BESANÇON,
Alain. A
Infelicidade do Século. São Paulo:
Bertrand Brasil, 2000.
“O desacordo
tem a ver com o que este século tem de mais característico em relação aos
outros: a extraordinária amplitude do massacre de homens feito por homens, que
só foi possível pela tomada do poder pelo comunismo de tipo leninista e pelo
nazismo de tipo hitlerista. Esses ‘gêmeos heterozigotos’ (Pierre Chaunu), ainda
que inimigos e originários de histórias diferentes, têm vários traços em comum.
Eles se colocam como objetivo chegar a uma sociedade perfeita, destruindo os
elementos negativos que se opõem a ela. Eles pretendem ser filantrópicos, pois
querem, um deles, o bem de toda a humanidade, o outro, o do povo alemão, e esse
ideal suscitou adesões entusiásticas e atos heróicos. Mas o que os aproxima
mais é que ambos se dão o direito – e mesmo o dever – de matar, e o fazem com
métodos que se assemelham, numa escala desconhecida na história.” P. 05.
Besançon (Diretor de estudos da Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais de Paris) é um ex-comunista. Tornou-se um crítico mordaz da
ideologia marxista. Ao longo do seu livro, termos como comunismo e socialismo,
são usados de forma intercambiáveis. O que certamente gera discórdia entre
aqueles que dizem que o comunismo enquanto tal, não foi concretizado nos
regimes socialistas totalitários dos séculos XX e XXI. Alguns ainda estão à
espera do socialismo marxista ganhar status real em algum lugar por aí.
A obra de
Besançon é um lamento pelo “esquecimento” e apaziguamento dos crimes
perpetrados pelo comunismo soviético. O nazismo passa com razão, por uma situação
de hiperamnésia (lembrança de algo com muita intensidade e frequência). Já o
comunismo soviético que terminou sua abjeta história há tão pouco tempo (ele
escreveu esse livro em 1997), não é tão mal visto como o nazismo, pela
sociedade e intelectuais. Há uma anistia injustificável.
“O nazismo,
apesar de completamente desaparecido há mais de meio século, é, com razão,
objeto de uma execração que não diminui com o tempo. A reflexão horrorizada
sobre ele parece até aumentar a cada ano em profundidade e extensão. O
comunismo, em compensação, apesar de muito mais recente, e apesar inclusive de
sua queda, se beneficia de uma amnésia e de uma anistia que colhem o
consentimento quase unânime, não apenas de seus partidários, pois eles ainda
existem, como também de seus inimigos mais determinados e até mesmo de suas
vítimas. Nem uns nem outros se acham com direito de tirá-lo do esquecimento.
Acontece às vezes que o caixão de Drácula se abre. Foi assim que, no final de
1997, uma obra (O livro negro do comunismo) ousou calcular a soma dos mortos
que era possível atribuir-lhe. Propunha-se uma cifra de 85 a 100 milhões. O
escândalo durou pouco e o caixão já se fecha, sem que, no entanto, essas cifras
tenham sido seriamente contestadas.” P. 05.
A
ideologia do nazismo e do comunismo seriam semelhantes?
“Pode-se, de
fato, comparar o comunismo com o nazismo como duas espécies do mesmo gênero, o
gênero ideológico. A sedução, a natureza e o modo de seu poder, o tipo de seu
crime, vinculam-se à formação mental de que eles dependem inteiramente: a
ideologia. Eu entendo por essa palavra uma doutrina que promete, por meio da
conversão, uma salvação temporal, que se pretende conforme a uma ordem cósmica
decifrada sistematicamente em sua evolução, que impõe uma prática política que
visa a transformar radicalmente a sociedade”.P. 06.
Besançon
explora as etapas do extermínio do nazismo e comunismo, que eram basicamente
estes:
- a expropriação;
- a concentração;
- as “operações móveis de
assassinato”;
- a deportação;
- os centros de extermínio.
A exemplo
dos regimes socialistas atuais, como a Coréia do Norte, a fome foi uma das
grandes características da URSS.
“A fome é, na
maior parte do tempo, uma consequência da política comunista. É da
essência dessa política estender seu controle à totalidade de seus súditos.
[...] Não se pode, no entanto, dizer que o poder deseja a fome como tal, mas é
o preço que ele aceita pagar para atingir seus objetivos políticos e
ideológicos. No Cazaquistão, a população caiu pela metade. [...] Consentida
como meio ou desejada como fim, a fome foi o procedimento mais mortífero da
destruição comunista das pessoas. Ela responde por mais da metade dos mortos
imputáveis ao sistema na URSS, e por três quartos, talvez, na China.” P. 16.
O
comunismo subverteu todos os valores morais construídos pela humanidade.
“Eu chamo de
moral natural ou comum aquela à qual se referem os sábios da Antiguidade, e
também os da China, da índia ou da África. No mundo constituído pela Bíblia,
essa moral é resumida na segunda tábua dos mandamentos de Moisés. A ética
comunista opõe-se a ela de forma frontal e muito consciente. Ela se propõe a
destruir a propriedade e, com ela, o direito e a liberdade que se vinculam a
ela, e reformar a ordem familiar. Ela se dá o direito de todos os meios de
mentira e de violência para derrubar a velha ordem e fazer surgir a nova. Ela
transgride abertamente, em seu princípio, o quinto mandamento ('honrarás pai e
mãe'), o sexto ('não matarás'), o sétimo ('não cometerás adultério'), o oitavo
('não roubarás'), o nono ('não darás falso testemunho contra teu próximo') e o
décimo ('não cobiçarás a mulher do próximo').
Não é
absolutamente necessário crer na revelação bíblica para aceitar o espírito
desses preceitos que se encontram em todo o mundo. A maioria dos homens
considera que existem comportamentos que são verdadeiros e bons porque
correspondem ao que eles conhecem das estruturas do universo. O comunismo
concebe um outro universo e vincula a ele sua moral. É por isso que ele
recusa não só os preceitos, mas também seu fundamento, o mundo natural. Dizíamos
que a moral comunista baseia-se na natureza e na história; é falso. Baseia-se
numa supernatureza que não existe e numa História sem verdade.” P. 26.
Besançon
não faz vista grossa a realidade cruel que foi o socialismo da URSS:
“O humano e o
humanitário não têm nem direito nem futuro. As classes não se reconciliam, elas
desaparecem. A sociedade não se torna homogênea, ela é destruída em sua
autonomia e em sua dinâmica própria. Não é o proletariado que faz a guerra ao
capitalismo, é a seita ideológica que fala e age em seu nome.” P. 27.
Dos dois
regimes, comunismo e nazismo, qual a ideologia mais abjeta?
“Não é
possível decidir qual o mais demoníaco: destruir uma pseudo-raça, inclusive a
“superior”, porque elas são todas poluídas; ou destruir uma pseudoclasse e,
depois, sucessivamente, as outras, todas contaminadas pelo espírito do
capitalismo”. P. 27.
“Por ter
estudado um e outro, conhecendo também os auges em intensidade no crime do
nazismo (a câmara de gás) e em extensão do comunismo (mais de 60 milhões de
mortos), o gênero de perversão das almas e dos espíritos operado por um e por
outro, creio que não se pode entrar nessa discussão perigosa, que é preciso ser
respondida simples e firmemente: sim, igualmente criminosos.” P. 69.
Mas noutro
aspecto, Besançon reconhece que o comunismo é mais degradante que o nazismo,
visto que mesmo diante de milhões de mortos em suas costas, ainda assim, os
comunistas de carteirinha não têm arrependimento algum por tudo que aconteceu
no regime. Eles apenas lamentam que o comunismo infelizmente não deu certo.
Caso tivesse tido o sucesso almejado por Lênin e associados, essas mortes
teriam valido a pena, pois um novo mundo com um futuro brilhante e sem divisão
de classes, teria sido criado. Lamentavelmente esse foi o pensamento de um dos
maiores Historiadores do século passado, Eric hobsbawm. Isso só mostra o
quanto uma ideologia maléfica pode contaminar a mente de uma pessoa, sendo ela
intelectual ou não.
O dogmatismo cego prejudica a capacidade de raciocinar não apenas dos religiosos fanáticos, mas de muitos intelectuais e acadêmicos. Infelizmente esse foi o caso desse Historiador. Para ele, tudo vale, até a morte de milhões de pessoas, contanto que sua ideologia política seja estabelecida.
O dogmatismo cego prejudica a capacidade de raciocinar não apenas dos religiosos fanáticos, mas de muitos intelectuais e acadêmicos. Infelizmente esse foi o caso desse Historiador. Para ele, tudo vale, até a morte de milhões de pessoas, contanto que sua ideologia política seja estabelecida.
“O comunismo é
mais perverso que o nazismo porque ele não pede ao homem que atue
conscientemente como um criminoso, mas, ao contrário, se serve do espírito de
justiça e de bondade que se estendeu por toda a terra para difundir em toda a
terra o mal. Cada experiência comunista é recomeçada na inocência.”P. 32.
Mais
algumas facetas do que foi o comunismo:
“Todo governo
comunista fecha as fronteiras, esse é um de seus primeiros atos. Os nazistas,
até 1939, autorizavam as partidas, a troco de resgate. A “pureza” da Alemanha
ganhava com isso. Mas jamais os comunistas. Eles têm necessidade do
fechamento absoluto das fronteiras para proteger o segredo de suas matanças, de
seu fracasso; mas, sobretudo, porque o país supostamente se tornou uma vasta
escola em que todos devem receber a educação que extirpará o espírito do
capitalismo e filtrará, em seu lugar, o espírito socialista.
O segundo
passo é controlar a informação. A população não deve saber o que se passa fora
do campo socialista. Ela não deve tampouco saber o que se passa dentro. Ela não
deve conhecer seu passado. Ela não deve conhecer seu presente: somente seu
futuro radioso.
O terceiro é
substituir a realidade por uma pseudo-realidade. Todo um corpo especializado no
falso produz falsos jornalistas, falsos historiadores, uma falsa literatura,
uma falsa arte que finge refletir fotograficamente uma realidade fictícia. Uma
falsa economia produz estatísticas imaginárias. Acontece às vezes que as
necessidades da cenografia chegam à adoção de medidas de estilo nazista. Assim,
na URSS, os mutilados de guerra e do trabalho eram afastados da vista do
público, transportados para asilos longínquos onde eles não chamavam mais
atenção”. P. 29-30.
E por
questão de honestidade, devo reconhecer que a igreja católica, instituição por
qual não tenho quase nenhum apreço, salvou milhares de judeus durante a Segunda
Guerra Mundial, livrando-os do holocausto (Shoah). Não teria porque duvidar das
palavras do Besançon.
“Profundamente
atacada nesse ponto, a Igreja católica fez valer seus argumentos. O padre Blet,
S. j., historiador cuja competência é notória e reconhecida por seus pares,
reuniu-os recentemente em uma obra documentada sobre os arquivos do Vaticano:
de todos os corpos constituídos subjugados pelo nazismo, afirma ele, a Igreja
foi o que salvou mais judeus. O padre Blet avalia seu número em 800 mil. A
encíclica Mit Brennender Sorge (março de 1937) condena expressamente o racismo
e as diversas idolatrias da raça, do sangue, da nação. O silêncio de que é
acusado Pio XII pode ser explicado pela prudência e pela preocupação por uma
eficácia máxima; por exemplo, para não suscitar reações nazistas ainda mais
mortíferas, como tinha acontecido nos Países Baixos quando os bispos tinham
elevado a voz em protesto; salvar um circuito eclesiástico e um esquema
diplomático que permitiria agir debilmente na Alemanha, com base na
concordata, e mais fortemente nos países satélites mas que não tinham ainda
sido ocupados, como a Hungria ou a Eslováquia; não enfraquecer sistematicamente
a Alemanha face à ameaça soviética, que o Papa considerava, com razão, como
mais perigosa ainda a longo prazo para a humanidade inteira que o nazismo. Ele
se explica também pela dificuldade de crer em algumas informações que filtraram
do grande segredo nazista, porque elas eram (assim como para os dirigentes
ocidentais da Grande Aliança) incríveis”. P. 63.
No
entanto, três páginas a frente nos é dito:
“A Igreja faz
recair essa responsabilidade principalmente sobre seu ensino. Um documento
romano de 1988 reconhece que o tom antijudaico de sua tradição mais antiga
preparou O terreno para um anti-semitismo racista, que seria estranho à
Igreja”. P. 66.
A
Infelicidade do Século é um livro profundo e que felizmente não alivia o lado
do socialismo comunista, como muitos fazem. Besançon traz informações e
explicações pertinentes sobre os dois regimes que mergulharam o século XX num
lamaçal de sangue inocente.
É com
tristeza e pesar, que não foram apenas esses dois regimes que fizeram o século
passado se afogar em mortes. Não podemos esquecer os milhões de assassinatos na
África e noutros lugares, ocasionados por governos corruptos e ávidos pelo
poder a qualquer custo.
Pra
fechar, cito mais um lamento de Besançon pelo fato do comunismo ter sido
eximido de suas atrocidades:
“O que nos
leva a um problema: como é possível que hoje, isto é, em 1997, a memória histórica
os trate desigualmente a ponto de parecer ter esquecido o comunismo? Sobre o
fato dessa desigualdade não é necessário nos estendermos. Desde 1989, a
oposição polonesa, com o primado da Igreja à cabeça, recomendava o esquecimento
e o perdão. Na maioria dos países que saíam do comunismo, não se falou sequer
em castigar os responsáveis que haviam matado, privado de liberdade,
arruinado, embrutecido as pessoas, durante duas ou três gerações. Salvo na
Alemanha Oriental e na República Tcheca, os comunistas foram autorizados a
permanecer no jogo político, o que lhes permitiu retomar aqui e ali o poder. Na
Rússia e em outras repúblicas, o pessoal diplomático e policial continuou nos
seus postos. No Ocidente, esta anistia foi julgada favoravelmente”. P. 69-70.