quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Justiça: o que é fazer a coisa certa


SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

Livro bom? Bom não. Excelente.

Michael Sandel (Ph.D em Filosofia Política na Universidade de Oxford) presenteia os seus leitores com as principais controvérsias éticas, políticas e sociais, que versam a vida moderna. O seu curso de Filosofia é simplesmente o mais procurado na Universidade de Harvard, devido a sua acurácia e facilidade em expor teorias político-filosóficas complexas, numa linguagem acessível a todos.  Tudo é problematizado, e o autor tenta de todas as formas ser imparcial em suas análises, sempre colocando o leitor a par das objeções e fraquezas das visões apresentadas. Sandel mostra-se favorável a certas visões de mundo. A visão aristotélica do que seja a “vida boa” é um exemplo. As cotas raciais também são palatáveis, segundo Sandel.

"A vida em sociedades democráticas é cheia de divergências entre o certo e o errado, entre justiça e injustiça. Algumas pessoas defendem o direito ao aborto, outras o consideram um crime. Algumas acreditam que a justiça requer que o rico seja taxado para ajudar o pobre, enquanto outras acham que não é justo cobrar taxas sobre o dinheiro recebido por alguém como resultado do próprio esforço. Algumas defendem o sistema de cotas na admissão ao ensino superior como uma forma de remediar erros do passado, enquanto outras consideram esse sistema uma forma injusta de discriminação invertida contra as pessoas que merecem ser admitidas pelos próprios méritos. Algumas rejeitam a tortura de suspeitos de terrorismo por a considerarem um ato moralmente abominável e indigno de uma sociedade livre, enquanto outras a defendem como um recurso extremo para evitar futuros ataques." P. 31.

Esses e mais uma dezena de temas explosivos vão sendo um a um comentados e escrutinados por Sandel. Por vezes ele dá o seu parecer. Mas nos primeiros temas levantados, ele apenas explica o que os diferentes teóricos têm a dizer.

Sobre a crise financeira de 2008, Sandel conta uma história de embrulhar o estômago de qualquer um:

“Em outubro de 2008, o presidente George W. Bush pediu 700 bilhões de dólares ao Congresso para socorrer os maiores bancos e instituições financeiras do país. A muitos não pareceu justo que Wall Street tivesse usufruído de enormes lucros nos bons tempos e agora, quando a situação estava ruim, pedisse aos contribuintes que assumissem a conta. Mas parecia não haver alternativa. Os bancos e as financeiras tinham crescido tanto e estavam de tal forma envolvidos com cada aspecto da economia que seu colapso poderia provocar a quebra de todo o sistema financeiro. Eles eram ‘grandes demais para falir’.

[...]

Vieram então as benesses. Pouco depois que o dinheiro do socorro financeiro (bailout) começou a circular, novas informações revelaram que algumas das companhias, agora com o auxílio de recursos públicos, estavam agraciando seus executivos com milhões de dólares em bônus. O caso mais ultrajante envolveu o American International Group (AIG), um gigante dentre as companhias de seguros levado à ruína pelos investimentos de risco feitos por sua unidade de produtos financeiros. Apesar de ter sido resgatada com vultosas injeções de fundos governamentais (totalizando 173 bilhões de dólares), a companhia pagou 165 milhões de dólares em bônus a executivos da própria divisão que havia precipitado a crise; 73 funcionários receberam bônus de 1 milhão de dólares ou mais.” P. 18, 19. 

Outra de dá nojo é como o conhecido Economista Milton Friedman concebe a liberdade individual:

"[De acordo Friedman], o governo também viola a liberdade individual quando cria leis contra a discriminação no mercado de trabalho. Se os empregadores quiserem discriminar com base em raça, religião ou qualquer outro fator, o Estado não tem o direito de impedir que eles ajam assim. Na opinião de Friedman, 'tal legislação envolve claramente a interferência na liberdade dos indivíduos de assinar contratos voluntários entre si'." P. 69.

O que me assusta de verdade é saber que existem pessoas, que pensam exatamente igual, ou semelhante a ele.

Sandel explicita a teoria moral de Kant, que não é um Filósofo fácil de ser entender. O Imperativo Categórico é um dos pilares da Filosofia Moral. Aquela historinha de que as pessoas devem ser tratadas como um fim e não como um meio. Os seres humanos, como seres sencientes, capazes de perceberem a si mesmos e o mundo ao redor, merecem ser tratados fins em si mesmos. Kant era diametralmente oposto ao Utilitarismo de Jeremy Benthan e John Stuart Mill, Filósofos que também foram trabalhados por Sandel. Mas para Kant o aumento da felicidade da maioria não é a finalidade da moral, idéia defendida pelos utilitaristas. 

“[...] tentar tomar como base para os princípios morais os desejos que porventura tivermos, é uma maneira errada de abordar a moral. Só porque uma coisa proporciona prazer a muitas pessoas, isso não significa que possa ser considerada correta. O simples fato de a maioria, por maior que seja, concordar com uma determinada lei, ainda que com convicção, não faz com que ela seja uma lei justa.” P. 119.

De acordo com Sandel, Kant negava que a Ciência teria qualquer prerrogativa de dizer algo de substancial sobre a nossa capacidade como agentes livres, visto que ela lida com o mundo natural, e na com as abstrações filosóficas, tais como a livre agência humana. 

“[...] a ciência pode investigar a natureza e indagar sobre o mundo empírico, mas não pode responder a questões morais ou negar o livre-arbítrio, porque a moralidade e a liberdade não são conceitos empíricos. Não podemos provar que elas existem, mas também não podemos explicar nossa vida moral sem partir do pressuposto de que elas existem.” P. 140.

O Imperativo Categórico é muito bonitinho e bem concatenado, conforme vai sendo explicado, mas se mostra um verdadeiro absurdo, quando não podemos nem mentir para um assassino, sob a pecha de sempre falarmos a verdade. Para Kant, não podemos mentir em hipótese alguma. Não importa as consequências ruins que dizer a verdade possa gerar.

“Kant é muito rigoroso quanto à mentira. Em Fundamentação, a mentira é o principal exemplo do comportamento imoral. Mas suponhamos que uma amiga esteja escondido em sua casa e um assassino bata à sua porta procurando por ela. Não seria certo mentir para o assassino? Kant diz que não. O dever de dizer a verdade deve prevalecer, independentemente das consequências.” P. 143.

Difícil de engolir essa. Sandel até tenta amenizar o lado de Kant, nas páginas seguintes, mas ele não é bem sucedido. As artimanhas kantianas não são convincentes. Há maneiras de enganar o ladrão, falsificando a informação, sem cair em erro moral. Depende da definição que temos do que seja uma “mentira”. Temos a obrigação de dizer a verdade a um assassino? Não, não temos. Pensando assim, vejo que no exemplo citado, podemos dizer ao assassino, que a nossa amiga definitivamente não está em nossa casa, sem incorrermos num erro moral. 

Sandel cita um caso, que definitivamente não se configura como um valor moral:

“[...] há alguns anos, a Universidade de Maryland tentou combater um problema generalizado de cola e pediu aos alunos que assinassem termos de compromisso comprometendo-se a não colar. Como incentivo, aqueles que assinaram o termo receberam um cupom de desconto de 10% a 25% para utilizar no comércio local. Não se sabe quantos alunos prometeram não colar de olho no desconto na pizzaria. Mas a maioria de nós concordaria que a honestidade comprada não tem valor moral.” P. 124.

Um dos Filósofos amplamente trabalhados é John Rawls, apesar dele ser um liberal, sua teoria da justiça, difere do conceito em voga de meritocracia. Para ele, se temos essa ou aquela qualidade, não é porque a conquistamos com nossos esforços, destreza e habilidades. Foi sorte.

"Como [Rawls] nos lembra, 'ninguém merece ter maior capacidade natural ou ocupar um ponto de partida privilegiado na sociedade'. Tampouco é mérito nosso o fato de vivermos em uma sociedade que por acaso valorize nossas qualidades particulares. Isso é fruto da nossa sorte, e não da nossa virtude." P. 191.

Surpreendentemente, Sandel não acha que devemos deixar nossas crenças morais e baseadas em nossas religiões particulares fora da arena pública e política. Isso é um anátema para muitos secularistas, ávidos pelo laicismo nas discussões políticas. Sandel mostra que a coisa não é tão simples assim.

"Pedir aos cidadãos democráticos que abandonem suas convicções morais e religiosas ao entrar na esfera pública pode parecer uma forma de garantir a tolerância e o respeito mútuo. Na prática, entretanto, pode acontecer justamente o contrário. Decidir sobre importantes questões públicas fingindo uma neutralidade que não pode ser alcançada é uma receita para o retrocesso e o ressentimento. Uma política sem um comprometimento moral substancial resulta em uma vida cívica pobre. É também um convite aberto a moralismos limitados e intolerantes. Os fundamentalistas ocupam rapidamente os espaços que os liberais têm receio de explorar." P. 254.

Sandel cita uma fala do Barack Obama (Presidente dos EUA 2009-2017) sobre esse tema:

"Os secularistas estão errados quando pedem aos crentes que deixem sua religião para trás antes de entrar na vida pública. Frederick Douglass, Abraham Lincoln, William Jennings Bryan, Dorothy Day, Martin Luther King — na verdade, a maioria dos grandes reformistas da história dos Estados Unidos — não somente eram movidos pela fé como frequentemente usavam a linguagem da religião para defender suas causas. Assim, dizer que homens e mulheres não deveriam levar sua 'moral pessoal' para os debates sobre políticas públicas é um absurdo. Nossa lei é, por definição, uma codificação da moralidade, grande parte dela fundamentada na tradição judaico-cristã." P. 265.

Sandel levanta várias perguntas, questionamentos, indagações; fornece várias respostas, e vários contrapontos a elas. Acho que ficam mais dúvidas do que certezas, diante do que ele expõe. Mas isso é bom. Direciona-nos a questionar e pesquisar mais a fundo as ideias que acreditamos e defendemos, seja para abandoná-la ou aprimorá-la.

Justiça: o que é fazer a coisa certa é um livro espetacular. O que citei ou falei nessas linhas não faz justiça a riqueza que ele traz em suas páginas. Merece até ser lido uma segunda vez, para que eu tenha uma percepção mais apurada da complexidade dos assuntos abordados por ele, que excedem em muito o que foi dito aqui.