segunda-feira, 17 de julho de 2017

Além da Senzala: Arranjos Escravos de Moradias no Rio de Janeiro (1808-1850)


SANTOS, Ynaê Lopes dos. Além da Senzala: Arranjos Escravos de Moradias no Rio de Janeiro (1808-1850). Dissertação de Mestrado em História Social pela USP, 2006.

Qualquer aluno do ensino fundamental e médio sabe que o Brasil em seus primeiros três séculos se ancorou no trabalho escravo para desenvolver suas mais variadas atividades e comércio. O Brasil era colônia de Portugal e, também, logo no seu início utilizou aqui e ali, o trabalho forçado de indígenas, apresados pelos bandeirantes. Entretanto, os jesuítas foram ferrenhos opositores da escravidão dos silvícolas, e conseguiram frustrar o desejo daqueles que quiseram escravizá-los.

Com os negros vindos da África, a coisa foi diferente. Sem proteção nem do estado e nem da igreja católica, eles foram feitos escravos em todo o território. Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro foram os principais polos, para onde ele foram mandados. E é no Rio de Janeiro que Ynaê Lopes irá dissertar sobre uma particularidade do viver escravo. 

Sua dissertação de Mestrado, que virou livro, versa sobre a moradia escrava, fora do olhar do senhor de escravo, na cidade do Rio de Janeiro, então capital da Colônia, e depois capital do império português, quando a família real, fugindo das tropas napoleônicas vem para o Brasil, em 1808.

Para começar, a autora traz uma miríade de obras históricas que trabalharam o morar escravo, ou que deram alguma pincelada sobre o assunto, notando que nos anos 1980, vários trabalhos surgem versando sobre os africanos como sujeitos ativos.

“A partir da década de 1980, a historiografia sobre a escravidão vivenciou uma expressiva mudança na sua agenda de pesquisas. Os escravos, que durante muito tempo foram tratados como vítimas passivas da história, passaram a ser encarados como sujeitos capazes de configurar o devir do sistema escravista. Essa nova perspectiva, aliada ao exame de novas fontes documentais, propiciou a ampliação dos temas relacionados à escravidão, dentre eles, o cativeiro citadino.” P. 29. 

A despeito da vergonha da escravidão, a cidade do RJ causava muita admiração pelas suas belezas naturais, aos estrangeiros que chegavam para visitá-la.

“A beleza natural era, em definitivo, um dos primeiros aspectos que chamava atenção para quem quer que chegasse no Rio de Janeiro pela baía de Guanabara no século XIX. A combinação entre morros, mar e cidade parecia insuperável. O inglês Luccock, que aportou em 1808, relatou que ‘o estrangeiro (...) entrará no porto do Rio da maneira mais agradável possível, descendo desde Ponte Negro, rente à praia, até que a Ilha Pay seja trazida ao encontro do Pão de Açúcar. Isso lhe dará a oportunidade de avistar todas as enseadas da costa’.” P. 60.

Sobre o número de portugueses vindos para o Brasil, fugindo de Napoleão Bonaparte, parece que não vieram em milhares como se convencionou nos livros de história.

“Em seu trabalho sobre o Rio de Janeiro setecentista, Nireu Cavalcanti questionou o número de pessoas que acompanhou João VI e sua família para o Brasil. Segundo o autor, que analisou as listas dos passageiros vindos de Portugal para o Rio de Janeiro, o número total de portugueses não ultrapassaria 500 (o que não atenuaria o impacto da transferência da Corte), e não 15 mil como foi sugerido pela historiografia até então.” P. 61.

Caramba, que diferença! 14.500 pessoas a menos, daquilo que aprendi nos estudos sobre a vinda da Família Real e a Corte para o Brasil. É uma diferença abissal. Que disparidade! Aí está o caráter transitório e relativo, que muitas vezes acompanham o saber histórico. Mas é claro, que a versão tradicional pode estar correta. 

Uma das facetas da escravidão urbana era a Capoeira, luta criada no Brasil, usada como instrumento de subversão. 

“No estudo sobre capoeira escrava no Rio de Janeiro [no século XIX], Líbano Soares mostrou algumas das formas de articulação e resistência cativa. Responsável por cerca de 9% das prisões feitas pela polícia no período joanino, os capoeiras trouxeram muita dor de cabeça para os governantes da cidade. E não foram apenas os diversos conflitos travados entre as diferentes maltas ou contra a polícia que preocupavam as autoridades. Para além da luta, do jogo, e do relaxamento do trabalho, a capoeira evidenciava toda uma rede de sociabilidade entre escravos, livres e libertos com a própria dinâmica do cativeiro na Corte.” P. 75.

A ideia central do livro é a seguinte: nos centros urbanos, como a grande cidade do RJ, os escravos podiam trabalhar longe dos olhares e do chicote de seus donos. Muitos negros eram escravos de ganho, trabalhando nas ruas, fazendo serviços, vendendo comidas, ou eram alugados para outras pessoas.

[...] no caso do ganho – característico dos grandes centros do Brasil, como Salvador, Recife e a capital da Corte -, o escravo teria que dispor de sua força de trabalho, passando a maior parte do tempo nas ruas à procura de serviços e, portanto, longe das vistas de seu senhor.” P. 72.

Muitos desses escravos, devido à natureza de suas atividades, não moravam perto, ou sob o teto de seus senhores. A pergunta é: como eram as moradias desses escravos? Através de ampla documentação escrutinada, Ynaê lamenta ao longo de toda obra a escassez de documentos sobre o morar escravo. Ela consegue parcas documentações que mencionam esse morar escravo, esse morar sobre si. Tudo que encontrou foi muito vago e superficial. 

“A dificuldade em obter informações precisas na documentação analisada, devido ao permanente silêncio dos órgãos responsáveis pela segurança e administração do Rio de Janeiro a respeito do morar cativo, alertou para a necessidade de entender tal problemática dentro do quadro mais amplo da história política do país. Por que, mesmo face a mudanças políticas de peso, como a transferência da Corte para o Rio, a independência do Brasil e, até mesmo, a abolição legal do tráfico negreiro transatlântico em 1831, o silêncio sobre as moradas escravas permaneceu?” P. 17.

Eu esperava mais dessa obra. Achei essa dissertação tão ou mais dispersa e desorganizada que os resumos ou resenhas que tento fazer. E olha que a autora lançou mão de um incontável número de fontes primárias, tais como Cartas de Alforrias, Devassas da Polícia, Relatórios dos Presidentes de Províncias, Termos de Bem Viver, Inventários Post Mortem, Arquivo da Biblioteca do Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado Rio de Janeiro, Arquivo Geral do Rio de Janeiro, viajantes que passaram pela cidade no século XIX, fora a historiografia especializada sobre a escravidão. No entanto, como ela mesma admite, pouca dessa documentação tratava do morar escravo citadino, fora do olhar do senhor de escravo.