ALMEIDA,
Rute Salviano. Uma Voz Feminina na Reforma. São Paulo: Hagnos, 2010.
Passaram-se
5 séculos, e a Reforma Protestante sempre é lembrada, tendo como seus
protagonistas e figuras importantes, as pessoas de Martinho Lutero
(obviamente), João Calvino, Melancthon, Zwinglio e outros homens. Mas nunca, ou
quase isso, se menciona o sexo feminino, como personagens chaves ou
proeminentes no desenrolar dos acontecimentos que mudaram os rumos religiosos
do continente europeu.
Rute
Salviano Almeida, Pós-Graduada em História do Cristianismo pela Universidade de
Piracicaba, vem preencher um pouco dessa lacuna existente. Esse é o seu
primeiro livro, de três, enfocando a importância da figura feminina nos
contornos da cristandade, posto que as mulheres não foram seres passivos no
decurso dos eventos e incidentes surgidos na construção das identidades
cristãs.
A história
concentra-se, como diz a capa do livro, em Margarida de Navarra, irmã do
poderoso rei católico da França, Francisco I. Margarida, ao contrário do irmão,
tinha aderido ao protestantismo e tentou de todas as formas, diante das várias
adversidades e entraves, fazer a nova doutrina ganhar terreno no território
francês. Foi um trabalho árduo e desafiador.
Naquele
momento histórico-social, a França era uma nação mui rica e próspera. Sua população
excedia e muito, praticamente todos os países europeus, inclusive Inglaterra e
Espanha. Era produtora de vinho e trigo, exportando-os e fabricando vários
tecidos e livros.
No quesito
da moralidade, estava longe dos ideais cristãos. A ética bíblica estava longe
do dia a dia dos franceses e da própria igreja.
“A galanteria era imprescindível ao homem e o
ardor sexual era louvado ao ponto de alguns homens cobrirem o sexo com uma peça
chamada codpiece [tecido em couro para proteção e aumento do pênis]. Os noivos
eram deitados em público em seu leito, na noite de núpcias, e na manhã seguinte
todos voltavam para vê-los.” P. 29-30.
“O clero francês estava depravado
quanto o restante da Europa. A igreja francesa também merecia censuras porque
seu quadro religioso era terrível”. P. 31.
Jacques
Lefèvre foi um dos pioneiros da Reforma na França. “Ele foi o primeiro católico no movimento
reformador e o último dos reformadores no movimento católico, tornando-se um
elo entre os tempos antigos e os modernos e operando a transição da teologia da
Idade Média para a teologia da Reforma.” P. 34.
Ele até
antecedeu Lutero em algumas coisas:
“A importância de Lefèvre no
movimento da Reforma deveu-se também aos seus comentários bíblicos. O
comentário dos Salmos foi publicado em 1509 e o das Epístolas de Paulo foi
publicado em 1512, nos quais antecipou muitos dos ensinos de Lutero. Em 1523
publicou uma tradução francesa do Novo Testamento e em 1530 concluiu a tradução
de toda a Bíblia”. P. 35.
Nesse
momento histórico, as mulheres ainda careciam da dignidade que lhes é peculiar,
como ser humano que são. O sexo feminino era rebaixado em todas as instâncias
da vida religiosa, social, política, familiar e comunitária. Os papeis
relegados as mulheres eram sempre de submissão e inferioridade. Os seus
direitos eram apenas cuidar dos filhos e fazerem a vontade de seus maridos e
pais. Educação para elas? Nem pensar. Nem mesmo o movimento renascentista lhes
tirou dessa condição subalterna. Mas a Reforma Protestante foi de importância
salutar na transformação da mulher na sociedade.
“O Renascimento não mudou essa
condição porque foi um movimento essencialmente burguês que restringia as
classes menos privilegiadas. A Reforma, contudo, começou a proclamar sua
concepção de que todas as pessoas eram iguais e podiam ser seus próprios
sacerdotes. Sendo assim, também as mulheres deviam estudar para obter um maior conhecimento
das doutrinas bíblicas. Foi, portanto, o protestantismo que despertou a mulher
para a educação.” P. 52.
Logicamente
algumas mulheres fugiam do fatalismo imposto. E Margarida de Navarra é o
exemplo do livro em foco. Ela nasceu em 1492, e seu irmão Francisco I, futuro
rei da França, nasceu dois anos depois. Ela era uma mulher das letras, das
artes, dos estudos teológicos, boa filha, irmã atenciosa, que sempre apoiou o
reinado de Francisco I. Casou duas vezes, visto que ficou viúva aos 33 anos,
casando depois com um jovem de 22 anos, que passou a ser rei de Navarra, um
pequeno reino entre a França e a Espanha. Teve dois filhos, embora o segundo, um
menino, tenha morrido com poucos meses. Sua primogênita, Joana, tornou-se uma
intrépida defensora da Reforma.
Foi
praticamente a rainha da França, devido a sua influência no reino, nos
primeiros anos de Francisco I. Sabia conduzir com maestria os negócios do Estado,
sendo diplomata, enfermeira de seu irmão, quando este esteve doente,
embaixadora, supervisora do exército em tempos de batalha e conselheira.
“Margarida atraía para a corte
francesa poetas, filósofos, teólogos e escritores que reconheciam nela não
somente uma ‘patronese’ das artes, como também alguém com quem podiam conversar
de igual pra igual.” P. 111.
Margarida
destacava-se pelas muitas caridades que fazia ao povo mais pobre da França. E
também aos que aderiam à causa protestante, que estavam sofrendo perseguições em
seus respectivos países.
“Sua caridade não tinha limites e
excedia sua renda. Quando qualquer caso de angústia peculiar lhe era relatado, ia visitar os
sofredores e os inquiria sobre a situação. Em caso de doenças, enviava seus
próprios médicos para visitar os doentes. Também dava dinheiro e o que mais
fosse necessário aos seus súditos carentes.” P. 127.
“Ela gastava a maior parte de sua
renda com pensões para os pobres de seu reino, custeando uma pequena nação de
órfãos, aflitos, idosos e decrépitos, cujas vidas sobreviveram por causa dela.
Enviou grandes somas para os refugiados luteranos na Suíça e na Alemanha.
Consigo mesma, cotundo, gastava muito pouco.” P. 128.
Com a
fundação do Colégio de França, importante instituição para fazer frente à
Sobornne, Margarida e seu irmão estimavam a presença do grande humanista Erasmo
de Roterdã como diretor da escola, mas ele declinou o convite. Outra figura
convidada foi o conhecido reformador Melanchton, mas este também não pôde ir. O
pensamento de Margarida em relação à virgem Maria, a eucaristia, as missas, a
predestinação, a justificação diante de Deus apenas pela fé, sua apreciação da
literatura luterana causaram-lhe repulsa pelos sacerdotes católicos da
Sobornne. Ela desejava uma igreja purificada, livre da imoralidade e longe da
teologia escolástica. Porém, era muito mais tolerante que os católicos e os desafetos
destes, os reformadores. Ela mesma abrandou sua estima por Calvino, por este
ser muito dogmático e intolerante em questões doutrinárias.
Jacques
Lefêvre foi quem inicialmente lhe inculcou as boas novas da Reforma. Ele por
aderir as ideias luteranas passou a ser persona
non grata pelos fanáticos da Sobornne, desesperados com o crescimento dos
dissidentes.
“Talvez ninguém represente melhor
os sentimentos que inspiraram o começo do movimento da Reforma na França como
Margarida, porque, além de afetuosa, era cheia de coragem e entusiasmo. Ela ouvia
avidamente a pregação de Lefèvre, Roussel e desejava aprender o caminho da
salvação e cooperar na divulgação das ideias da Reforma.” P. 145.
Margarida
juntou esforços para converter o rei e sua mãe, mas sem sucesso. Em várias ocasiões
intercedeu a seu irmão para que prisioneiros religiosos acusados de heresia
pela Sobornne fossem soltos, obtendo êxito em muitos de seus pedidos.
“[...] pode ser comprovado que a
atuação de Margarida na defesa e proteção dos reformadores foi de grande valia
para a causa da Reforma. Sua posição privilegiada concedeu os meios para atuar,
porém foram a sua fé e compaixão que a motivaram a agir”. P. 151
Devido as
suas ideias, escritos e alguns de seus livros serem conhecidos por todos,
tentaram assassiná-la duas vezes. Ela foi uma exímia escritora e poetisa, que
através da literatura expressava a sua fé em Cristo, dentro dos ideias
reformistas. Em suas obras, não faltavam críticas a hipocrisia dos monges e
abades católicos.
Depois da
morte do rei, seu irmão, Margarida não viveu muitos anos. Faleceu em 1549, aos
57 anos de idade, depois de ter militado em favor da Reforma, enfrentando
inúmeros momentos tempestuosos lhe que vieram. Sua morte foi muitíssimo
lamentada poetas, eruditos e pelos mais pobres, que ela tanto socorreu.
Vale lembrar,
que Margarida não foi nenhuma santa, mártir, e que foi sujeita a todo tipo de
defeitos e paixões. Não teve uma vida perfeita. Humana simplesmente humana. Conquistou,
acertou, errou... Foi conivente em muitos momentos com os erros de seu irmão,
calando-se diante das injustiças cometidas. Mas seus feitos benéficos em favor
dos reformadores perseguidos e dos pobres estão registrados como suas marcas
indeléveis, frutos de sua convicção de que assim, o cristão deve se portar.