segunda-feira, 26 de abril de 2021

Manifesto do Partido Comunista



ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. 2ª Ed. Portugal, Lisboa: Avante, 1997. (PDF).

“Anda um espectro pela Europa — o espectro do Comunismo.” 

Karl Marx desperta paixões! Desperta amor! Desperta ódio!

Muitos desejam que ele esteja no lugar mais quente do inferno. Motivo? Suas ideias que serviram de inspiração para os governos comunistas/socialistas do século XX, que redundaram no mais pleno fiasco, tendo a URSS o seu maior exemplo de fracasso, e, o pior, a morte de milhões e milhões de pessoas. Fora a total falta de liberdade de expressão, impressa, ideias, religião e locomoção. Os que odeiam Marx podem ainda citar os atuais governos comunistas da Coreia do Norte e Cuba, sobretudo o primeiro, onde reina o caos, a fome, os assassinatos e toda sorte de malefícios aos seus cidadãos.

Na contramão, não são poucos os que idolatram o velhinho de barba do século XIX. Professores nas cátedras de humanas, estão aos montes, para celebrar Marx e o seu “materialismo histórico”, que dizem ser o maior empreendimento intelectual para entender e dar sentido a todos os processos históricos, que estão assentados na infraestrutura econômica, de onde emerge a superestrutura (filosofia, religião, ideias). Uns ainda sonham com o utópico paraíso comunista, em que a sociedade como um todo, estará plenamente assentada na igualdade social, inexistindo as antigas relações de opressores (burguesia) e oprimidos (proletários).  

Karl Marx (1818-18830 foi um autor prolífico. Sua obra é vasta e complexa, onde poucos se atrevem a ler o seu mais monumental livro – O Capital. Nesses dois times de detratores e fãs, poucos foram aqueles que leram pelo menos metade de seus escritos, sobretudo O Capital, que não é uma obra fácil e atraente de ler, além de ser muito extensa, com mais de duas mil e quinhentas páginas! Quem é o maluco para se aventurar? Eu que não me arrisco. Prefiro ler o Manifesto do Partido Comunista e outras obras que comentam, interpretam, desvelam o pensamento de Marx e de seu companheiro intelectual Friedrich Engels (1820-1895), seja criticando, ou elogiando, ou tentando ser neutra. Muitos críticos e entusiastas de Marx, nem isso fazem. Ficam nos pequenos vídeos de cinco, dez, quinze minutos...

Em todo caso, aqui estamos no Manifesto. Este opúsculo foi lançado em 1848. Teve ainda no século XIX, diversas traduções e reedições nos vários países europeus e na América do Norte, sendo um sucesso entre os movimentos proletários, germinando as ideias que viriam a configurar o arcabouço intelectual do comunismo e, de como ele suplantaria o capitalismo burguês, dando lugar a sociedade sem classes, mais justa e igualitária.

O Manifesto começa com um ar triunfal:

“Anda um espectro pela Europa — o espectro do Comunismo. Todos os poderes da velha Europa se aliaram para uma santa caçada a este espectro, o papa e o tsar, Metternich e Guizot, radicais franceses e polícias alemães. [...] O comunismo já é reconhecido por todos os poderes europeus como um poder. Já é tempo de os comunistas exporem abertamente perante o mundo inteiro o seu modo de ver, os seus objectivos, as suas tendências, e de contraporem à lenda * do espectro do comunismo um Manifesto do próprio partido.” P. 28.

Marx e Engels dizem que a burguesia rompeu com todos os laços medievais, destruindo todas as relações então existentes. Aquele ambiente bucólico da Idade Média tinha se desfeito sem pudor. O valor de troca, o comércio, desbancaram sem piedade os laços que prendiam o homem do campo aos seus senhores naturais. A burguesia causou um racha sem volta e inexorável nas formas de viver e ver o mundo. As relações de produção foram irredutivelmente modificadas, dando lugar ao novo social, e, com ele, a um novo antagonismo entre as classes dos opressores e oprimidos. Os enganos vindos da religião e a política agora eram abertos, sem subterfúgios. O que era sagrado a burguesia dessacralizou. Tudo era movido por dinheiro e pelo dinheiro.

“Numa palavra, no lugar da exploração encoberta com ilusões políticas e religiosas, pôs a exploração seca, directa, despudorada, aberta.

A burguesia despiu da sua aparência sagrada todas as atividades até aqui veneráveis e consideradas com pia reverência. Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados pagos por ela.

A burguesia arrancou à relação familiar o seu comovente véu sentimental e reduziu-a a uma pura relação de dinheiro.” P. 32.

Com o boom da revolução industrial, a ascensão cada vez mais evidente da burguesia e a desenfreada produção cada vez mais gigantes de produtos, estes tinham ser vendidos, escoados, postos à disposição de compradores, não apenas na Europa, mas em cada recanto do planeta.

“A necessidade de um escoamento sempre mais extenso para os seus produtos persegue a burguesia por todo o globo terrestre. Tem de se implantar em toda a parte, instalar-se em toda a parte, estabelecer contactos em toda a parte.” P. 32-33.

“As relações burguesas tornaram-se demasiado estreitas para conterem a riqueza por elas gerada. — E como triunfa a burguesia das crises? Por um lado, pela aniquilação forçada de uma massa de forças produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais profunda de antigos mercados.” P. 35.

Como o sistema capitalista aí está, mais forte do que nunca, esse escoamento continua numa proporção jamais imaginada por Marx e Engels. Com a era dos eletrônicos, somos constantemente “obrigados” a trocar de celulares, televisores, notebooks, tablets e outras parafernálias digitais, todos os anos. Isso sem falar em carros, roupas... As empresas para sobreviverem, precisam estar dissimulando a todo momento, novas necessidades para vender e não ficarem para trás e falirem. Isto é uma bola de neve, pois se falirem, muitos ficarão sem empregos. Portanto, para que tudo funcione “direitinho” é preciso colocar no mercado produtos atraentes que escoem o mais rápido possível. Estamos presos em uma teia inescapável. Sem o consumo exagerado, o mundo vai à bancarrota. É salutar para o empresariado, convencer as pessoas de que elas precisam de seus produtos inovadores, para que daí possam ser gente de verdade, descoladas, alinhadas com a moda, com o que o mundo tem de melhor. Essa psicologia barata tem dado certo. É aquele velho clichê de que na sociedade capitalista, as pessoas serão vistas pelo que tem, e não pelo que são.

A dupla dinâmica escreve:

“Para o lugar das velhas necessidades, satisfeitas por artigos do país, entram [necessidades] novas que exigem para a sua satisfação os produtos dos países e dos climas mais longínquos. Para o lugar da velha auto-suficiência e do velho isolamento locais e nacionais, entram um intercâmbio omnilateral, uma dependência das nações umas das outras. E tal como na produção material, assim também na produção espiritual. Os artigos espirituais das nações singulares tornam-se bem comum. A unilateralidade e estreiteza nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis, e das muitas literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura mundial.

A burguesia, pelo rápido melhoramento de todos os instrumentos de produção, pelas comunicações infinitamente facilitadas, arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para a civilização. Os preços baratos das suas mercadorias são a artilharia pesada com que deita por terra todas as muralhas da China, com que força à capitulação o mais obstinado ódio dos bárbaros ao estrangeiro. Compele todas as nações a apropriarem o modo de produção da burguesia, se não quiserem arruinar-se; compele-as a introduzirem no seu seio a chamada civilização, i. é, a tornarem-se burguesas. Numa palavra, ela cria para si um mundo à sua própria imagem.” P. 33.

Quando eles falam da China, não tem como não lembrar do que as potências capitalistas fizeram a ela no século XIX, com as Guerras do Ópio (1839-1842, 1856-1860) que forçaram a China a abrir cinco de seus portos para a Inglaterra e outros países, e a entregar a ilha de Hong Kong aos britânicos. Era o “livre comércio” sendo imposto na base do cacete. Não bastando, ainda teve a Guerra dos Boxers, em que a Inglaterra, Rússia, França, Japão, Estados Unidos e Alemanha, invadiram a China obrigando o país a reconhecer de uma vez por todas, as concessões de que gozavam as potencias imperialistas. A ironia macabra disso tudo, é que atualmente a China está tomando conta de tudo, chegando em breve a ser a maior economia e potência mundial, comprando ações, universidades, países, impondo sua ética política, subjugando vários setores do mundo ocidental e não ocidental. O Ocidente está pagando pelos pecados de outrora?

Com a burguesia tomando conta de todos os setores de produção e venda, além dos proletários das fábricas, ela tinha os seus contestadores entre os pequenos comerciantes, camponeses... Mas Marx e Engels chegam a prever que apesar de ainda de serem reacionários, finalmente serão absorvidos na grande massa de proletários, rumo a sociedade comunista.  

“Os estados médios [Mittelstände] — o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o artesão, o camponês —, todos eles combatem a burguesia para assegurar, face ao declínio, a sua existência como estados médios. Não são, pois, revolucionários, mas conservadores. Mais ainda, são reaccionários, procuram fazer andar para trás a roda da história. Se são revolucionários, são-no apenas à luz da sua iminente passagem para o proletariado, e assim não defendem os seus interesses presentes, mas os futuros, e assim abandonam a sua posição própria para se colocarem na do proletariado.” P. 39.

A dupla Batman e Robbin afirma que o modo de pensar do proletariado é totalmente distinto dos pensamentos, ética, moral e justiça dos opressores da classe dominante. A destruição da superestrutura em todas as suas facetas burguesas deve ser colocada abaixo, para que dela surja a nova sociedade. É uma ruptura total com as verdades ditas eternas legadas pela burguesia e pelas sociedades anteriores, onde sempre foi regra a opressão de uma parte por outra. Primeiro começa-se a luta proletária em seus respectivos países, para depois irromper-se pelo mundo. Para isto acontecer, a violência é um caminho legítimo.

“As leis, a moral, a religião são para ele outros tantos preconceitos burgueses, atrás dos quais se escondem outros tantos interesses burgueses. [...] Os proletários nada têm de seu a assegurar, têm sim de destruir todas as seguranças privadas e asseguramentos privados. [...] O proletariado, a camada mais baixa da sociedade actual, não pode elevar-se, não pode endireitar-se, sem fazer ir pelos ares toda a superestrutura [Überbau] das camadas que formam a sociedade oficial. [...] Ao traçarmos as fases mais gerais do desenvolvimento do proletariado, seguimos de perto a guerra civil mais ou menos oculta no seio da sociedade existente até ao ponto em que rebenta numa revolução aberta e o proletariado, pelo derrube violento da burguesia, funda a sua dominação.” P. 40.

“À medida que é suprimida a exploração de um indivíduo por outro, é suprimida a exploração de uma nação por outra. [...] Será preciso uma inteligência profunda para compreender que com as relações de vida dos homens, com as suas ligações sociais, com a sua existência social, mudam também as suas representações, intuições e conceitos, numa palavra, [muda] também a sua consciência?” P. 48.

“A revolução comunista é a ruptura mais radical com as relações de propriedade legadas; não admira que no curso do seu desenvolvimento se rompa da maneira mais radical com as ideias legadas.” P. 49.

“Para o lugar da velha sociedade burguesa com as suas classes e oposições de classes entra uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos.” P. 51.

Neste aspecto é que recaem muitas críticas a Marx, devido aos seus desejos(?) de solapar tudo que tinha sido construído até então pela civilização ocidental: seus valores que regulam a civilização. “Derrube violento da burguesia” – Não era difícil um proletário pensar assim, diante das agruras que sofria nas fábricas insalubres em que trabalhava que nem um animal, por horas a fio, para ganhar um salário miserável, que dava apenas para mal se alimentar e enriquecer os seus patrões. Eu não teria piedade alguma. 

O declínio da burguesa e poder nas mãos do proletário chegaria muito em breve. Essa é uma das “profecias” de Marx que mais causa riso em seus críticos, pois como sabemos, ela não se confirmou.

“Torna-se com isto evidente que a burguesia é incapaz de continuar a ser por muito mais tempo a classe dominante da sociedade e a impor à sociedade como lei reguladora as condições de vida da sua classe. Ela é incapaz de dominar porque é incapaz de assegurar ao seu escravo a própria existência no seio da escravidão, porque é obrigada a deixá-lo afundar-se numa situação em que tem de ser ela a alimentá-lo, em vez de ser alimentada por ele. A sociedade não pode mais viver sob ela [ou seja, sob a dominação da burguesia], i. é, a vida desta já não é compatível com a sociedade.

A condição essencial para a existência e para a dominação da classe burguesa é a acumulação da riqueza nas mãos de privados, a formação e multiplicação do capital; a condição do capital é o trabalho assalariado. O trabalho assalariado repousa exclusivamente na concorrência entre os operários. O progresso da indústria, de que a burguesia é portadora, involuntária e sem resistência, coloca no lugar do isolamento dos operários pela concorrência a sua união revolucionária pela associação. Com o desenvolvimento da grande indústria é retirada debaixo dos pés da burguesia a própria base sobre que ela produz e se apropria dos produtos. Ela produz, antes do mais, o seu  próprio coveiro. O seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.” P. 41.

Em uma das citações anteriores, Marx/Engels falam sobre o proletariado “destruir todas as seguranças privadas e asseguramentos privados.” O que eles queriam dizer com isso? Muito se fala que Marx era contra a propriedade privada, e queria a sua total abolição. O Manifesto explica o que ele quis dizer com isso.

“Neste sentido, os comunistas podem condensar a sua teoria numa única expressão: supressão [Aufhebung] da propriedade privada.

Têm-nos censurado, a nós, comunistas, de que quereríamos abolir a propriedade adquirida pessoalmente, fruto do trabalho próprio — a propriedade que formaria a base de toda a liberdade, actividade e autonomia pessoais.

Propriedade fruto do trabalho, conseguida, ganha pelo próprio! Falais da propriedade pequeno-burguesa, pequeno-camponesa, que precedeu a propriedade burguesa? Não precisamos de a abolir, o desenvolvimento da indústria aboliu-a e abole-a diariamente.” P. 43.

Marx/Engels continuam:

“Mas será que o trabalho assalariado, o trabalho do proletário, lhe cria propriedade? De modo nenhum. Cria o capital, i. é, a propriedade que explora o trabalho assalariado, que só pode multiplicar-se na condição de gerar novo trabalho assalariado para de novo o explorar. A propriedade, na sua figura hodierna, move-se na oposição de capital e trabalho assalariado.” P. 44.

...

“Horrorizais-vos por querermos suprimir a propriedade privada. Mas na vossa sociedade existente, a propriedade privada está suprimida para nove décimos dos seus membros; ela existe precisamente pelo facto de não existir para nove décimos. Censurais-nos, portanto, por querermos suprimir uma propriedade que pressupõe como condição necessária que a imensa maioria da sociedade não possua propriedade.

Numa palavra, censurais-nos por querermos suprimir a vossa propriedade. Certamente, é isso mesmo que queremos.

[...]

Concedeis, por conseguinte, que por pessoa não entendeis mais ninguém a não ser o burguês, o proprietário burguês. E esta pessoa tem certamente de ser suprimida.

O comunismo não tira a ninguém o poder de se apropriar de produtos sociais; tira apenas o poder de, por esta apropriação, subjugar a si trabalho alheio.

Tem-se objectado que com a supressão da propriedade privada cessaria toda a actividade e alastraria uma preguiça geral.

De acordo com isso, a sociedade burguesa teria há muito de ter perecido de inércia; pois os que nela trabalham não ganham, e os que nela ganham não trabalham. Toda esta objecção vai dar à tautologia de que deixa de haver trabalho assalariado assim que deixar de haver capital.” P. 45.

Sabe aquela história de “família burguesa opressora”? Pois é, ela tem que ser abolida. Qual a qualificação e o porquê de Marx/Engels nesta abolição?

“Supressão da família! Até os mais radicais se indignam com este propósito infame dos comunistas.

Sobre que assenta a família actual, a família burguesa? Sobre o capital, sobre o proveito privado. Completamente desenvolvida ela só existe para a burguesia; mas ela encontra o seu complemento na ausência forçada da família para os proletários e na prostituição pública.

A família dos burgueses elimina-se naturalmente com o eliminar deste seu complemento, e ambos desaparecem com o desaparecer do capital.

Censurais-nos por querermos suprimir a exploração das crianças pelos pais? Confessamos este crime.

Mas, dizeis vós, nós suprimimos as relações mais íntimas ao pormos no lugar da educação doméstica a social.” P. 46.

Marx/Engels passeiam rapidamente pelo socialismo utópico que precedeu o pensamento comunista propriamente dito, sendo os seus maiores representantes Saint-Simon, Fourier, Owen e outros mais, que pregavam uma revolução desprovida de conteúdo, sem terem desenvolvido as armas teóricas e organizativas para enfrentar a classe burguesa, não pensando num movimento político revolucionário onde a classe oprimida toma as rédeas da história.

“A forma não desenvolvida da luta de classes assim como a sua própria situação de vida implicam, porém, que eles creiam estar muito acima daquela oposição de classes. Querem melhorar a situação de vida de todos os membros da sociedade, mesmo dos mais bem colocados. Por isso apelam continuamente à sociedade toda sem diferença, e de preferência à classe dominante.

É só preciso entender o seu sistema para reconhecer nele o melhor plano possível para a melhor sociedade possível. Rejeitam, por isso, toda a acção política, nomeadamente toda a acção revolucionária, querem atingir o seu objectivo por via pacífica e procuram, com pequenos experimentos naturalmente condenados ao fracasso, abrir pela força do exemplo o caminho ao novo evangelho social.” P. 61.

Por último, a previsão de Marx/Engels era de que a grande revolução proletária aconteceria em breve na Alemanha.

“Para a Alemanha dirigem os comunistas a sua atenção principal, porque a Alemanha está em vésperas de uma revolução burguesa e porque leva a cabo este revolucionamento em condições de maior progresso da civilização europeia em geral e com um proletariado muito mais desenvolvido do que a Inglaterra no século XVII e a França no século XVIII, porque a revolução burguesa alemã só pode ser, portanto, o prelúdio imediato de uma revolução proletária.” P. 64.

Como sabemos, isso não aconteceu.