CORK, Matthew; KEMP; Kenneth. Antes que seja tarde. Rio de Janeiro: Graça Editorial, 2014.
Não esperava ver um livro desse quilate, publicado pela Graça
Editorial. Ela é campeã em vender lixos de autores como o Kenneth Hagin, T. L.
Osborn e tantas outras porcarias. Mas esse livro aqui é diferente e valeu muito
a pena tê-lo lido.
A capa por si só, já chama a atenção de qualquer um. A criança
indiana com lágrimas nos olhos e o subtítulo NENHUM DE NÓS ESTÁ LIVRE ENQUANTO
UNS SÃO ESCRAVIZADOS é muito forte e impactante.
Muitas pessoas desinformadas têm a ingênua e fantasiosa ideia de
que a escravidão terminou nos séculos anteriores. Pensam que vivemos uma era
pós-escravista e pós-racista. Enquanto sociedade global e globalizada, estamos
alguns passos a frente de nossos antepassados, somos evoluídos e superiores
moralmente, dizem elas.
Mas as coisas nem sempre são como nós as idealizamos. Não
obstante, o apartheid ter
oficialmente acabado na África do Sul, em 1994, depois de muitas lutas e sangue
derramado, e a segregação dos negros ter sido “banida” na década de 1960, com a
luta pelos direitos civis, nos EUA - a discriminação, o preconceito, o racismo e
a escravidão ainda permanecem na Índia e países vizinhos como o Nepal,
Bangladesh e Paquistão. Um contingente expressivo de mais 250 milhões de
pessoas, apenas na Índia, são vítimas diariamente, há milênios, de grande
violência e castração de suas dignidades, por não fazerem parte das castas
“superiores”.
“O drama desse povo é
particularmente terrível. Fome, doença, abusos, exploração, violência física e
espiritual, agressão à dignidade humana. Tudo é tangível. Incomparável.” P. 120.
“[...] mais de 250
milhões presos a um sistema por mais de três milênios, uma população inteira
condenada ao abandono, exploração, isolamento, opressão e dificuldades. Em
suma, excluídos de quaisquer benefícios sociais.” P.
122.
Este livro nos trás a infeliz situação dos dalits na Índia. Para as castas superiores, eles são os intocáveis, os inferiores, os
sub-humanos, a escória da sociedade, os peões e todos os adjetivos ruins que
imaginarmos. Não há esperança para eles no sistema religioso hindu. Arrisco dizer, que para 99% deles, não há
mobilidade social alguma. É um sistema cruel, opressor e desumano. Os dalits são o grupo humano mais oprimido
de todos os tempos. Nada os supera.
“Espera-se que os dalits
cumpram funções sociais básicas: cuidar de dejetos humanos e animais, do lixo.
Não são considerados humanos. Não têm acesso à educação. São usados e abusados
em becos ermos da cidade e das densas florestas do interior da área rural e não
possuem recursos ou direito à justiça. Não há proteção legal, acesso aos
tribunais, eles não têm voz política nem esperança de melhoria de vida.” P. 35.
Mais
informações e fatos chocantes e bárbaros são trazidos sobre os dalits:
“[...] Outras ocupações
impuras incluem abate, curtume, remoção e descarte de animais mortos, limpezas
de latrinas à mão e manejo de carcaças podres.” P. 142.
A
religião hindu como discurso autoritativo divino, legitimador e legal, tem um
papel de proeminência na configuração opressiva e discriminatória da sociedade
indiana de castas.
“Dalith são escravos.
Espera-se que eles sirvam às castas superiores. O hinduísmo ensina-lhes que o
drama deles é resultado de algum crime terrível cometido em uma vida passada. A
posição que ocupam na sociedade é seu destino. Pensar em fugir disso seria
violar a regra do carma, a lei de causa e efeito, e tal infração nesta vida
resultaria em um sofrimento maior na próxima. O destino é a casta. São o que
são: escravos.” P. 141.
Udit
Raj, um proeminente indiano dalit,
uma das raras pessoas que conseguiram “escapar” do apartheid da Índia, também reconhece o papel nefasto do hinduísmo
na perpetuação do sistema de castas:
“Os deuses e as deusas hindus
deram aos dalits apenas indignidade, fome e escravidão. Recusamo-nos a
continuar a aceitar esse código de dominação por mais tempo. Os dalits precisam
se libertar das algemas de seu passado de opressão e iniciar um renascimento
por meio da educação e conscientização acerca dos direito humanos.” P. 98.
O relativismo cultural entra em colapso diante dessa triste situação.
Como os relativistas culturais poderão argumentar em favor da não intervenção e ajuda externa (objetivo
desse livro) para minar essa desumana forma de organização social? Se eles
forem contra, podemos concluir que são a favor de que milhões de pessoas
continuem sendo tratadas como inferiores e sub-humanos? Eles não estão, dessa
maneira, apoiando o etnocentrismo das
castas “superiores”? Concordo com o André Luiz dos Santos, Ph.D em Antropologia
na Universidade de Londres e Professor da Unicamp, quando ele diz:
“Não há razão para
querer imortalizar as facetas culturais que resultam da miséria e da opressão.” P. 20. [1]
Não querendo “imortalizar as facetas culturais que resultam da miséria e da opressão”,
o Matthew Cork, um pastor norte-americano, saiu de sua zona de conforto, e se
propôs a fazer algo por esse povo indiano.
“Era hora de deixar para trás
tudo o que havia levado comigo, livrar-me de preconceitos e pressupostos, desse
complexo de superioridade norte-americano natural, construído em grande parte
pela mídia.” P. 27.
Como ele mesmo diz, agora ele tinha “uma visão pela qual valeria morrer”.
P. 36. Juntamente
com a sua igreja, ele se comprometeu a construir 200 escolas (dentre 1000) para
crianças dalits – o futuro e a
esperança de um povo tão sofrido.
“As crianças são o futuro.
Essas jovens mentes podem absorver novas possibilidades. Estão famintas por
conhecimento, abraçam a ideia de que foram feitas de modo incrivelmente
maravilhoso e de que há potencial ilimitado além das precárias condições em que
vivem.” P. 36.
Páginas a frente ele retoma o papel
transformador que as crianças podem ter, caso tenham uma educação emancipadora.
“De algum modo, sabíamos que,
se houvesse escolas suficientes e crianças com uma visão de mundo ampla e
desperta, talvez o sistema de castas sucumbisse sob o terrível peso do próprio
abuso cruel, sendo exposto como realmente é: a escravidão dos dias atuais. P.
119-120.
Um
filantropo muito rico que fundou uma escola para crianças dalits, mostra-se esperançoso com os resultados que a educação
desses pequeninos pode gerar:
“Nossa intenção é que essas
crianças quebrem todas as barreiras sociais. Esperamos que se tornem os líderes
empresariais e intelectuais da próxima geração.” P.
133.
Dentro dessa perspectiva e visão, diga-se de
passagem, tarefa mui grandiosa e árdua, Cork e sua igreja tiveram a ajuda
inestimável de Joseph D’ Souza, um indiano corajoso e cabra macho, que pouco se
lixou para a sua casta “superior” e se casou com uma dalit. Vivenciando diariamente a discriminação que sua esposa e
todos os dalits sofriam, ele resolveu
lutar pela eliminação desse sistema segregador e escravizante. Ele diz:
“O trabalho que estamos
realizando tem consequências sociais históricas. As iniciativas terão
implicações nacionais para milhões de pessoas da geração emergente. Uma
coalização de líderes de várias origens religiosas e políticas se uniram na
urgência de erradicar um sistema que massacrou o espírito de todo um povo por
centenas e, talvez, milhares de anos. Este é um momento crucial na história da
Índia.” P. 33.
Na verdade, muito antes do Cork está
envolvido na causa, o D’ Souza já trabalhava há anos pela libertação dos dalits. Esse livro conta-nos como eles
se conheceram e sua posterior sociedade para a construção das escolas para as
crianças intocáveis. Cork relembra
quando foi à primeira vez a Índia, e se deparou com os pequeninos:
“Sabia sobre o tráfico humano
e o fato chocante de que essas crianças não eram simples pedintes de rua, e sim
propriedades de exploradores que as soltavam atrás de estrangeiros com dinheiro
no bolso. Tudo o que elas conseguem obter dos pedestres a caminho de seus
afazeres vai diretamente para os cofres do líder da quadrilha. Essas crianças
perdidas eram máquinas de fazer dinheiro para seus ‘tutores’.” P. 29.
Essas
crianças são vítimas do tráfico humano, estupros e toda sorte de perversidade
que homens inescrupulosos, com a ajuda do Estado e da religião hindu, podem
perpetrar.
“O mundo precisa entender que
a escravidão persiste. Ainda hoje, crianças são compradas e vendidas como
bugingangas. Meninas ainda bem pequenas são forçadas a entrar no obscuro e ilícito
comércio sexual. Na infância, são forçadas a esmolar nas ruas e levar o que
recebem para encher os bolsos de bandidos, que abusam delas à noite.” P. 184.
Ele
continua:
“Outras crianças são
obrigadas a trabalhar em fábricas por muitas horas, sob intenso calor e metas
de produção rígidas, tudo isso em condições precárias, excluindo esses jovens
de qualquer possibilidade de educação. As escuras ruas da abarrotada cidade se
transformam em um mercado onde adolescentes são oferecidos por dinheiro para
satisfazer o furor de seres primitivos e imorais, que sequer pensam no impacto
daqueles poucos minutos abjetos sobre aquelas vidas.” P. 184-185.
Diante
desse quadro tão assustador e nefasto, Cork é um pastor evangélico que
arregaçou as mangas, juntamente com a sua igreja e investiram recursos e mais
recursos para ajudar na erradicação do sistema de castas na Índia. Esse livro
conta como foi essa aventura, que gerou e tem gerado muitos frutos.
Não
são todos os pastores que são corruptos e gananciosos. São de pessoas e igrejas
assim, que o mundo precisa. Não importa de que religião ou igreja seja. Contanto
que tal religião ou igreja não trabalhem para a alienação humana, a exemplo do
Hinduísmo, todas podem e devem lutar pela emancipação e dignidade humana. Coletiva ou individualmente.
REFERÊNCIAS
[1] - SANTOS, José Luiz. O Que é Cultura. 16ª ed. São Paulo: Brasiliense,
2006.