terça-feira, 25 de abril de 2017

Deus: Como Ele Nasceu


LOPES, Reinaldo José. Deus: Como Ele Nasceu. São Paulo: Abril, 2015. (Versão em PDF)

Faz uns bons anos que já não leio a revista Superinteressante. Nos anos em que lia edição após edição, sempre as matérias referentes a Jesus e/ou ao cristianismo foram menos amistosas comparadas às outras tradições de fé, como o budismo ou espiritismo, por exemplo. Fazendo uso corrente de estudiosos extremamente céticos em relação à crença cristã, o quadro pintado pela Super sempre foi o de desconstruir a visão tradicional que nos foi legada. Tal metodologia não me incomoda, visto que as milhares de igrejas estão aí, para divulgar o modelo já consagrado de como Deus “nasceu”. A revista tem todo o direito de trazer o outro lado da história. Noutro sentido, fico incomodado, quando vejo a parcialidade da revista em fazer generalizações descabidas, como se não existissem estudiosos competentes de linha conservadora, que defendem posições contrárias ao que ela propõe. Soa contraditório? Talvez.

Reinaldo José Lopes, Ph.D e Mestre em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês na USP, escrevendo em nome da Super, nos contará a história do “nascimento” do deus judaico-cristão. Inicialmente pensei, que o livro estava recheado de palavras jocosas e piadinhas para denegrir a imagem da tradição monoteísta. Mas estava errado. Lopes não deixando de ter uma escrita leve, descontraída e com algumas pitadas de humor (característica da Super), em nenhum capítulo, parágrafo ou linha, o vi desdenhando da fé religiosa. Obviamente é uma obra que vai de encontro aos ensinos que se recebe nas igrejas, de que a bíblia foi inspirada por deus; de que as histórias contidas nela possuem confirmações na história e etc.

“[...] a postura da nossa narrativa será, ao menos na maior parte do tempo, metodologicamente agnóstica. Ou seja, não é meu objetivo provar que Deus existe ou deixa de existir — e, do ponto de vista estritamente científico e racional, sou da opinião que esse tipo de demonstração é inviável. Para usar o simpático jargão da filosofia da ciência, a ‘hipótese Deus’’ não é ‘falseável’ — ou seja, não tem como bolar um experimento, ou série de ‘experimentos, que demonstre de forma conclusiva que Deus não existe ou existe, especialmente se a gente levar a sério a ideia de que ele é inefável, ou seja, manifesta-se quando e como quiser, como afirmam as religiões que o veneram.” P. 12.

Mesmo que todas as religiões, inclusive a judaica e cristã, sejam perfeitamente escrutinadas pelo que há de melhor na História, Antropologia, Arqueologia, Psicologia Social, Sociologia e etc, não se segue daí que o sentimento de que existe algo além, que normalmente chamamos de Deus, seja apenas fruto de nossas mentes. A Filosofia continua tendo primazia sobre todas elas. Deus pode existir independente da origem detectável e explicável das milhares de religiões existentes. Ele pode muito bem não ter NADA a ver com todas elas. Quanto a declaração que diz que “do ponto de vista estritamente científico e racional, sou da opinião que esse tipo de demonstração é inviável” – penso que ele comete um equívoco, visto que tanto cientificamente como no campo filosófico, pode-se apresentar argumentos plausíveis de que a crença em Deus pode está ancorada em boas evidências, ainda que passíveis de dúvidas.

“Ao ler sobre fenômenos religiosos — seja do ponto de vista individual, seja em uma perspectiva histórica de longo prazo —, você pode, com toda a justiça, contentar-se com apenas a primeira parte do nosso paradoxo: ‘é tudo coisa da sua cabeça’, resumindo. Não há nada sobrenatural acontecendo, no fim das contas. Por mais que as pessoas acreditem estar na presença de Deus numa igreja, numa sinagoga ou numa mesquita, qualquer sensação especial que venham a sentir em contextos religiosos não passa do resultado de mensageiros químicos e impulsos elétricos pulando de um neurônio para outro em algum canto da cabeça delas. Ótimo, que seja assim. Por outro lado, é minha convicção que a forma completa do paradoxo permite que as pessoas que acreditam em Deus — entre as quais me incluo — sejam capazes de apreciar a trajetória complexa e fascinante que acabou produzindo sua fé de forma intelectualmente honesta, sem que para isso se sintam obrigadas a jogá-la na lata do lixo.” P. 12.

Felizmente, contrariando os materialistas amadores da internet, que afirmam que todos nascemos ateus. Na verdade é quase o oposto: temos uma tendência a crer em algo além do mundo sensível.

“O que fica cada vez mais claro, no entanto, é que, diferentemente do que dizem certos defensores do ateísmo, ninguém ‘nasce’ ateu — nem cristão, budista ou adorador de Thor. Se o cérebro humano fosse um computador, ele seria do tipo que vem com vários programas pré-instalados, bastando clicar nos iconezinhos deles para que se autoinstalassem e começassem a funcionar. E a crença em seres sobrenaturais parece ser um desses programas. Acreditar em deuses parece um resultado completamente natural da maneira como o cérebro humano se desenvolve desde a primeira infância“. P. 14.

Já deu pra perceber que o autor não tem o intuito de desdenhar, zombar ou ridicularizar a fé, mesmo que o título fale sobre o nascimento da divindade. Lopes explica:

“[...] admito que Deus: Como Ele Nasceu tem um elemento de provocação, mas não é minha intenção dizer que Deus foi simplesmente inventado pelo homem — ao menos não como resumo do que acredito ser verdade sobre o Senhor (como o chamam tradicionalmente judeus e cristãos). Dizer que Deus “nasceu”, e que a gente pode contar as etapas desse parto, equivale simplesmente a reconhecer um fato que até as grandes tradições religiosas monoteístas admitem em seus textos sagrados: a crença nele pregada pelas fés atuais não existe desde o princípio do mundo, mas precisou ser formulada de maneira paulatina”. P. 16-17.

Explicando como a fé em deus pode ter surgido entre nós, seres humanos, Lopes, o que não agradará os mais fanáticos religiosos, tampouco, pode não agradar os céticos ateus, quando ele diz:

“[...] alguns estudos realizados na Itália e no Reino Unido nos anos 1990 e 2000, enfocando especificamente as reações de quem não acredita em Deus a eventos importantes da vida — mortes, perda de emprego, dificuldades escolares e financeiras etc. —, mostraram que até esses não crentes às vezes respondem usando uma variante daquela frase ‘tudo acontece por uma razão’, o que sugere, se não uma crença subconsciente em Deus, ao menos uma tendência a enxergar que existe algum destino vago e poderoso controlando as coisas por trás do pano.” P. 29.

Baseados em várias linhas de evidências interpretadas por Historiadores, Teólogos e Arqueólogos, Lopes vai montando o quebra-cabeça de como deve ter surgido o povo de Israel e, consequentemente, o nascimento de Yahweh, a divindade suprema. O Antigo Testamento é uma colcha de retalhos – aquelas historinhas bonitinhas, de que Deus chamou um homem chamado Abraão, que gerou Isaque e Jacó, onde este último teve vários filhos que deram origem as 12 tribos de Israel e, que foram levados para o Egito, e foram escravizados, libertados por Moisés, migrando para a Palestina, dando início a nação de Israel, não passa de construções não factuais, com apenas algumas pinceladas de verdade histórica. Simplesmente as histórias bíblicas e o que sabemos sobre o mundo antigo não batem, segundo Lopes.  

De qualquer forma, algo que me chama atenção na Bíblia é que ela não esconde os fatos embaraçosos sobre os seus personagens mais estimados. Nem Jesus escapa, quando na cruz, ele brada: “Deus meu, Deus meus, porque me desamparaste?”. No Antigo Testamento não é diferente.

“Figuras como Saul, David e Salomão são personagens fabulosos, críveis, de carne e osso, comparáveis aos criados pelos grandes romancistas de todos os tempos. Apesar dos triunfos desses figurões, a Bíblia em geral não os idealiza. Pelo contrário, aliás — suas escorregadas éticas e políticas parecem estar sendo mostradas sem retoques, de um jeito que, por vezes, lembra o estilo de um bom historiador ou biógrafo do século 21”. P. 74.

Referente à principal personagem do Novo Testamento, Jesus de Nazaré, embora Lopes tenha uma abordagem agnóstica e cética, ele enumera alguns critérios de historicidade, que possivelmente nos ajudam a detectar com algum grau de certeza, certos acontecimentos relatados nos evangelhos. A crucificação de Jesus é um exemplo.

“A ideia chocante de um salvador crucificado  é, para quase todos os historiadores sérios do cristianismo nascente, aterradora  demais para ter sido inventada do nada. Isso significa que, por trás dela, houve um homem de carne e osso executado sumariamente em Jerusalém lá pelo ano 30 d.C. P. 114.

Lopes posiciona-se contra aqueles que negam a existência de Jesus. De acordo com ele, é uma posição extremamente frágil de ser defendida. Há também uma admissão de que os evangelhos apócrifos, com exceção do evangelho de Tomé, quase nada têm a dizer sobre o Jesus histórico.

“[...] apesar do grande barulho ocasional causado pela descoberta ou reinterpretação de certos textos apócrifos (ou seja, não incluídos na lista oficial de escritos bíblicos aprovados pelas igrejas cristãs), o fato é que quase nenhum pesquisador na ativa hoje defende que esses textos não canônicos tragam informações importantes a respeito do Jesus histórico. Em geral, são relatos tardios, escritos a partir da metade do século 2º d.C.” P. 124-125.

Concernente as teorias de que Jesus foi na Índia buscar sabedoria e conhecimento durante os anos aos quais os evangelhos se calam, Lopes manda um recado para aqueles que dão crédito a essas teorias nada críveis:

“Seja como for, faça a gentileza de não dar ouvidos aos livros doidões que afirmam que o jovem Jesus foi estudar com monges tibetanos, iogues da Índia ou ascetas do Mar Morto antes de iniciar sua vida pública. É infinitamente mais provável que ele tenha passado os 30 primeiros anos de sua vida em Nazaré, em meio a uma família grande, com vários irmãos e irmãs”. P. 130.

No livro do livro, mencionando mais uma vez os ateus, mas agora num tom que lhes dá uma certa vantagem, Lopes nos diz:

“De fato, podemos afirmar sem muito medo de errar que países como Dinamarca, Suécia, Noruega e Finlândia estão realizando, sem querer, um dos experimentos de psicologia social mais interessantes da história: eles estão entre os primeiros Estados de que se tem notícia nos quais a grande maioria da população livremente escolheu não acreditar em Deus, e nos quais a qualidade de vida é elevadíssima em quase todos os aspectos. Atenção para os números: só 28% dos dinamarqueses, 23% dos suecos, 22% dos noruegueses e 33% dos finlandeses afirmam acreditar em Deus. Não temos nenhum sinal de que, após abraçar a descrença, aquele monte de gente loira se transformou num bando de amorais. Pelo contrário - crimes violentos são muito mais comuns nos EUA, a mais religiosa das nações desenvolvidas, do que entre eles.” P. 160.

Fim.