ALMEIDA, Rute Salviano. Vozes
Femininas no Início do Cristianismo. São Paulo: Hagnos, 2017.
Rute Almeida tem
preenchido uma lacuna na história do cristianismo, trazendo as aventuras das personagens
femininas que também protagonizaram os vários acontecimentos importantes dessa
religião. Li o seu primeiro livro, Uma Voz Feminina na Reforma, e li a sua
segunda obra, Uma Voz Feminina Calada Pela Inquisição. Ela lançou uma terceira
literatura, Vozes Femininas no Início do Protestantismo Brasileiro, que ainda
não li. E agora, em 2017, foi lançada Vozes Femininas no Início do
Cristianismo, que acabo de ler e recomendo.
No capítulo inicial é
dado um panorama geral de como era o império romano antes, durante e depois de
Jesus. Fala-se sobre a capital Roma, sua cultura, culinária, costumes,
abastecimento de água, lazer de sua população, governo de César Augusto,
religião, magia, ritos, vícios, os abortos e infanticídios permitidos, a
relatividade dos casamentos, que eram facilmente dissolvidos pelo divórcio. Sobre
uma das crendices de Tibério, segundo Imperador, Salviano nos diz:
“Tibério, imperador romano sucessor de Augusto, era
bastante supersticioso e tinha pavor dos trovões; quando havia tempestade,
nunca deixava de pôr na cabeça uma coroa de louros, crendo que as folhas o
livrariam dos raios.” P. 54.
No segundo capítulo são
nos dadas informações preciosas sobre o cristianismo primitivo. A liturgia do
culto cristão no século II, a práticas de caridade, casamento e criação dos
filhos, as primeiras literaturas cristãs, os primeiros líderes do cristianismo
pós-apostólico, as perseguições aos cristãos, celibato, a hierarquia dentro da
comunidade de fiéis, gnosticismo, salvação pelas obras, entre outros. Sobre o
cuidado dos cristãos para com as crianças, está escrito:
“Numa cultura na qual o infanticídio e o abandono
de crianças eram práticas comuns, as igrejas cristãs se empenharam na tarefa de
cuidar de crianças indesejadas e órfãs.” P. 76.
No capítulo três, Salviano
nos mostra como se configurava o sexo feminino na sociedade romana nos
primeiros séculos. Educação e matrimônio das mancebas, o papel de esposa e a
criação dos filhos, as vaidades femininas (cremes faciais, penteados, perfumes,
roupas, moda, roupas, jóias, enfeites), religião feminina. Sobre as mulheres
cristãs, estas estavam proibidas de casar com quem não professasse o
cristianismo. A sua função na igreja, a opinião dos líderes sobre o sexo
feminino, o papel do sexo no seio da comunidade cristã, são alguns dos temas
abordados. Os pais da igreja eram bem machistas, consideravam a mulher, um ser
de segunda classe. Um exemplo que deixa isso bem manifesto está num escrito de
Tertuliano (160-220 D.C):
“Tu dá a luz na dor e na angústia, mulher; sofres a
atração do teu marido e ele é teu senhor. E ignoras que Eva és tu? Está viva
ainda, neste mundo, a sentença de Deus contra o teu sexo. Vive, como se impõe,
como acusada. És tu a porta do diabo. Foste tu que quebraste o selo da Árvore;
foste a primeira a desertar da lei divina; foste tu que iludiste aquele que o
diabo não pode atacar; foste tu que tão facilmente venceste o homem, imagem de
Deus. Foi a tua paga, a morte, que causa a morte do próprio filho de Deus. E
pensa tu em cobrir de ornamentos as tuas túnicas de pele?” P. 147.
O capítulo quatro fala
sobre as perseguições sob o governo do imperador Trajano juntamente com as
cartas entre ele e Plínio, o jovem, sobre como proceder em relação aos
cristãos, as primeiras defesas escritas pelos pais da igreja, respondendo as
acusações injustas, e, finalmente, Salviano entra no assunto principal: as
mulheres cristãs dos primeiros século da igreja. Houve perseguições nos
governos de Marco Aurélio e Sétimo Severo, onde mulheres da igreja foram duramente
punidas por sua fé, como Blandina, Felicidade e Perpétua. As três são
resumidamente biografadas. Vários suplícios de mulheres são narrados por
Eusébio de Cesareia, Historiador do quarto século. Sobre a morte de Perpétua,
Salviano revela a sua coragem diante da morte:
“Perpétua, porém, padecendo com um gladiador pouco
destro e com mão trêmula, viu-se obrigada ela mesma a levar a espada à própria
garganta, indicando o lugar onde deveria ser cortada e assim foi feito.” P. 185.
O quinto capítulo fala
sobre as mulheres do deserto, viúvas, diaconisas. São Ama Sara, Princípia, Ama
Sinclética, Marcela, Fabíola, Olímpia. Todas elas deram grandes contribuições
para o crescimento do cristianismo, doando seus bens, tempo e dedicando suas
vidas a ajudar os mais pobres. Mulheres desprendidas, que não se importavam
mais com as coisas desse mundo, mais almejavam agradar o seu deus, para
alcançar o mundo vindouro. Até os pais
da igreja Jerônimo e João Crisóstomo tinham grande apreço por algumas dessas
mulheres, reconhecendo o inestimável valor delas no seio da comunidade cristã. Sobre
a sede de conhecimento de Marcela, o livro tem a dizer:
“A insaciável curiosidade intelectual era o que
mais havia de admirável em Marcela. Ela tinha fé, mas desejava conhecimento, e
o desejava da fonte mais confiável. Jerônimo, um dos principais nomes do
cristianismo, era procurado por ela seguidamente com as questões mais difíceis.
Marcela conhecia grego e adquiriu reputação por sua exegese bíblica detalhada e
literal.” P. 214.
O capítulo sexto traz
mais histórias de mulheres desprendidas, em que algumas abraçaram o celibato, a
vida contemplativa e se entregaram completamente a causa da igreja. Macrina
(irmã dos pais capadócios Gregório de Nissa e Basílio de Cesareia), Mônica (mãe
de Agostinho), Melânia (a anciã), Paula e Eustóquia. A Vulgata Latina, famosa tradução
da Bíblia, teve a participação de duas dessas mulheres.
“Paula e Eustóquia foram companheiras fieis de
Jerônimo. Ele ensinava latim para as crianças do povo, grego e hebraico para as
monjas e elas, que já dominavam as línguas bíblicas, tornaram-se suas
secretárias, ajudando-o em sua tradução da Bíblia para o latim, conhecida como a
Vulgata.” P. 282.
O derradeiro capítulo
revela-nos as peregrinações de duas mulheres que se destacaram em sua época – Egéria
e Melânia (a jovem). Egéria foi uma itinerante, visitando os lugares das
histórias bíblicas, meditando e orando com os monges cristãos com os quais se
deparava. Melânia (a jovem) tornou-se monja, e fundou monastérios (feminino e masculino).
Era muito rica e abriu mão de toda a sua riqueza, investindo o seu dinheiro a
causa cristã. Quanto a Egéria, grande foi a sua contribuição na descrição dos
lugares que visitou:
“O que diferencia Egéria de outros peregrinos de
sua época é exatamente essa descrição de seu itinerário, que é uma das mais
antigas narrativas de viagens aos lugares santos da Palestina. [...] Mesmo não
sendo uma escrita clássica, a autora escreveu de forma direta e espontânea, com
abundância de detalhes e descrições não só de lugares, mas de pessoas e
liturgias.” P. 301-302.
Livro muito bom. Uma
obra muito proveitosa para quem gosta de estudar a história da igreja cristã.