terça-feira, 14 de agosto de 2018

Canção da Liberdade



Há uns 12 anos, numa madrugada sem sono, liguei a TV e estava passando este filme no SBT. Logo me chamou a atenção, devido ao tema abordado em sua trama. O racismo e o Movimento pelos Direitos Civis, na década de 1960, em todo o território norte-americano, principalmente nos estados sulistas, onde a discriminação e perseguição aos negros eram e ainda é mais intensa que nos estados do norte.

Sempre garimpando na internet filmes sobre o racismo, demorei anos a fio para encontrar este. Finalmente consegui baixá-lo e colocá-lo disponível no Youtube. Infelizmente, não está em sua melhor qualidade visual, mas dá para apreciá-lo numa boa, e ver o quanto o nefasto racismo que gerou uma cruel segregação é uma ferida aberta na história do país da “liberdade”.

Canção da Liberdade conta em seu elenco com o renomado ator negro, Danny Glover, que faz o papel de pai de Owen, um adolescente indignado com o racismo e preconceito vigentes na cidade em que vive. 

A história se passa na fictícia cidade de Quinlan, no Mississipi, uma cidadezinha tranquila e pacata, mas que guarda em suas entranhas um ódio visceral dos negros que ali habitam. A segregação é total. Negros não podem entrar em lanchonetes, não podem frequentar a biblioteca, a justiça eleitoral coloca várias dificuldades para o direito de voto dos negros, mesmo que a constituição do país lhes “garanta” essa prerrogativa.

Não conformados com a situação de humilhação porque passam, os negros de Quinlan começam a se organizar para reverter o quadro degradante em que a segregação os colocam. Imbuídos da ideia de não-violência, resistirão as investidas dos brancos racistas sem apelarem para o revide físico, suportando as pancadas, chutes e murros, numa tentativa de pouco a pouco ir minando a segregação. 

Em muitos lugares da nação, o Movimento Pelos Direitos Civis está progredindo e fazendo as estruturas segregacionistas verem os primeiros tijolos de seus muros ruírem. Em Quinlam, seus moradores negros nutrem essa esperança, não sem discordarem e discutirem calorosamente sobre as estratégias que devem tomar. No final das contas, a não-violência é o caminho que resolvem adotar.

Encarceramentos, surras e humilhações, que já eram esperados não demoram a acontecer. Quando Owen e Archie Mullen, outro ativista negro estão saindo da prisão, uma corja de moradores brancos tentam linchá-los, e um homem empunhando uma Bíblia, provavelmente o pastor da cidade, interpela Owen:

“Não acredita em jesus, acredita?”

Ao que Archie Mullen responde:

“Acredita que Jesus Cristo é amor?”

O “cristão” retruca:

“Não estou falando com você. Você vai pro inferno, negro! E vai logo!”

Numa outra ocasião do filme, uma “mulher de Deus” tem uma “inteligente” e “divina inspiração” ao dizer:

“Deus nos fez separados. Deve ter uma razão. Enfim, percebi... Ele quer que cada um saiba o seu lugar e fique nele! De outro modo, haveria desordem. E Deus não quer desordem!”

Nunca é demais lembrar que o estado do Mississipi tinha e tem uma concentração massiva de evangélicos conservadores, aqueles que se dizem a luz do mundo, e veem a si mesmos como os iluminados de Deus.

O racismo dos evangélicos ainda é tão acentuado que o protestante Ronald Syder, Ph.D em História na Universidade de Yale, traz em seu livro (O Escândalo do Comportamento Evangélico. Viçosa, MG: Ultimato, 2006), os seguintes números:

“Em 1989 George Gallup Jr. e James Castelli publicaram os resultados de uma pesquisa para determinar quais grupos nos Estados Unidos eram mais propensos a rejeitar vizinhos negros – um bom indicador de racismo. Católicos e cristãos não evangélicos foram classificados entre os menos propensos; 11% fizeram objeção ao contato entre negros e brancos. Os protestantes históricos chegaram próximo dos 16%. Com 17% batistas e evangélicos ficaram entre aqueles mais propensos a repudiar a possibilidade de ter vizinhos negros, e 20% dos batistas do sul rejeitaram a ideia de ter vizinhos negros.” P. 25.

Ele escreve mais:

“Durante o movimento de direitos civis, quando os protestantes históricos e os judeus se uniram aos afro-americanos em sua luta histórica por liberdade e igualdade, líderes evangélicos foram quase totalmente omissos. Alguns se opuseram ao movimento; outros não se pronunciaram. Quando Frank Gaebelein, então co-editor de Christianity Today, não apenas cobriu a marcha de Martin Luther King sobre Selma, como também endossou o movimento e a ele se juntou, experimentou oposição e hostilidade da parte de outros líderes evangélicos.” P. 25.

E conclui com uma pergunta desconcertante:

“[...] como é possível que os evangélicos sejam as pessoas mais racistas e preconceituosas de nossa sociedade?” P. 47.

Voltando ao filme, com muitos sofrimentos e dores, os pretinhos de Quinlan conseguem a liberdade de não serem mais segregacionados. Entretanto, para quem conhece um pouco da história dos negros, isso não seria o final de práticas racistas nos EUA.

Mais um filme espetacular!