segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

E a Umbanda?


DROOGERS, André. E a Umbanda? São Leopoldo - RS: Sinodal, 1985.

É lugar comum, pensarmos que Umbanda e Candomblé, são a mesma coisa. Na lógica leiga e popular, ambas possuem apenas nomenclaturas diferentes, mas possuem as mesmas práticas e crenças religiosas. Verdade seja dita, elas têm elementos em comum, como as incorporações, os transes, usos de ervas, lidam com os orixás e outras coisinhas mais. O senso comum vendo essas similaridades superficialmente, então conclui, é tudo a mesma merda!

Mas assim como existem diferenças importantes e gritantes, entre catolicismo e protestantismo, a despeito de suas muitas semelhanças, também ocorrem distinções com a Umbanda e Candomblé. Não são a mesma religião; não se pratica em seus cultos os mesmos fundamentos espirituais e mediúnicos. Existem distinções importantes entre elas. Assim como existem olhares e práticas diversas entre as várias manifestações de origem negra e ameríndia pelo Brasil a fora, como o Xangô, Jurema, Batuque, Tambor de Mina e etc. Cada uma com as suas peculiaridades.

Em vista dessa diversificação empírica da práxis religiosa africana/ameríndia, André Droogers, Ph.D em Antropologia pela Universidade Livre de Amsterdã, na Holanda, vem trazer as características gerais que distingue a Umbanda dos outros credos religiosos. É uma edição antiga, de 1985. Escrita com a devida preocupação em fazer um levantamento objetivo da Umbanda. Apesar disso ele faz uma observação importante:

"Porém, é de se ressaltar que a objetividade perfeita não existe, nem a avaliação definitiva." P. 10.

Dentro dessa perspectiva, parece-me que ele comete um equívoco básico, ao afirmar, por exemplo, que os orixás incorporam em alguns terreiros de Umbanda. Na Umbanda original, pura, se é que podemos usar esses termos, os orixás não possuem os seus "cavalos". Isso só acontece no Candomblé. E muito menos os orixás falam alguma coisa quando descem nos seus filhos de santo, como ele afirma. No Candomblé, religião onde eles incorporam, cada orixá fará a sua dança particular. Eles não fazem careta, não fumam, não dão conselhos...

Dando um desconto ao autor, há de convirmos que quem detém a verdade do que pode ou não pode ser praticado nesses centros mediúnicos? Muitos pais de santo misturam elementos de várias matrizes religiosas, e formam o seu culto. Cada terreiro tem muita autonomia para ditar suas rezas, passes, procedimentos... E se foi algum espírito que determinou para que se fizesse dessa maneira e não daquela?

De qualquer forma, de modo geral, na Umbanda, orixás não incorporam.

Quando Drogeers escreve sobre a polêmica figura de Exu, sua fala pode não soar nada agradável a muitos umbandistas, visto que ele o identifica como um espírito das trevas, que só é incorporado na maioria das vezes nos trabalhos de Quimbanda, lado da "esquerda" da Umbanda. No entanto, ele não falou isso por mero preconceito, mas porque existem umbandistas que vêem a entidade Exu dessa forma.

Se no Cristianismo, religião que tem um livro básico (Bíblia), os cristãos não têm concordância em milhares de pontos sobre o que ela diz ou deixa de dizer, imagine essas tradições religiosas baseadas unicamente em tradições orais, ou testemunhos de supostos espíritos evoluídos que vem do outro mundo dar conselhos, passes e direcionar os seus consulentes e cavalos ao caminho da luz. Não há objetividade alguma.

O tópico mais significativo do livro é quando são discutidas as possíveis explicações para os transes. O autor deixa claro que explicações psicológicas e sociológicas, podem desvendar o mistério das incorporações, lançando várias explanações plausíveis que realmente satisfazem as mentes mais racionais e não entregues a credulidades inverossímeis.

“A mediunidade é um fenômeno universal. De modo algum é exclusividade brasileira. Cada cultura na qual ela existe a interpreta e a transforma à sua maneira.” P. 36.

O ambiente sócio-cultural dos pretensos médiuns tem uma significativa e crucial relevância na personalidade dos espíritos que tomam conta de seus corpos.

“A influência da sociedade e da cultura [...] está presente também na forma como a mediunidade é desenvolvida. Parece que não são os espíritos que dão uma determinada forma à sua manifestação, mas sim a sociedade e a cultura dependendo da cidade, do tipo de culto (umbanda ou um dos mais antigos), do terreiro (mais africano ou mais embraquecido), da classe social da pessoa e do seu bairro (disso depende qual o terreiro que frequenta) e assim por diante. Com isso o fenômeno da mediunidade é bastante relativizado”. P. 36.

Perante essa relativização e contingência do transe, Droogers interpela:

“Será que são realmente espíritos que se manifestam? Ou pode ser outra coisa, explicada de maneira bem diferente?” P. 36.

Eis aqui uma das possibilidades:

“[...] podemos, talvez, pensar na mediunidade como uma maneira de readmitir, através do espírito, um impulso ou desejo que antes foi descartado. [...] Se isso for verdade, fica explicado por que os espíritos, nas suas várias categorias, representam todo um leque de possibilidades da personalidade humana: caboclos dinâmicos, preto-velhos humildes, crianças ingênuas, exus maliciosos e pomba-giras eróticas. Sem falar de cada tipo que os espíritos individuais representam e nas diferenças entre espíritos femininos e masculinos”. P. 38.

“O espírito que procura o seu cavalo se chama, então na verdade, de ‘desejo reprimido’. E a cura não vem do espírito, mas da readmissão do desejo reprimido através da aprendizagem da mediunidade, nos moldes do comportamento da categoria de espíritos que corresponde com ele. O espírito é, portanto, a projeção do lado oculto da personalidade do médium. Assim, médiuns têm a oportunidade de serem o que normalmente não poderiam ser: arrogantes e orgulhosos, humildes e carinhosos, ingênuos e infantis, maldosos e grosseiros. Esta explicação psicológica aponta para um outro mecanismo do que o citado pelos umbandistas, quando explicam a origem da mediunidade, mas é igualmente lógica em si.” P. 39.

É lógica essa explanação do que pode ser as mugangas, trejeitos, gritos e danças, que ocorrem nos terreiros? Claro que sim! Muito mais inteligente e racional, ver dessa forma, a ter que acreditar nos relatos fantasiosos dos umbandistas de que existem aos milhares, ou milhões de falanges de espíritos vagando por aí, em tudo que é esquina, encruzilhadas, cemitérios, e que elas interferem diretamente em nossas vidas.

Quem pensa igual ou semelhante, não foi nada mais, nada menos, que o Pierre Verger (morto em 1996), grande estudioso e sacerdote do Candomblé no Brasil. Pense numa grande ironia. Em documentário já postado aqui, sobre a sua vida e contribuição para a religião africana no Brasil, ele revela a sua posição, quando perguntando por Gilberto Gil, se acredita no transe dos orixás:

Gilberto Gil:

"E o transe, a incorporação do orixá?"

Pierre Verger:

"Para mim não é incorporação. Para mim é uma manifestação da verdadeira natureza da gente. Uma possibilidade de esquecer todas as coisas, que não tem nada que ver com você. [...] sou um idiota de francês racionalista. A mim não me contam histórias, eu não sou um idiota que acredita nessas coisas [nesse momento, risadas do Gil]. É uma coisa ‘despoetizante’ horrível. Eu sofri muito, gostaria muito de me deixar ir."

Mesmo Verger não sendo da Umbanda, seu relato cético é de uma importância sem precedentes, visto que o Candomblé também é um culto de incorporações.

Drogeers vai desenvolvendo essa interpretação psicológica da mediunidade, e depois entra na questão do porquê da Umbanda ter alcançado números significativos de pessoas que a ela recorrem para obter ajuda para solucionar os seus problemas. Em seguida, tenta aproximar a sua confissão de fé (protestantismo luterano) num diálogo ecumênico e respeitoso com a religiosidade umbandista, sem vincular a Umbanda ao satanismo, como a igreja evangélica de modo geral faz.

Ele enfatiza os pontos negativos da Umbanda, sem eximir a sua própria comunidade de fé, em se calar diante das estruturas político-sociais que oprimem a população. Onde está a igreja luterana, quando a sociedade aflita, necessita urgentemente de ajuda espiritual? Onde estão os luteranos, na luta contra as mazelas que acometem o povo brasileiro tão sofrido? Droggers reconhece que muitas vezes a sua própria igreja deixa a desejar nesses quesitos.

Os pontos positivos da Umbanda também são lembrados, visto que muitos de seus centros e terreiros, sempre estão dispostos a ajudar as pessoas. 

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