GONZÁLEZ, Justo. Retorno à história do pensamento cristão. São Paulo: Hagnos, 2011.
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Justo
L. González (Ph.D e Mestrado em Teologia Histórica na Universidade de Yale,
EUA) é um dos escritores protestantes que mais admiro e leio. Ele foge do
estereótipo fundamentalista-conservador, algo tão comum nos arraiais
evangélicos. Algumas de suas obras sobre a história da igreja têm se destacado,
por se diferenciar dos livros que sempre apresentam o atlântico norte, como o
ápice do Cristianismo. González rompe com isso, e mostra que a pujança da
cristandade e o seu eixo, agora se encontram na América do Sul, no oriente e no
continente africano e asiático. Eis aí, uma de suas peculiaridades.
O
livro a que venho resumir, segundo o próprio autor, é uma nota de rodapé, isto é, um apêndice de sua obra A História do Pensamento Cristão
(publicada pela editora Cultura Cristã em três volumes, no Brasil), escrita
muitos anos antes, mas que precisou ser revisitada, o que gerou esse retorno a ela. Uma interpretação da
primeira obra, onde nesta, ele apenas expôs o que era o consenso entre os
acadêmicos sobre os temas apresentados. Dessa vez é o González quem dá as
cartas.
Em
linhas gerais, foram três, os tipos de Teologia que perpassaram a história do Cristianismo,
que são mais bem representadas pelos Teólogos e Pais da Igreja, Tertuliano,
Orígenes e Irineu. Teologia do tipo A, B e C, classifica o autor. Mesmo que
elementos da Teologia do tipo A estejam na Teologia do tipo C, e
características desta, façam parte da Teologia do tipo B, e vice-versa, há peculiaridades
que as distingue uma das outras.
Fatores
de ordem social, cultural e econômica, logicamente forjaram a estrutura de cada
uma dessas teologias, fazendo com que os três Teólogos edificassem suas
apologias, escritos e interpretações bíblicas, para responder aos problemas e
inquietações que eles se depararam ao logo de seu ministério cristão. Nenhuma
dessas construções teológicas surgiram no vácuo, argumenta González.
“Quando nos aproximamos
delas [as escrituras], não o fazemos com a mente totalmente em branco para
deixar que as Escrituras nos falem. Pelo contrário, estando ou não cientes
disso, ao nos aproximar das Escrituras, trazemos conosco toda uma tradição de
interpretação escriturística que nos leva a entender o texto bíblico de um modo
particular. Em outras palavras, todos lemos a Bíblia através de óculos que nos
foram legados por nossa tradição, e da cor de suas lentes depende grande parte
do que podemos ou não enxergar nas Escrituras.” P.
16.
O
que ele diz aí é muito pertinente. Sempre somos tentados a interpretar os
escritos da história, ancorados numa ilusão de que seremos eminentemente
objetivos. Não vem a nossa mente, que somos produtos de um tempo histórico
específico e, assim, trazemos conosco toda uma tradição de interpretação.
Como
aconteceu com Tertualino, Orígenes e Irineu, se repetiu com Lutero, Calvino,
Teólogos católicos e etc. Nossa Teologia pretende responder as problemáticas do
nosso tempo. E quando vamos aos textos fundantes, nossa leitura sempre estará
enviesada pelos nossos óculos construídos e reconstruídos, conforme a situação
política, social, econômica e cultural que nos cerca.
Para
González, a Teologia do tipo C, de Irineu, é a que mais se aproxima dos ensinos
de Jesus e do Novo Testamento. A geografia, o lugar de onde Irineu exerceu o
seu pastorado, tem papel importante nisso.
“Em razão de a
Palestina, Antioquia e a Ásia Menor serem terras onde ocorreram muitos dos acontecimentos
narrados no Novo Testamento, os cristãos dessa região tinham raízes mais
profundas na história do evangelho do que seus correligionários de Alexandria
ou Cartago. Para eles, a essência da fé não se encontrava em uma série de
verdades imutáveis vindas do céu [Teologia do tipo B], mas em certos
acontecimentos que haviam ocorrido ali mesmo e entre as pessoas que tinham lhes
legado a fé.” P.
37.
Apesar
de Tertuliano e Orígenes depositarem sua fé no mesmo Cristo, suas abordagens,
de certa forma serviram para que interesses escusos adentrassem ilegitimamente
na práxis e ensinamentos da igreja.
“Os outros dois tipos
de teologia abriram caminho na sociedade greco-romana justamente por
interpretar a fé em termos de duas tradições às quais essa sociedade dava alto
valor. O tipo A faz uso da lei e da ordem (primeiro da lei romana, e depois da
germânica ou sálica, da napoleônica, etc.) como seu ponto de contato com a
sociedade e seus valores. O tipo B faz a mesma coisa com a filosofia (primeiro
com a platônica, e depois com a aristotélica, a cartesiana, a hegeliaana, a do
processo, etc.). Tudo isso implica que os dois primeiros tipos de teologia,
ainda que seus expositores não o soubessem ou desejassem, acabaram servindo aos
interesses dos poderosos e da elite intelectual. Embora, a princípio, os
poderosos e os intelectuais tenham se oposto ao cristianismo, que foi objeto de
zombaria por parte dos filósofos e de perseguição por parte dos governantes,
quando finalmente o cristianismo se tornou a religião do Império, essas mesmas
elites preferiram que ele fosse interpretado em termos da lei ou da filosofia,
e não de uma história que resultaria no estabelecimento de uma nova ordem.” P. 104.
Num
quadro explicativo, são sintetizadas as características de cada uma dessas
teologias.
González
interpreta e analisa toda a história do pensamento cristão dentro dessas três
perspectivas teológicas. Passando pela Teologia Escolástica, Teologia dos
Reformadores, Teologia Liberal, Teologia Fundamentalista, até os dias atuais -
ora identificando aspectos da Teologia do tipo A, como a Teologia dominante, considerada
a ortodoxa, tanto entre católicos e protestantes; ora identificando a Teologia do
tipo B, como uma espécie de contestação aquela. A Teologia do tipo C, relegada
a diminutos momentos.
No
século XX, mediante as inúmeras teologias que surgem, sobretudo as teologias
feministas, da libertação, Concílio do Vaticano II, os escritos de Karl Barth,
teologia de Lund na igreja luterana, ocorre uma redescoberta da Teologia do
tipo C.
“As diversas teologias
da libertação — não somente as latino-americanas, mas também as negras, feministas
e outras — orientam-se instintivamente pelas perspectivas do tipo C. Em razão
de todas elas terem surgido dentro de contextos de opressão e se nutrirem da
esperança de uma nova ordem.” P. 166.
É
aí, que González não agradará as alas conservadoras e fundamentalistas do
protestantismo e do catolicismo. Ele não se alinha ao conservadorismo tão comum
na comunidade evangélica norte-americana e do lado sul da América. Percebe-se
em seus livros uma atitude ecumênica e de aproximação com as várias tradições
da cristandade. Nem tampouco ele seria
um liberal, ele rejeita, por exemplo, as reformulações existencialistas de
Bultman, por estas não fazerem jus ao espírito do Novo Testamento. O aparato liberal
não faz parte da teologia defendida pelo González.
“[...] o ‘proposicionalismo’
conservador quanto a ênfase na experiência dos liberais fracassam juntos com o
fracasso dos mitos fundamentais da modernidade.” P. 173.
Essa
é a visão do Teólogo luterano George Lindbeck, com a qual o autor concorda. E
assim, ele rechaça o conservadorismo e o liberalismo teológicos. Ambos são
produtos da cosmovisão falida do modernismo.
A
Teologia do tipo C, dos primórdios do Cristianismo, propagada por Irineu de
Lião, é a abordagem que mais se aproxima dos ensinos de Jesus e dos apóstolos,
e com certeza, ela não está mancomunada com o fundamentalismo e liberalismo,
pondera González.
Livro
recomendado.