DROOGERS, André. E a Umbanda? São Leopoldo - RS: Sinodal, 1985.
É lugar comum, pensarmos que Umbanda e
Candomblé, são a mesma coisa. Na lógica leiga e popular, ambas possuem apenas
nomenclaturas diferentes, mas possuem as mesmas práticas e crenças religiosas.
Verdade seja dita, elas têm elementos em comum, como as incorporações, os
transes, usos de ervas, lidam com os orixás e outras coisinhas mais. O senso comum
vendo essas similaridades superficialmente, então conclui, é tudo a mesma
merda!
Mas assim como existem diferenças
importantes e gritantes, entre catolicismo e protestantismo, a despeito de suas
muitas semelhanças, também ocorrem distinções com a Umbanda e Candomblé. Não
são a mesma religião; não se pratica em seus cultos os mesmos fundamentos
espirituais e mediúnicos. Existem distinções importantes entre elas. Assim como
existem olhares e práticas diversas entre as várias manifestações de origem
negra e ameríndia pelo Brasil a fora, como o Xangô, Jurema, Batuque, Tambor de
Mina e etc. Cada uma com as suas peculiaridades.
Em vista dessa diversificação empírica da
práxis religiosa africana/ameríndia, André Droogers, Ph.D em Antropologia pela
Universidade Livre de Amsterdã, na Holanda, vem trazer as características
gerais que distingue a Umbanda dos outros credos religiosos. É uma edição
antiga, de 1985. Escrita com a devida preocupação em fazer um levantamento
objetivo da Umbanda. Apesar disso ele faz uma observação importante:
"Porém, é de
se ressaltar que a objetividade perfeita não existe, nem a avaliação
definitiva." P. 10.
Dentro dessa perspectiva, parece-me que ele
comete um equívoco básico, ao afirmar, por exemplo, que os orixás incorporam em
alguns terreiros de Umbanda. Na Umbanda original, pura, se é que podemos usar
esses termos, os orixás não possuem os seus "cavalos". Isso só
acontece no Candomblé. E muito menos os orixás falam alguma coisa quando descem
nos seus filhos de santo, como ele afirma. No Candomblé, religião onde eles
incorporam, cada orixá fará a sua dança particular. Eles não fazem careta, não
fumam, não dão conselhos...
Dando um desconto ao autor, há de convirmos
que quem detém a verdade do que pode ou não pode ser praticado nesses centros
mediúnicos? Muitos pais de santo misturam elementos de várias matrizes
religiosas, e formam o seu culto. Cada terreiro tem muita autonomia para ditar
suas rezas, passes, procedimentos... E se foi algum espírito que determinou
para que se fizesse dessa maneira e não daquela?
De qualquer forma, de modo geral, na
Umbanda, orixás não incorporam.
Quando Drogeers escreve sobre a polêmica
figura de Exu, sua fala pode não soar nada agradável a muitos umbandistas,
visto que ele o identifica como um espírito das trevas, que só é incorporado na
maioria das vezes nos trabalhos de Quimbanda, lado da "esquerda" da
Umbanda. No entanto, ele não falou isso por mero preconceito, mas porque
existem umbandistas que vêem a entidade Exu dessa forma.
Se no Cristianismo, religião que tem um
livro básico (Bíblia), os cristãos não têm concordância em milhares de pontos
sobre o que ela diz ou deixa de dizer, imagine essas tradições religiosas
baseadas unicamente em tradições orais, ou testemunhos de supostos espíritos
evoluídos que vem do outro mundo dar conselhos, passes e direcionar os seus
consulentes e cavalos ao caminho da luz. Não há objetividade alguma.
O tópico mais significativo do livro é
quando são discutidas as possíveis explicações para os transes. O autor deixa
claro que explicações psicológicas e sociológicas, podem desvendar o mistério
das incorporações, lançando várias explanações plausíveis que realmente
satisfazem as mentes mais racionais e não entregues a credulidades
inverossímeis.
“A mediunidade é um
fenômeno universal. De modo algum é exclusividade brasileira. Cada cultura na
qual ela existe a interpreta e a transforma à sua maneira.” P. 36.
O ambiente sócio-cultural dos pretensos
médiuns tem uma significativa e crucial relevância na personalidade dos
espíritos que tomam conta de seus corpos.
“A influência da
sociedade e da cultura [...] está presente também na forma como a mediunidade é
desenvolvida. Parece que não são os espíritos que dão uma determinada forma à
sua manifestação, mas sim a sociedade e a cultura dependendo da cidade, do tipo
de culto (umbanda ou um dos mais antigos), do terreiro (mais africano ou mais
embraquecido), da classe social da pessoa e do seu bairro (disso depende qual o
terreiro que frequenta) e assim por diante. Com isso o fenômeno da mediunidade
é bastante relativizado”. P. 36.
Perante essa relativização e contingência
do transe, Droogers interpela:
“Será que são
realmente espíritos que se manifestam? Ou pode ser outra coisa, explicada de
maneira bem diferente?” P. 36.
Eis aqui uma das possibilidades:
“[...] podemos,
talvez, pensar na mediunidade como uma maneira de readmitir, através do
espírito, um impulso ou desejo que antes foi descartado. [...] Se isso for
verdade, fica explicado por que os espíritos, nas suas várias categorias,
representam todo um leque de possibilidades da personalidade humana: caboclos
dinâmicos, preto-velhos humildes, crianças ingênuas, exus maliciosos e
pomba-giras eróticas. Sem falar de cada tipo que os espíritos individuais
representam e nas diferenças entre espíritos femininos e masculinos”. P.
38.
“O espírito que
procura o seu cavalo se chama, então na verdade, de ‘desejo reprimido’. E a
cura não vem do espírito, mas da readmissão do desejo reprimido através da
aprendizagem da mediunidade, nos moldes do comportamento da categoria de
espíritos que corresponde com ele. O espírito é, portanto, a projeção do lado
oculto da personalidade do médium. Assim, médiuns têm a oportunidade de serem o
que normalmente não poderiam ser: arrogantes e orgulhosos, humildes e
carinhosos, ingênuos e infantis, maldosos e grosseiros. Esta explicação
psicológica aponta para um outro mecanismo do que o citado pelos umbandistas,
quando explicam a origem da mediunidade, mas é igualmente lógica em si.” P.
39.
É lógica essa explanação do que pode ser as mugangas, trejeitos, gritos e danças, que ocorrem nos terreiros? Claro que sim! Muito mais inteligente e racional, ver dessa forma, a ter que acreditar nos relatos fantasiosos dos umbandistas de que existem aos milhares, ou milhões de falanges de espíritos vagando por aí, em tudo que é esquina, encruzilhadas, cemitérios, e que elas interferem diretamente em nossas vidas.
Quem pensa igual ou semelhante, não foi
nada mais, nada menos, que o Pierre Verger (morto em 1996), grande estudioso e
sacerdote do Candomblé no Brasil. Pense numa grande ironia. Em documentário já
postado aqui, sobre a sua vida e contribuição para a religião africana no
Brasil, ele revela a sua posição, quando perguntando por Gilberto Gil, se
acredita no transe dos orixás:
Gilberto Gil:
"E o transe, a
incorporação do orixá?"
Pierre Verger:
"Para mim não
é incorporação. Para mim é uma manifestação da verdadeira natureza da gente.
Uma possibilidade de esquecer todas as coisas, que não tem nada que ver com
você. [...] sou um idiota de francês racionalista. A mim não me contam
histórias, eu não sou um idiota que acredita nessas coisas [nesse momento,
risadas do Gil]. É uma coisa ‘despoetizante’ horrível. Eu sofri muito, gostaria
muito de me deixar ir."
Mesmo Verger não sendo da Umbanda, seu
relato cético é de uma importância sem precedentes, visto que o Candomblé também
é um culto de incorporações.
Drogeers vai desenvolvendo essa
interpretação psicológica da mediunidade, e depois entra na questão do porquê
da Umbanda ter alcançado números significativos de pessoas que a ela recorrem
para obter ajuda para solucionar os seus problemas. Em seguida, tenta aproximar
a sua confissão de fé (protestantismo luterano) num diálogo ecumênico e
respeitoso com a religiosidade umbandista, sem vincular a Umbanda ao satanismo,
como a igreja evangélica de modo geral faz.
Ele enfatiza os pontos negativos da
Umbanda, sem eximir a sua própria comunidade de fé, em se calar diante das
estruturas político-sociais que oprimem a população. Onde está a igreja
luterana, quando a sociedade aflita, necessita urgentemente de ajuda
espiritual? Onde estão os luteranos, na luta contra as mazelas que acometem o
povo brasileiro tão sofrido? Droggers reconhece que muitas vezes a sua própria
igreja deixa a desejar nesses quesitos.
Os pontos positivos da Umbanda também são
lembrados, visto que muitos de seus centros e terreiros, sempre estão dispostos
a ajudar as pessoas.