WIESEL, Elie. A Noite. Rio de Janeiro: Sextante, 2021. (PDF).
“– Meu Deus, Senhor do Universo, em tua grande misericórdia, tem piedade de nós…”
O holocausto (ou shoah para os judeus) parece ser o paradigma definitivo quando o assunto é genocídio. É o capítulo da história humana que os pesquisadores, seja de qual área forem, continuam abismados, estupefatos e assustados diante dos horrores e crimes hediondos que aconteceram nos campos de concentração nazista. É inexplicável e descabido os acontecimentos dentro daquelas cercas! Guerras e atrocidades semelhantes anteriores/posteriores também nos assustam, mas a máquina assassina de Hitler continua sendo a mais emblemática em nossas mentes.
No entanto, não vivenciamos na pele as dores e horrores desses lugares. Apenas podemos vislumbrar de modo superficial e teórico o que é ter sua família (pai, mãe e filhos) humilhada, espancada, separada e morta, por serem de uma etnia diferente e demonizada. Choramos, refletimos e nos debatemos, mas no final das contas, felizmente, ficamos apenas nisso mesmo, pois só quem vivenciou essa calamidade e sobreviveu têm real noção do quão traumatizante foi passar por tudo isso.
Elie Wiesel é um judeu sobrevivente do nazismo. Sua mãe e irmão foram separados dele e de seu pai quando foram levados para os campos de concentração, enquanto ele ficou com o seu pai até a morte deste, já no final da guerra, faltando poucas semanas para a derrota da Alemanha. Seu pai não resistiu a tanto sofrimento e torturas.
Houve momentos em que o estado de torpor foi tão intenso, que a apatia e letargia de Wiesel o fizeram indiferente ao espancamento de seu pai.
“Meu pai, de repente, foi tomado de cólicas. Levantou-se, foi até o cigano e perguntou educadamente, em alemão:
– Com licença… Pode me dizer onde fica o banheiro?
O cigano o fitou longamente, dos pés à cabeça. Como tentando convencer a si mesmo de que o homem que lhe dirigia a palavra era mesmo uma criatura de carne e osso, um ser vivo com corpo e barriga. E de repente, como que despertando de um sono letárgico, lascou em meu pai uma bofetada tamanha que ele foi ao chão e voltou de quatro para o seu lugar.
Fiquei petrificado. O que tinha acontecido comigo? Acabavam de bater no meu pai na minha frente e eu não tinha sequer pestanejado. Tinha olhado e ficado quieto. Ainda ontem, teria cravado as unhas naquele criminoso. Teria mudado tanto assim? Tão rápido? O remorso começou a me corroer.” P. 61-61.
O que me chamou a atenção neste livro é que diante do sofrimento que passou, Wiesel perdeu a fé em Deus. Algo completamente normal e cabível numa situação tão extrema quanto a que ele passou.
Quando perguntado sobre ter escapado com vida do campo de concentração, ele responde:
“Diria que foi um milagre? Não, não o direi. Se os céus podiam ou queriam realizar um milagre em meu favor, poderiam ou deveriam ter feito o mesmo por outros mais merecedores. De modo que só posso agradecer ao acaso.” P. 13-14.
Em outras partes do livro, ele volta a descrença em Deus e em sua providência:
“Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram minha fé para todo o sempre. [...] Nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram meu Deus e minha alma, em que meus sonhos assumiram a face do deserto.” P. 25.
“‘O que és Tu, meu Deus’ – pensava eu, cheio de ira –, ‘se comparado a essa multidão sofrida que vem Te gritar sua fé, sua ira, sua revolta? O que significa a Tua grandeza, Senhor do Universo, diante de toda essa fraqueza, diante dessa decomposição, dessa podridão? Por que perturbar mais ainda suas mentes adoecidas, seus corpos enfermos?’” P. 87.
“Hoje, eu não implorava mais. Não era mais capaz de gemer. Pelo contrário, me sentia muito forte… Eu era o acusador. E o acusado: Deus. Meus olhos tinham se aberto e eu estava só, terrivelmente só no mundo, sem Deus, sem homem. Sem amor nem piedade. Eu já não passava de cinzas, mas me sentia mais forte que esse Todo-Poderoso a quem por tanto tempo devotara minha vida. No meio daquela assembleia de oração, eu era como um observador estrangeiro.” P. 89.
Sobre celebrar a festa judaica do Yom Kippur no campo, novamente seu recém ateísmo vem a tona:
“Não jejuei. Primeiro, para agradar ao meu pai, que me proibira de fazê-lo. Depois, porque já não tinha motivo nenhum para jejuar. Já não aceitava o silêncio de Deus. Ao ingerir minha tigela de sopa, via naquele gesto um ato de revolta e protesto contra Ele. E mordisquei meu pedaço de pão. Sentia que dentro do meu peito se abrira um imenso vazio.” P. 90.
Conforme eu ia lendo seu relato, não deixei de lembrar de do Viktor Frankl, famoso psicologo, que também sofreu as agruras dos campos de concentração, mas não perdeu a fé em Deus.
Wiesel além de perdido a sua fé, também presenciou no campo de concentração a revolta e a incredulidade engolindo os últimos resquícios de fé de um rabino.
“Conheci um rabino de uma pequena cidade da Polônia, um velho encurvado, lábios sempre trêmulos. Rezava o tempo todo, no bloco, na frente de trabalho, nas filas. Recitava páginas inteiras do Talmude de memória, discutia consigo mesmo, fazia as perguntas e ele próprio as respondia. Um dia, ele me disse:
– Acabou. Deus não está mais conosco.
E, como que se arrependendo de ter pronunciado essas palavras de modo tão frio, tão seco, acrescentou, com a voz débil:
– Eu sei, não temos direito de dizer essas coisas. Sei disso. O homem é tão pequeno, tão miseravelmente ínfimo para tentar compreender os misteriosos caminhos de Deus. Mas o que eu posso fazer? Não sou um Sábio, um Justo, não sou um Santo. Sou uma simples criatura de carne e osso. Estou sofrendo o inferno na alma e na carne. Tenho olhos também, e vejo o que fazem aqui. Onde está a Misericórdia divina? Onde está Deus? Como posso, como é possível, acreditar nesse Deus de misericórdia?” P. 96-97.
A questão do sofrimento é uma faca de dois gumes. Ela pode tanto fortalecer a fé no Criador e no seu amor e cuidado, apesar de todas as dificuldades vivenciadas, como também pode ser o check mate num Deus de amor que cuida de nós. Cada pessoa sendo única, terá uma perspectiva diferente. Eu não julgo nenhuma. Certamente elas têm motivos muito fortes para sua crença ou descrença. Wiesel, o qual viveu até aos 86 anos, nunca a recuperou.