então vem a pergunta: 'De onde veio o macaco?'. Eu digo: 'Da
macaca!'. Aí é a minha vez de perguntar: Não é possível então que algo venha de
nada? Não. Não é possível que algo gere a partir do nada? Não. Então de onde
veio Deus? Ah Deus sempre esteve. Bom, aí no único caso em que essa explicação
o favorece, você aceita que o nada gere nada." P. 164.