segunda-feira, 2 de abril de 2018

Histórias Íntimas: Sexualidade e Erotismo na História do Brasil



PRIORE, Mary Del. Histórias Íntimas: Sexualidade e Erotismo na História do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011. (PDF).
Muito bom. Mary Del Priore (Ph.D em História na USP), em mais um livro que vem falar sobre temas do passado de nosso país que fogem do usual. Nada de falar de política e economia. Aqui ela trata de assuntos mais empolgantes, como o subtítulo do livro diz. As transformações que o Brasil, assim como boa parte do mundo ocidental passou na área da sexualidade, não foram poucas.

Hoje, a despeito das muitas dificuldades, as mulheres estão em situação muito mais vantajosas. Não são demonizadas por não casarem virgens. Escolher não se casar e não ser mãe é uma opção legítima. Trabalham fora, são empresárias.

Os gays estão em situação mais favorável.

Os casamentos já não precisam ser para sempre.

Os filhos de pais separados não são mais vistos com desconfiança.

E etc.

Há desvantagens também. Cada momento histórico com as suas dificuldades e contradições.

Numa comparação entre passado e presente, penso que o momento atual é melhor em praticamente todos os aspectos que a Del Priore aborda em seu livro.

Vejamos algumas de sua obra.

No Brasil Colônia, peidos e arrotos eram lugar comum na convivência dos que aqui moravam, o que horrorizava os povos “avançados” da do Velho Mundo. As senhoras peidonas era aconselhado que culpassem seus cachorrinhos quando soltassem gases.

“Quanto ao asseio e às regras de civilidade, contudo, havia muito que aprender. Os moradores da Colônia ainda estavam muito próximos de comportamentos julgados selvagens na Europa. Lá, desde a Idade Moderna, já se desaconselhava arrotar ou peidar em público. Na época das reformas religiosas, no século XVI, nos vários manuais de civilidade publicados graças ao aparecimento da imprensa, se recomendava apertar os glúteos com força, ‘não deixando escapar nada de mau gosto’. Ou que os ruídos fossem abafados pelos de uma falsa tosse. Às senhoras que sofriam de gases, era sugerido ter sempre cachorrinhos como companhia. Aos pobres quadrúpedes eram atribuídos os maus cheiros ou os ruídos anormais”.
P. 17-18.

Como acontece até hoje, a igreja católica tinha horror a vaginas, atribuindo a esse órgão vários males satânicos. Penetrá-la? Só para fins de procriação, o que passasse disso, era pecado. A vagina raspada era sinal de castidade, pudor, pureza e etc. As cabeludas eram a “porta do inferno” das mulheres da vida.

“Cobrindo totalmente o corpo da mulher, a Reforma Católica acentuou o pudor, afastando-a de seu próprio corpo. [...] Os pregadores barrocos preferiam [descrever a vagina] como a ‘porta do inferno e entrada do Diabo, pela qual os luxuriosos gulosos de seus mais ardentes e libidinosos desejos descem ao inferno’. A vagina só podia ser reconhecida como órgão de reprodução, como espaço sagrado dos ‘tesouros da natureza’ relativos à maternidade. Nada de prazer. As pessoas consideradas ‘decentes’ costumavam se depilar ou raspar as partes pudendas para destituí-las de qualquer valor erótico. Frisar, pentear ou cachear os pelos púbicos eram apanágios das prostitutas. Tal lugar geográfico só podia estar associado a uma coisa: à procriação.” P. 23.

A Renascença e o Iluminismo não causaram mudanças nos comportamentos sexuais. Os velhos tabus e preconceitos descabidos que vinham da Idade Média continuavam a assustar e alienar – num certo sentido até piorando a relação que tinham com a sexualidade.

“Os séculos ditos ‘modernos’ do Renascimento não foram tão modernos assim. Um fosso era então cavado: de um lado, os sentimentos, e do outro, a sexualidade. Mulheres jovens da elite eram vendidas, como qualquer animal, nos mercados matrimoniais. Excluía-se o amor dessas transações. Proibiam-se as relações sexuais antes do casamento. Instituíram-se camisolas de dormir para ambos os sexos. O ascetismo tornava-se o valor supremo. Idolatrava-se a pureza feminina na figura da Virgem Maria. Para as igrejas cristãs, toda relação sexual que não tivesse por finalidade a procriação confundia-se com prostituição. Em toda a Europa, as autoridades religiosas tinham sucesso ao transformar o ato sexual e qualquer atrativo feminino em tentação diabólica. Na Itália, condenava-se à morte os homens que se aventurassem a beijar uma mulher casada. Na Inglaterra, decapitavam-se as adúlteras. E em Portugal, sodomitas eram queimados em praça pública.” P. 35.

Um resumo do que eram os relacionamentos:

“Na América portuguesa, entre os séculos XVI e XVIII, as intimidades foram construindo-se na precariedade e na falta de higiene. Que o diga o poeta Gregório de Matos, que nos seus versos nunca esquece o ‘fedor de Norte a Sul’ das mulheres: ‘bacalhau para a boca e mau bafo para o vaso’. Ou ‘horrível odre a feder a cousa podre’. As relações despidas de erotismo eram comuns. [...] O corpo da mulher era diabolizado. Seu útero, visto como um mal. Suas secreções e seus pelos, usados em feitiços. Seu prazer, ignorado pela medicina, por muitos homens e até por muitas mulheres. Para as que quisessem as bênçãos do sacramento do matrimônio, a virgindade era obrigatória. A tradição, dotes, heranças e bens assim obrigavam. Adultério feminino? Passível de ser punido com a morte. Afinal, os homens sentiam-se obrigados a lavar sua honra em sangue. O poder masculino dentro do casamento era total. Traições masculinas? Consideradas normais”. P. 38.

No início do século XX, as coisas começam a mudar, surgindo os primeiros filmes pornográficos.

“O filme pornográfico mais antigo de que se tem notícia é O Escudo de Ouro Ou o Bom Albergue, realizado na França em 1908: história de um soldado com uma doméstica. Em 1910, o alemão Ao entardecer mostrava uma mulher masturbando-se no quarto e a seguir cenas de felação e penetração anal com um parceiro. Considerados ilegais, tais filmes, distribuídos discretamente, eram vistos de forma ainda mais discreta. Sua posse ou visualização eram passíveis de prisão.” P. 95.

Para quem pensa que o catolicismo sempre foi a “favor” da vida, engana-se:

"Até o século XIX, a Igreja tinha certa tolerância em relação ao aborto. Acreditando que a alma só passava a existir no feto masculino após quarenta dias da concepção, e, no feminino, depois de oitenta, o que acontecesse antes da 'entrada da alma' não era considerado crime nem pecado". P. 102.

Hipocritamente a igreja católica não estava nem aí para o estupro de crianças que ocorriam no Brasil. Para essa instituição as crianças que se lasquem. Atualmente ainda é assim, pois ela esconde os seus sacerdotes pedófilos, não os entregando a justiça comum para serem julgados e condenados.

“Desde as primeiras visitas do Santo Ofício às partes do Brasil, no século XVI, inquisidores assinalavam o estupro de crianças. Meninos e meninas de seis, sete e oito anos eram violentados por adultos sem nenhum drama de consciência. Senhores sodomizavam moleques ou molecas escravas, padres faziam o mesmo aos seus coroinhas, e parentes e crianças da família participavam de uma ciranda maldita na qual um único pecado contava para a Igreja: o do desperdício do sêmen. Afinal, ele deveria ser usado exclusivamente para a procriação. E era apenas esse crime que o inquisidor perseguia. O fato de ser cometido com pequenos passava despercebido. Era coisa secreta e o silêncio protegia os culpados.” P. 108.

Não era apenas prerrogativa do cristianismo ver a homossexualidade como anomalia, a ciência médica estava crente de que possuía as provas para classificá-la como doença.

“A homossexualidade era considerada, além de imoral, uma anormalidade. Durante os anos 30, o médico Leonídio Ribeiro consagrou-se graças a estudos sobre endocrinologia, relacionando-a com as ‘anomalias do instinto sexual’. Estas seriam o reflexo de mau funcionamento das glândulas. O remédio era o transplante de testículos, inclusive de carneiros ou de grandes antropoides. Afinidades entre homossexualidade e criminalidade? Todas. O crime era uma decorrência da paixão que ‘invertidos’ nutriam entre si. Num quadro de guerras mundiais e de reforço do nacionalismo, homossexuais transformavam-se em bodes expiatórios.” P. 111-112.

Uma queixa feminina que ainda ecoa, diante de nossa hipocrisia masculina:

“A tensão entre as mudanças desejadas pelos jovens e o velho modelo repressivo era tanta que uma leitora escreve a O Cruzeiro [revista em circulação entre 1928-1975], desesperada: ‘quando uma mulher sorri para um homem é porque é apresentada. Quando o trata com secura é porque é de gelo. Quando consente que a beije, é leviana. Quando não permite carinhos, vai logo procurar outra. Quando lhe fala de ‘amor’, pensa que quer ‘pegá-lo’. Quando evita o assunto, é ‘paraíba’ [lésbica]. Quando sai com vários rapazes é porque não se dá valor. Quando fica em casa é porque ninguém a quer [...] Qual é o modo, pelo amor de Deus, de satisfazê-lo[s]?’.” P. 117-118.

O livro ainda fala sobre as famosas pornochanchadas da década de 1970; sobre o boom da Aids, logo após; e etc.