sexta-feira, 3 de março de 2017

A Infelicidade do Século


BESANÇON, Alain. A Infelicidade do Século. São Paulo: Bertrand Brasil, 2000.

“O desacordo tem a ver com o que este século tem de mais característico em relação aos outros: a extraordinária amplitude do massacre de homens feito por homens, que só foi possível pela tomada do poder pelo comunismo de tipo leninista e pelo nazismo de tipo hitlerista. Esses ‘gêmeos heterozigotos’ (Pierre Chaunu), ainda que inimigos e originários de histórias diferentes, têm vários traços em comum. Eles se colocam como objetivo chegar a uma sociedade perfeita, destruindo os elementos negativos que se opõem a ela. Eles pretendem ser filantrópicos, pois querem, um deles, o bem de toda a humanidade, o outro, o do povo alemão, e esse ideal suscitou adesões entusiásticas e atos heróicos. Mas o que os aproxima mais é que ambos se dão o direito – e mesmo o dever – de matar, e o fazem com métodos que se assemelham, numa escala desconhecida na história.” P. 05.

Besançon (Diretor de estudos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris) é um ex-comunista. Tornou-se um crítico mordaz da ideologia marxista. Ao longo do seu livro, termos como comunismo e socialismo, são usados de forma intercambiáveis. O que certamente gera discórdia entre aqueles que dizem que o comunismo enquanto tal, não foi concretizado nos regimes socialistas totalitários dos séculos XX e XXI. Alguns ainda estão à espera do socialismo marxista ganhar status real em algum lugar por aí.

A obra de Besançon é um lamento pelo “esquecimento” e apaziguamento dos crimes perpetrados pelo comunismo soviético. O nazismo passa com razão, por uma situação de hiperamnésia (lembrança de algo com muita intensidade e frequência). Já o comunismo soviético que terminou sua abjeta história há tão pouco tempo (ele escreveu esse livro em 1997), não é tão mal visto como o nazismo, pela sociedade e intelectuais. Há uma anistia injustificável.

“O nazismo, apesar de completamente desaparecido há mais de meio século, é, com razão, objeto de uma execração que não diminui com o tempo. A reflexão horrorizada sobre ele parece até aumentar a cada ano em profundidade e extensão. O comunismo, em compensação, apesar de muito mais recente, e apesar inclusive de sua queda, se beneficia de uma amnésia e de uma anistia que colhem o consentimento quase unânime, não apenas de seus partidários, pois eles ainda existem, como também de seus inimigos mais determinados e até mesmo de suas vítimas. Nem uns nem outros se acham com direito de tirá-lo do esquecimento. Acontece às vezes que o caixão de Drácula se abre. Foi assim que, no final de 1997, uma obra (O livro negro do comunismo) ousou calcular a soma dos mortos que era possível atribuir-lhe. Propunha-se uma cifra de 85 a 100 milhões. O escândalo durou pouco e o caixão já se fecha, sem que, no entanto, essas cifras tenham sido seriamente contestadas.” P. 05.

A ideologia do nazismo e do comunismo seriam semelhantes?

“Pode-se, de fato, comparar o comunismo com o nazismo como duas espécies do mesmo gênero, o gênero ideológico. A sedução, a natureza e o modo de seu poder, o tipo de seu crime, vinculam-se à formação mental de que eles dependem inteiramente: a ideologia. Eu entendo por essa palavra uma doutrina que promete, por meio da conversão, uma salvação temporal, que se pretende conforme a uma ordem cósmica decifrada sistematicamente em sua evolução, que impõe uma prática política que visa a transformar  radicalmente a sociedade”.P. 06.

Besançon explora as etapas do extermínio do nazismo e comunismo, que eram basicamente estes:

- a expropriação;
- a concentração;
- as “operações móveis de assassinato”;
- a deportação;
- os centros de extermínio.

A exemplo dos regimes socialistas atuais, como a Coréia do Norte, a fome foi uma das grandes características da URSS.

“A fome é, na maior parte do tempo, uma consequência da política comunista. É da essência dessa política estender seu controle à totalidade de seus súditos. [...] Não se pode, no entanto, dizer que o poder deseja a fome como tal, mas é o preço que ele aceita pagar para atingir seus objetivos políticos e ideológicos. No Cazaquistão, a população caiu pela metade. [...] Consentida como meio ou desejada como fim, a fome foi o procedimento mais mortífero da destruição comunista das pessoas. Ela responde por mais da metade dos mortos imputáveis ao sistema na URSS, e por três quartos, talvez, na China.” P. 16.

O comunismo subverteu todos os valores morais construídos pela humanidade.

“Eu chamo de moral natural ou comum aquela à qual se referem os sábios da Antiguidade, e também os da China, da índia ou da África. No mundo constituído pela Bíblia, essa moral é resumida na segunda tábua dos mandamentos de Moisés. A ética comunista opõe-se a ela de forma frontal e muito consciente. Ela se propõe a destruir a propriedade e, com ela, o direito e a liberdade que se vinculam a ela, e reformar a ordem familiar. Ela se dá o direito de todos os meios de mentira e de violência para derrubar a velha ordem e fazer surgir a nova. Ela transgride abertamente, em seu princípio, o quinto mandamento ('honrarás pai e mãe'), o sexto ('não matarás'), o sétimo ('não cometerás adultério'), o oitavo ('não roubarás'), o nono ('não darás falso testemunho contra teu próximo') e o décimo ('não cobiçarás a mulher do próximo').

Não é absolutamente necessário crer na revelação bíblica para aceitar o espírito desses preceitos que se encontram em todo o mundo. A maioria dos homens considera que existem comportamentos que são verdadeiros e bons porque correspondem ao que eles conhecem das estruturas do universo. O comunismo concebe um outro universo e vincula a ele sua moral. É por isso que ele recusa não só os preceitos, mas também seu fundamento, o mundo natural. Dizíamos que a moral comunista baseia-se na natureza e na história; é falso. Baseia-se numa supernatureza que não existe e numa História sem verdade.” P. 26.

Besançon não faz vista grossa a realidade cruel que foi o socialismo da URSS:

“O humano e o humanitário não têm nem direito nem futuro. As classes não se reconciliam, elas desaparecem. A sociedade não se torna homogênea, ela é destruída em sua autonomia e em sua dinâmica própria. Não é o proletariado que faz a guerra ao capitalismo, é a seita ideológica que fala e age em seu nome.” P. 27.

Dos dois regimes, comunismo e nazismo, qual a ideologia mais abjeta?

“Não é possível decidir qual o mais demoníaco: destruir uma pseudo-raça, inclusive a “superior”, porque elas são todas poluídas; ou destruir uma pseudoclasse e, depois, sucessivamente, as outras, todas contaminadas pelo espírito do capitalismo”. P. 27.

“Por ter estudado um e outro, conhecendo também os auges em intensidade no crime do nazismo (a câmara de gás) e em extensão do comunismo (mais de 60 milhões de mortos), o gênero de perversão das almas e dos espíritos operado por um e por outro, creio que não se pode entrar nessa discussão perigosa, que é preciso ser respondida simples e firmemente: sim, igualmente criminosos.” P. 69.

Mas noutro aspecto, Besançon reconhece que o comunismo é mais degradante que o nazismo, visto que mesmo diante de milhões de mortos em suas costas, ainda assim, os comunistas de carteirinha não têm arrependimento algum por tudo que aconteceu no regime. Eles apenas lamentam que o comunismo infelizmente não deu certo. Caso tivesse tido o sucesso almejado por Lênin e associados, essas mortes teriam valido a pena, pois um novo mundo com um futuro brilhante e sem divisão de classes, teria sido criado. Lamentavelmente esse foi o pensamento de um dos maiores Historiadores do século passado, Eric hobsbawm. Isso só mostra o quanto uma ideologia maléfica pode contaminar a mente de uma pessoa, sendo ela intelectual ou não.

O dogmatismo cego prejudica a capacidade de raciocinar não apenas dos religiosos fanáticos, mas de muitos intelectuais e acadêmicos. Infelizmente esse foi o caso desse Historiador. Para ele, tudo vale, até a morte de milhões de pessoas, contanto que sua ideologia política seja estabelecida.
 

“O comunismo é mais perverso que o nazismo porque ele não pede ao homem que atue conscientemente como um criminoso, mas, ao contrário, se serve do espírito de justiça e de bondade que se estendeu por toda a terra para difundir em toda a terra o mal. Cada experiência comunista é recomeçada na inocência.”P. 32.

Mais algumas facetas do que foi o comunismo:

“Todo governo comunista fecha as fronteiras, esse é um de seus primeiros atos. Os nazistas, até 1939, autorizavam as partidas, a troco de resgate. A “pureza” da Alemanha ganhava com isso. Mas jamais os comunistas. Eles têm necessidade do fechamento absoluto das fronteiras para proteger o segredo de suas matanças, de seu fracasso; mas, sobretudo, porque o país supostamente se tornou uma vasta escola em que todos devem receber a educação que extirpará o espírito do capitalismo e filtrará, em seu lugar, o espírito socialista.

O segundo passo é controlar a informação. A população não deve saber o que se passa fora do campo socialista. Ela não deve tampouco saber o que se passa dentro. Ela não deve conhecer seu passado. Ela não deve conhecer seu presente: somente seu futuro radioso.

O terceiro é substituir a realidade por uma pseudo-realidade. Todo um corpo especializado no falso produz falsos jornalistas, falsos historiadores, uma falsa literatura, uma falsa arte que finge refletir fotograficamente uma realidade fictícia. Uma falsa economia produz estatísticas imaginárias. Acontece às vezes que as necessidades da cenografia chegam à adoção de medidas de estilo nazista. Assim, na URSS, os mutilados de guerra e do trabalho eram afastados da vista do público, transportados para asilos longínquos onde eles não chamavam mais atenção”. P. 29-30.

E por questão de honestidade, devo reconhecer que a igreja católica, instituição por qual não tenho quase nenhum apreço, salvou milhares de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, livrando-os do holocausto (Shoah). Não teria porque duvidar das palavras do Besançon.

“Profundamente atacada nesse ponto, a Igreja católica fez valer seus argumentos. O padre Blet, S. j., historiador cuja competência é notória e reconhecida por seus pares, reuniu-os recentemente em uma obra documentada sobre os arquivos do Vaticano: de todos os corpos constituídos subjugados pelo nazismo, afirma ele, a Igreja foi o que salvou mais judeus. O padre Blet avalia seu número em 800 mil. A encíclica Mit Brennender Sorge (março de 1937) condena expressamente o racismo e as diversas idolatrias da raça, do sangue, da nação. O silêncio de que é acusado Pio XII pode ser explicado pela prudência e pela preocupação por uma eficácia máxima; por exemplo, para não suscitar reações nazistas ainda mais mortíferas, como tinha acontecido nos Países Baixos quando os bispos tinham elevado a voz em protesto; salvar um circuito eclesiástico e um esquema diplomático que permitiria agir  debilmente na Alemanha, com base na concordata, e mais fortemente nos países satélites mas que não tinham ainda sido ocupados, como a Hungria ou a Eslováquia; não enfraquecer sistematicamente a Alemanha face à ameaça soviética, que o Papa considerava, com razão, como mais perigosa ainda a longo prazo para a humanidade inteira que o nazismo. Ele se explica também pela dificuldade de crer em algumas informações que filtraram do grande segredo nazista, porque elas eram (assim como para os dirigentes ocidentais da Grande Aliança) incríveis”. P. 63.

No entanto, três páginas a frente nos é dito:

“A Igreja faz recair essa responsabilidade principalmente sobre seu ensino. Um documento romano de 1988 reconhece que o tom antijudaico de sua tradição mais antiga preparou O terreno para um anti-semitismo racista, que seria estranho à Igreja”. P. 66.

A Infelicidade do Século é um livro profundo e que felizmente não alivia o lado do socialismo comunista, como muitos fazem. Besançon traz informações e explicações pertinentes sobre os dois regimes que mergulharam o século XX num lamaçal de sangue inocente.

É com tristeza e pesar, que não foram apenas esses dois regimes que fizeram o século passado se afogar em mortes. Não podemos esquecer os milhões de assassinatos na África e noutros lugares, ocasionados por governos corruptos e ávidos pelo poder a qualquer custo.

Pra fechar, cito mais um lamento de Besançon pelo fato do comunismo ter sido eximido de suas atrocidades:

“O que nos leva a um problema: como é possível que hoje, isto é, em 1997, a memória histórica os trate desigualmente a ponto de parecer ter esquecido o comunismo? Sobre o fato dessa desigualdade não é necessário nos estendermos. Desde 1989, a oposição polonesa, com o primado da Igreja à cabeça, recomendava o esquecimento e o perdão. Na maioria dos países que saíam do comunismo, não se falou sequer em castigar os responsáveis que haviam matado, privado de liberdade, arruinado, embrutecido as pessoas, durante duas ou três gerações. Salvo na Alemanha Oriental e na República Tcheca, os comunistas foram autorizados a permanecer no jogo político, o que lhes permitiu retomar aqui e ali o poder. Na Rússia e em outras repúblicas, o pessoal diplomático e policial continuou nos seus postos. No Ocidente, esta anistia foi julgada favoravelmente”. P. 69-70.