FERNANDES; Luiz Estevam; KARNAL, Leandro; MORAIS, Marcus Vinícius; PURDY, Sean. História dos Estados Unidos: Das Origens ao Século XXI. São Paulo: Contexto, 2007. (PDF).
“Aqui não se
fala do Grande Satã nem da luz que ilumina a civilização ocidental.” P. 09.
“Os EUA não
são a única fonte dos problemas do mundo.” P. 14.
"Para o
bem e para o mal, o destino do planeta está associado aos Estados Unidos da
América". P. 232.
O que
achei admirável neste livro é que os Historiadores não entraram no maniqueísmo
de que o país historiado é do mal, e que nós, latinos e o resto do mundo
(excetuando a Europa), somos suas vítimas passivas, coitadinhos e pobres almas
escravizadas por eles.
“Que país é
esse? Que cultura engendrou? Por que seduz e irrita o planeta? Existe um típico
norte-americano? Que processo histórico pode ter originado o american way of
life e como é possível explicar tal concentração de riquezas? Esse é o caminho
deste livro.” P.18.
São
colocados os fatos na mesa, de que este país, assim como qualquer outro, tem as
suas contradições, erros, idiossincrasias, cerceamento dos direitos humanos e
etc.
A relação
do mundo com os EUA gira em torno de um amor e ódio que se cruzam, se imbricam,
se misturam.
“Quando
criticamos os EUA como um país que apenas pensa em si e apenas conhece o mundo
dentro de suas fronteiras, expressamos um sentimento de pesar por não sermos
conhecidos/reconhecidos por eles.” P. 11.
"Para
uns, os EUA são a síntese de todo mal que reina no mundo, para outros, o melhor
dos mundos possíveis; para todos, um fato insuperável na análise do
globo". P. 233.
O
Historiador Leandro Karnal observa que o norte-americano atual ainda olha para
o mundo fora de suas fronteiras com a visão binária nós e eles.
“O inglês do
XIX olhava para o outro e dizia: ‘você é inferior!’; o norte-americano do XXI
dificilmente reconhece a existência do outro a não ser no código eu/antieu.” P. 11-12.
Também nos
diz que é a terra que mais recebeu imigrantes.
Uma
observação curiosa é que o analista Jean-François Revel, um francês, escreveu a
obra A Obsessão Antiamericana, em que defende os EUA e critica o seu país e a
Europa. A França e a Europa têm inveja do papel de liderança da nação
americana, em especial por causa da segunda guerra e do capitalismo. O tio Sam
sempre é criticado, porém, os seus críticos não olham para os próprios umbigos
e hipocrisias internas, que não são poucas. Revel sem meias palavras acredita
que a cultura cristã ocidental é superior as outras formas de organização
social.
De todo
modo, o livro não deixa passar despercebidos uns fatos bem embaraçosos. Os EUA
é:
“[...] o país
com mais gastos militares do mundo, com o maior número de mortes por armas de
fogo no mundo, o maior consumidor de energia per capita do mundo, o maior
emissor de dióxido de carbono, o maior produtor de lixo tóxico do planeta e o
maior produtor de lixo doméstico, entre dezenas de outras 'vitórias'
duvidosas...” P. 15-16.
A fundação
dos EUA teve por base a ideia religiosa de que eles eram o povo especial de
Deus. O destino manifestava-se rumo ao progresso e ao sucesso material, graças
a eleição divina, ainda que tenham passados por muitas dificuldades, como a
fome, em que dizimara muitos de seus colonos, fazendo com que cachorros,
felinos e serpentes, servissem como alimentos, quando da fundação de Jamestown.
Não importando as grandes dificuldades, consideravam-se o povo fiel de Deus.
Puritanos, calvinistas, reformados, batistas e etc., tiveram parte importante
nos anos iniciais e em toda trajetória dos EUA.
Tal
fidelidade a Deus pensada por eles, não os impediram de escravizar e terem um
sistema de discriminação racial que perdura até hoje no modo de ser desse país.
O livro do Karnal e cia, tem muito a falar sobre essa vergonhosa dimensão da
história norte-americana, e é nela que me concentrarei. A escravidão dos
africanos, o racismo e outras minorias, serão o meu recorte deste livro, daqui
pra frente. Trarei o lado mal desta nação, nesse quesito, consciente de que não
foi o objetivo dos autores (e isso é muito bom, como já disse no início) falar
dos EUA como “o Grande Satã”.
Vamos lá.
A
escravidão não era só de negros, mas de crianças também.
“Raptos de
crianças na Inglaterra para vendê-las como empregadas na américa, prática muito
comum no século XVII, eram outra fonte de servidão.” P. 38.
Indígenas
também serviram forçadamente aos colonos.
“Embora o fato
seja bem pouco conhecido da História norte-americana, os índios também foram
escravizados. Os colonos das Carolinas, em particular, desenvolveram o hábito
de vender índios como escravos. Em 1708, a Carolina do sul contava com 1.400
escravos índios. Essa prática permaneceria até a independência.” P. 50.
Havia uma
luz em meio a escuridão da escravatura. Algumas facções protestantes não
toleravam a servidão forçada de seres humanos.
“Grupos
quakers e menonitas recusavam a violência contra índios e também a violência da
compra de escravos negros. Porém, quakers, menonitas, católicos e puritanos
ocupavam de igual modo as terras que foram, originalmente, dos índios.” P. 53.
E os
outros grupos protestantes? Somente esses dois eram contra a escravidão? Parece
que sim.
Os
primeiros escravos da África chegaram em 1619, na Virgínia. E o primeiro negro
nascido foi William Tucker.
O livro
diz:
“Muitos
autores costumam considerar a escravidão norte-americana como a mais cruel que
a américa registrou.” P. 54.
Isso é exatamente
o contrário do que pensa Geoffrey Blainey, que é taxativo em dizer que a
escravidão norte-americana foi mais amena que na América do Sul.
“É
praticamente certo que os Estados Unidos foram superiores ao Brasil e outras
terras em seu tratamento com os escravos. Alguns observadores da escravidão
americana concordam que, em uma típica plantação de algodão ou arroz, os
barracos dos escravos eram pelo menos tão confortáveis quanto os das pessoas
mais pobres da Escócia e da Sicília; mas, fora dos barracos, não havia
liberdade.” P. 142. - BLAINEY, Geoffrey. Uma Breve História do Mundo. Curitiba:Fundamento, 2007.
(PDF).
O livro
nos conta a análise do Historiador Frank Tannenbaum, que diferenciou a
escravidão anglo-saxônica da ibérica.
Anglo-saxônica:
relações sociais individualistas, em que o escravo como um objeto tinha total
precedência sobre a sua humanidade.
Ibérica:
Relações sociais paternalistas, baseadas no Direito Romano, onde o escravo
fazia parte da sociedade. Apesar de estar sob as dores lancinantes do chicote,
ainda era visto como um ser humano.
Ao
contrário da parte sul da América, os escravos não eram obrigados a aceitarem o
Cristianismo como a sua religião.
O escravo
sendo um mero objeto, não havia punição caso ele fosse morto pelo seu dono e
empregados.
“Em outubro de
1669, uma nova lei sobre escravos determina que, se um escravo vier a morrer em
conseqüência dos castigos corporais impostos pelo capataz ou por seu amo, não
será considerado isso ‘delito maior, mas se absolverá o amo’. A lei continua
com lógica implacável: matar o escravo não é ato intencional, posto que
ninguém, intencionalmente, procura destroçar ‘seus próprios bens’. Essa lei
revela a ‘reificação’ (tornar coisa) do escravo na legislação colonial.” P. 55.
No Brasil
existiram leis que em tese puniriam os donos que chegassem a matar
arbitrariamente os seus escravos, mas os registros parecem trazer somente dois
proprietários que foram severamente punidos com a pena de morte. Eram as
Ordenanças Manuelinas. Tive conhecimento dessas leis no livro Escravismo no Brasil.
Não
conformados com a vida desgraçada que levavam, “em 1740, os escravos tentaram, em
Nova York, envenenar todo o abastecimento de água da cidade.” P. 55. Pena que o plano não vingou.
Mais ou
menos 400 mil negros foram levados para os EUA, quando do fim do período
colonial, eram cerca de 500 mil. O movimento de independência de 1776
perpetrado pelos brancos ricos não tinha em mente acabar com a servidão.
E os povos
da terra, como ficaram?
“Para os
índios, a independência foi negativa, pois, a partir dela, aumentou a pressão
expansionista dos brancos sobre os territórios ocupados pelas tribos
indígenas.” P. 82.
Uma tal
Lei de Remoção de Índios removeu em 1830 vários nativos para Oklahoma. Tirados
de suas terras, andaram milhares de quilômetros contra a sua vontade,
ocasionando a morte de milhares deles. Essa andança forçada ficou conhecida
como a Trilha das Lágrimas. Nove anos depois várias outras nações de índios
foram expulsas de suas habitações e colocadas para o Oeste. 100 milhões de
acres de terra ficaram prontas para a agricultura do “povo eleito”. Nas
reservas milhares de indígenas tiveram a morte como destino.
Enquanto
isso, os negros escravizados sabiam ler, graças a cultura protestante que
primava pela educação religiosa e leitura da Bíblia. Herança da Reforma do
século XVI, que deu grande impulso aos estudos.
Aqueles
que se posicionavam contra a escravidão, eram em sua maioria religiosos, que
enfatizavam que escravizar pessoas eram um terrível mal moral. O livro não
fala, mas a Bíblia também era usada para legitimar a passividade e obediência
dos escravos, invocando as cartas do Novo Testamento, em que a escravidão não é
em nenhum momento reprovada. O Nascimento de Uma Nação é um filme que ilustra
bem o uso da Bíblia para legitimar a servidão negra, como também para que eles
se rebelassem.
Chega
então a Guerra de Secessão, ou Guerra Civil Americana (1861-1865), sendo
vencida pelos Yankes (nortistas), tendo sido conquistada a “liberdade” tão
sonhada da comunidade negra, por séculos maltratada e agrilhoada. O negro
liberto continuou na penúria e não teve nenhuma ajuda do estado para se
realocar na nova conjuntura social que acabara de emergir. O racismo ganhava
novos contornos, com a criação da Ku Klux Klan, grupo protestante de
supremacistas brancos que odiavam e caçavam negros. Entramos no século XX, e o
racismo continua forte, tanto no sul, como norte que “libertou” os negros. As
Leis Jim Crow apareceriam e varreriam toda a nação. O lema dessas leis –
separados, mas iguais – eram na verdade o contrário. O cerne delas era que o
homem branco é superior.
“O termo ‘Jim
Crow’, nascido de uma música popular, referia-se a toda lei (foram dezenas) que
seguisse o princípio “separados, mas iguais”, estabelecendo afastamento entre
negros e brancos nos trens, estações ferroviárias, cais, hotéis, barbearias,
restaurantes, teatros, entre outros. Em 1885, a maior parte das escolas
sulistas também foram divididas em instituições para brancos e outras para
negros. Houve ‘leis Jim Crow’ por todo o sul. Apenas nas décadas de 1950 e 1960
a suprema Corte derrubaria a idéia de ‘separados, mas iguais’.” P. 126.
O racismo
estava entranhado em tudo. E na política não era diferente. Dependendo de
eleitores racistas, o então presidente Delano Roosevelt não podia ser contra a
discriminação racial, confinando a população negra a vidas subalternas.
A segunda
guerra mundial proporcionou uma certa mobilidade social as minorias, criando
vários postos de trabalhos, transformando a vida das minorias (mulheres,
negros, imigrantes), criando um espaço pela busca de mais igualdade e
direitos. Mas o caminho em busca da cidadania não seria fácil.
“[...]
segregação formal e informal, linchamento e violência policial, discriminação
no emprego, na educação e nos serviços públicos, falta de direitos políticos,
pobreza extrema – tudo isso caracterizava a vida de negros nos Estados Unidos
depois da segunda Guerra Mundial.” P. 204.
“As atitudes
raciais do governo e da sociedade, porém, mudavam lentamente e, freqüentemente,
ressurgiam as antigas tensões violentas. Discriminação e, às vezes, violência
física eram realidades enfrentadas pelos novos imigrantes mexicanos, como no
motim racista em junho de 1943, em Los Angeles, mas novamente foram os negros a
sofrerem mais com o racismo. As Forças armadas permaneceram quase totalmente
marcadas pela segregação mesmo com 700 mil negros alistados. Não menos de 242
motins raciais, provocados por tensões econômicas e sociais relativas a emprego
e moradia, explodiram em 47 cidades em 1943, inclusive Detroit, onde 34 pessoas
(25 negros e nove brancos) morreram e 700 ficaram feridas.” P. 189.
Quem
também sofreu com o racismo norte-americano foram o povo de olhinhos puxados,
durante a guerra contra Hitler e o Japão. O governo americano não levou em
conta os 75% da população de descendência japonesa que não representavam
nenhuma ameaça ao país, sendo duramente perseguidos tanto pelo governo como pela
sociedade. 110 mil nipo-americanos foram presos, tendo os seus bens caçados,
até o fim da guerra.
A
segregação racial implicava em segregação espacial, visto que a população negra
eram reservados os piores lugares para se morar, fazendo com que negros e
latinos dependessem cada vez mais do estado, emperrando o seu desenvolvimento.
Quanto a
luta pelos Direitos Civis, na década de 1960, o governo sempre foi relapso em
apoiar o movimento. Até mesmo procurou matar o líder Martin Luther King.
“[...] o chefe
do FBI, o veterano anticomunista e racista J. Edgar Hoover, fez uma campanha
clandestina contra King, grampeando seus telefones e o chantageando, além de
enviar-lhe uma carta anônima sugerindo que se suicidasse. Um relatório do
senado, em 1976, concluiu que o FBI tentou ‘destruir’ Luther King.” P. 207.
Uma figura
importante para comunidade negra foi Malcolm X, líder negro, pelo qual muitos
jovens negros vieram a adotar o islamismo como religião. Ele foi assassinado
pelas ideias de emancipação negra e denúncias feitas contra a opressão branca.
Os
Panteras Negras, grupo fundado por alunos negros da Califórnia, também tiveram
o seu quinhão de importância nos turbulentos anos 1960-70, pregando a defesa
armada, sendo brutalmente perseguidos pelo FBI. Fiz um resumo de um ótimo
documentário da Netflix sobre eles aqui:
Com o
“fim” da segregação racial conseguida pelo movimento negro dos anos 1960, as
ações afirmativas começam a operar.
“Influenciadas
pelas ações do governo federal, muitas universidades e até algumas empresas
também implementaram programas de ‘ação afirmativa’ e ‘sistemas de cotas’ na
década de 1970.” P. 207.
E as
mulheres nisso tudo?
“Mulheres
constituíram 40% da mão-de-obra economicamente ativa em 1970, mas ainda sofriam
de discriminação no emprego, na família e na sociedade como um todo. A
atmosfera tumultuada da década de 1960 criou condições para o ressurgimento do
feminismo e de lutas contra descriminação sexual.” P. 211.
No
entanto:
“Nos anos
1970, uma mobilização de mulheres conservadoras já tinha derrubado a Emenda de
direitos iguais aprovada pelo Congresso em 1972 para eliminar barreiras à
participação plena de mulheres na vida pública.” P. 226.
Os anos
1970-1990 não foram bons para a comunidade afro-americana. Vejamos:
“A situação
econômica nos guetos negros dos centros das cidades piorou ao longo dos anos
1970 e 1980. Um terço da população negra ficou abaixo da linha de pobreza, sem
recursos suficientes para educação e outros serviços públicos, carente de
emprego, treinamento e oportunidade. No fim dos anos 1990, a renda familiar
branca ficou quatro vezes maior que a das famílias negras. A estrutura familiar
foi abalada: somente 38% das crianças negras moravam em famílias biparentais em
2000. Um quarto das crianças negras vivia na pobreza. A redução do estado de
bem-estar, ao longo dos anos 1980 e 1990, também piorou as condições da vida de
negros desproporcionalmente em relação aos brancos. Frustração com o racismo
ainda existente, poucas oportunidades econômicas e violência policial
provocaram vários motins urbanos desencadeados por questões raciais em Miami,
Nova York e outras cidades nos anos 1980 e 1990.” P. 222.
E não
podendo faltar aqueles racistas que não se envergonham do seu racismo...
“[...] grupos
conservadores passaram a afirmar que as críticas feitas ao racismo, ao
machismo, à homofobia e a alguns aspectos da cultura ocidental representavam
elas próprias uma forma de ‘intolerância’.” P. 229.
Os
Historiadores Leandro Karnal, Marcus Vinícius, Sean Purdy e Luiz Estevam, deram
um show de história neste livro. Estão de parabéns pela obra, por primarem pelo
equilíbrio em não demonizar a nação norte-americana, como se os outros países
fossem o paraíso na terra e não tivessem políticas injustas e opressivas que
atrasam o desenvolvimento pleno de seus cidadãos.
Eu que
optei por mostrar um pouco do que eles falaram sobre a escravidão e o racismo.
Sendo o último, ainda bastante presente no país historiado.