CARR, Edward Hallet. Que é história? 10ª reimpressão. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
A princípio quando olhamos para esse livro, com uma capa tão
simples e sem graça, é muito fácil descartá-lo como uma obra obscura e sem
muita importância. Porém, apesar da simplicidade da capa, o livro em si, não é
nada simplista. Edward Hallet Carr, que foi Professor da Universidade do País
de Gales e membro do Trinity College da Universidade de Cambridge, é referência
sempre atual quando o assunto é Teoria da História.
Pela segunda vez estou lendo essa obra, e possivelmente daqui
a alguns anos a lerei de novo. O Carr possui uma destreza formidável para
tratar do relacionamento do Historiador com os Fatos, as Causas, os Juízos de
Valores e o Progresso na História. Trabalha cada uma dessas facetas
magistralmente, elucidando muitos pontos e deixando, é claro, muitas perguntas
no ar. Todos esses temas são trabalhados única e exclusivamente para tentar
responder à simples, porém, insolúvel pergunta: “O que é História?”
Um olhar desatento pode chegar à conclusão de que o Carr é um
relativista histórico. Mas essa interpretação dele não procede. Já vi alguns
citarem partes isoladas desse livro do Carr, para evidenciar o pós-modernismo
dele. O que é um erro. O Carr apenas enfatiza a subjetividade do Historiador
diante de seu objeto de estudo (os Fatos), contrastando com a ênfase exagerada
que os Historiadores do século XIX davam a objetividade do pesquisador na
prática historiográfica. Ele não nega a objetividade do Historiador, apenas a
coloca no seu devido lugar. Incentiva os Historiadores a teorizarem mais sobre
o fazer historiográfico.
Reconheço que muitos historiadores de hoje estão mortos
porque não têm teoria. Mas a teoria que eles precisam é de uma teoria da
história e não resgatada de fora. P. 31.
Essa mesma deficiência ainda impera nos cursos de graduação.
Lembro-me que praticamente nenhum aluno se interessava por epistemologia
histórica. Pelo contrário, achavam irrelevante estudar a parte filosófica da
coisa. O primeiro texto que nos deparamos sobre Teoria da História, foi do
Júlio Arostegui, senti um certo descontentamento da parte dos meus colegas mais
próximos. Pensei: “Esse pessoal não entendeu nada do texto e da importância do
que o Arostegui disse.”
Continuando, o Carr diz:
"Quando tentemos (“sic”) responder à pergunta: ‘Que é
história?’ nossa resposta, consciente ou inconscientemente reflete nossa
própria posição no tempo, e faz parte da nossa resposta a uma pergunta mais
ampla: que visão nós temos da sociedade em que vivemos?" P. 44.
É por isso que ainda não se tem, e talvez nunca haja uma
resposta completa e definitiva do que realmente é História! Os Historiadores
estão no mesmo time dos outros acadêmicos do conhecimento, tais como os
Filósofos, que se debatem sobre o que é Filosofia; dos
Biólogos/Físicos/Químicos, sobre o que é Ciência; e etc. Mas ao contrário dos céticos
mais fanfarrões de plantão, mesmo com essa deficiência epistemológica (se é que
podemos considerar uma deficiência) nas diversas disciplinas do conhecimento, o
mesmo tem avançado em diversas áreas. A subjetividade anda lado a lado com a
objetividade.
"A teoria empírica do conhecimento pressupõe uma
separação completa entre sujeito e objeto. Fatos, como impressões sensoriais,
impõem, de fora, ao observador e são independentes de sua consciência. [...]
Isto é o que se pode chamar visão ‘senso comum’ da história. A história
consiste num corpo verificado de fatos." P. 45.
Há um elemento de subjetividade muito forte na prática
historiográfica. Não atentar ou reconhecer isso, é cair na ingenuidade do
século XIX. Mas nunca é demais lembrar que por mais que o Historiador selecione
o que irá dizer, a objetividade continua presente. Se assim não fosse, esse
enunciado do Carr não mereceria crédito nenhum.
"O historiador é necessariamente um selecionador. A convicção
num núcleo sólido de fatos históricos que existem objetiva e independentemente
da interpretação do historiador é uma falácia absurda, mas que é muito difícil
de erradicar." P. 48.
Alguns eventos o Historiador pode omitir por não achar
relevante para o tema ou período historiado. Ele estando comprometido, por
exemplo, com uma visão religiosa, pode dar mais ênfase ao contexto
sócio-religioso da época estudada, enquanto que o estudioso marxista pode levar
em conta apenas os fatos ligados a questões econômicas e luta de classes. É
mais ou menos isso. Os fatos passam a ser relativos à escola de interpretação
adotada pelo Historiador.
"[...] eu mesmo não estou convencido de que o abismo que
separa o historiador do geólogo é em alguma medida mais profundo ou mais
intransponível do que o abismo que separa o geólogo do físico." P. 118.
Tentando entender o porquê:
Geologia: lida com eventos únicos, não observados diretamente
e não repetíveis do passado, mediante as impressões digitais deixadas pelos
fósseis. Cabe ao Geólogo determinar, se possível, é claro, a integridade,
datação e confiabilidade do tal fóssil, e interpretá-lo encaixando-o na
História da Terra.
História: lida com eventos únicos, não observados diretamente
e não repetíveis do passado, mediante os testemunhos, relatos, crônicas, livros
e artefatos deixados por seres humanos. O ofício do Historiador é determinar,
se possível, é claro, a integridade do testemunho, datação, confiabilidade da
testemunha e etc, e interpretá-la de acordo com sua perspectiva
historiográfica, encaixando-o na História da humanidade.
As semelhanças são muitas. Se não é negada objetividade na
Geologia, não se pode negar objetividade na História. Claro que a subjetividade
tanto do Geólogo como do Historiador estão a todo tempo no processo de
pesquisa, mas, se não fosse o elemento subjetivo, nenhum e nem outro estariam
estudando e pesquisando as suas respectivas áreas. Um ato da vontade
(subjetividade) foi o que os tornou Geólogo ou Historiador. Devo esse
entendimento ao Filósofo Norman Geisler.
E depois de tanto argumentar sobre a subjetividade do
Historiador e aparentemente trazer uma interpretação pós-moderna relativista, Carr
dá um banho de água fria nos pós-modernos mais empolgados:
"'Cinismo' representa a visão, da qual citei diversos
exemplos, de que a história não tem sentido, ou tem inúmeros sentidos
igualmente válidos ou não válidos, ou o sentido que arbitrariamente resolvemos
dar-lhe." P. 143.
Fico feliz com os Historiadores que se debruçam no fazer
historiográfico tendo uma linha de pensamento teórico-filosófica próxima da
visão do Carr. Antes estarem próximos dele, a estarem próximos de Haiden White,
por exemplo. Leitura e estudo mui proveitosos. Livro altamente recomendado.