quarta-feira, 30 de maio de 2018

Confissões do Crematório



DOUGHTY, Caitlin. Confissões do Crematório. Rio de Janeiro: DarkSide, 2016. (PDF).

“Sabemos que a morte nos espera e isso afeta tudo que fazemos, inclusive o impulso de tomar um cuidado caprichado dos nossos mortos”. P. 40.

Caitlin Doughty (Bacharel em História na Universidade de Chicago) quando criança, aos oito anos de idade, viu uma menina cair da escada rolante do shopping e morrer. A partir daí, a morte passou a fazer parte do seu imaginário. Com apenas 23 anos, conseguiu o seu tão sonhado emprego: tornar pessoas mortas em cinzas, num crematório na Califórnia. Neste livro ela conta suas experiências de como é trabalhar torrando corpos e triturando ossos; conta como a cultura do enterro, velório, preparação do corpo, eram feitas no passado do seu país e noutros países e épocas. Conclama o leitor a uma reflexão sobre si - uma reflexão sobre a própria finitude e o vazio que o espera, sobretudo, porque a nossa sociedade atual parece pensar que viverá para sempre. Para ela, precisamos pensar a nossa própria morte. Isso é libertação; é emancipação. Agindo assim, teremos uma boa morte. Resignação.

“Olhar diretamente nos olhos da mortalidade não é fácil. Para evitar isso, nós escolhemos continuar vendados, no escuro em relação às realidades da morte. No entanto, a ignorância não é uma bênção — é só um tipo mais profundo de pavor. Podemos nos esforçar para jogar a morte para escanteio, guardando cadáveres atrás de portas de aço inoxidável e enfiando os doentes e moribundos em quartos de hospital. Escondemos a morte com tanta habilidade que quase daria para acreditar que somos a primeira geração de imortais. Mas não somos. Vamos todos morrer e sabemos disso. Como o grande antropólogo cultural Ernest Becker disse: ‘A ideia da morte, o medo dela, assombra o animal humano como nenhuma outra coisa’. O medo da morte é o motivo de construirmos catedrais, de termos filhos, de declararmos guerras e de vermos vídeos de gatinhos na internet às três da madrugada. A morte guia todos os impulsos criativos e destrutivos que temos como seres humanos. Quanto mais perto chegamos de entendê-la, mais perto chegamos de entender a nós mesmos.” P. 11.

A morte na fundação dos EUA:

“Os Estados Unidos foram construídos sobre a morte. Quando os primeiros colonizadores europeus chegaram, o que eles mais fizeram foi morrer. Se não era de fome, do frio congelante ou em batalhas com os nativos, era a influenza, a difteria, a disenteria ou a varíola que acabava com eles. No final dos primeiros três anos do povoado de Jamestown, na Virginia, 440 dos originais quinhentos colonizadores estavam mortos. Principalmente as crianças — elas morriam o tempo todo. Se você era mãe de cinco filhos, teria sorte se dois vivessem para além dos 10 anos de idade.” P. 27.

Antes era preferível morrer em casa:

“Morrer no ambiente higiênico de um hospital é um conceito relativamente novo. No final do século XIX, morrer em um hospital era um destino reservado a indigentes, as pessoas que não tinham nada nem ninguém. Quando tinha escolha, a pessoa queria morrer em casa na cama, cercada de amigos e familiares. Até o começo do século XX, mais de 85% dos americanos ainda morria em casa.

Os anos 1930 trouxeram o que é conhecido como “medicalização” da morte. A ascensão dos hospitais escondeu as visões, os cheiros e os sons desagradáveis da morte. Enquanto antes um líder religioso podia conduzir um moribundo e guiar a família na dor, agora são os médicos que acompanham os momentos finais de um paciente. A medicina passou a cuidar de questões de vida e morte, não os apelos aos céus. O processo da morte ficou mais higiênico e altamente regulado no hospital. Os profissionais da saúde acharam inadequado para consumo público o que o historiador da morte Philippe Ariès chamou de ‘espetáculo nauseante’ da mortalidade. Virou tabu “entrar em um quarto com cheiro de urina, suor e gangrena, em que os lençóis estão sujos de fezes”. O hospital era um lugar onde os moribundos podiam passar pelas indignidades da morte sem ofender a sensibilidade dos vivos.” P. 31-32.

Ver mortos não faz parte de nosso dia a dia:

“Hoje, não ser obrigado a ver cadáveres é um privilégio do mundo desenvolvido. Em um dia comum em Varanasi, nas margens do Ganges, na Índia, algo entre oitenta e cem altares de cremação ardem. Depois de uma cremação bastante pública (algumas executadas por criancinhas da casta intocável da Índia), os ossos e as cinzas são soltos na água do rio sagrado. As cremações não são baratas — o custo da madeira cara, das mortalhas coloridas e de um cremador profissional somam um valor elevado. As famílias que não têm dinheiro para uma cremação, mas que querem que seus entes queridos mortos vão para o Ganges, colocam o corpo no rio à noite e o deixam lá para que se decomponha. Os visitantes de Varanasi veem cadáveres inchados passarem flutuando ou sendo comidos por cachorros. Há tantos corpos assim no rio que o governo indiano solta milhares de tartarugas carnívoras para engolir os ‘poluentes necróticos’.

O mundo industrializado estabeleceu sistemas para impedir esses encontros desagradáveis com os mortos. Neste exato momento, cadáveres seguem por estradas e rodovias em vans brancas comuns. [...] Corpos atravessam o planeta nos compartimentos de carga de aviões enquanto passageiros de férias viajam em cima. Nós colocamos os mortos embaixo. Não só debaixo da terra, mas também debaixo de tampos de macas falsas de hospital, dentro das barrigas das aeronaves e nas profundezas da nossa mente consciente.” P. 35.

E na Paris do século retrasado...

“No final do século XIX, os cidadãos de Paris iam ao necrotério aos milhares diariamente para ver os corpos de mortos não identificados. Os espectadores faziam fila por horas para entrar enquanto ambulantes vendiam frutas, doces e brinquedos. Quando chegavam no início da fila, eram levados para uma sala de exibição, onde os cadáveres estavam expostos em placas por trás de uma vitrine grande”. P. 38.

Sabemos e refletimos sobre nossa morte:

“O grande triunfo (ou tragédia horrível, dependendo de como você encara) de ser humano é que nosso cérebro evoluiu ao longo de centenas de milhares de anos para compreender nossa mortalidade. Infelizmente, somos criaturas conscientes. Mesmo que passemos o dia encontrando jeitos criativos de negar nossa mortalidade, por mais poderosos, amados e especiais que nos sintamos, sabemos que estamos fadados à morte e à decomposição”. P. 40.

A morte no passado dos EUA:

“A morte nos Estados Unidos começou como uma operação totalmente caseira. Uma pessoa morria na própria cama, cercada pela família e pelos amigos. O cadáver era lavado e coberto com uma mortalha pelo indivíduo mais próximo do homem ou da mulher e exposto por vários dias na casa para um velório, um ritual batizado a partir da palavra do inglês antigo para ‘vigília’. [...] Para impedir a decomposição enquanto o corpo ficava em casa, inovações como panos encharcados de vinagre e cubas de gelo embaixo do cadáver foram desenvolvidas no século XIX. Durante o velório, havia comida para ser consumida, álcool para ser ingerido e uma sensação de libertação da pessoa morta do lugar que ocupava na comunidade. Como Gary Laderman, acadêmico das tradições de morte americanas, enunciou: ‘Apesar de o corpo ter perdido a chama que o animava, as convenções sociais profundas exigiam que ele recebesse o respeito apropriado e cuidados dos vivos’.” P. 48.

No Tibete, os mortos são tratados assim:

“No alto das montanhas do Tibete, onde o chão é rochoso demais para enterros e as árvores são poucas para fornecer madeira para piras crematórias, foi desenvolvido outro método para lidar com os mortos. Um rogyapa profissional, ou fragmentador de corpos, corta a carne do cadáver e mói os ossos que sobram com farinha de cevada e manteiga de iaque. O corpo é colocado em uma pedra alta e plana para ser comido por abutres. As aves se aproximam e carregam o corpo em direções diferentes pelo céu. É uma forma generosa de se livrar do corpo, com a carne que sobrou alimentando outros animais.” P. 51.

A evolução histórica da Medicina em relação aos defuntos:

“O uso de cadáveres para avanços na ciência se desenvolveu muito ao longo dos últimos quatrocentos anos. No século XVI, a medicina era praticada com uma compreensão medíocre de como o corpo humano realmente funcionava. Textos médicos erravam em tudo, desde como o sangue corria pelo corpo até a localização de órgãos vitais e ao que fazia as doenças se desenvolverem (respostas aceitáveis: desequilíbrios nos quatro ‘humores’ do corpo — muco, sangue, bile preta e bile amarela). O artista da Renascença Andreas Vesalius, incomodado porque os estudantes de medicina estavam aprendendo a anatomia humana dissecando cachorros, pegava escondido cadáveres de criminosos nas forcas. Apenas nos séculos XVIII e XIX as escolas de treinamento cirúrgico passaram a oferecer consistentemente dissecações anatômicas humanas para ensino e pesquisa. A demanda de cadáveres era tanta que os professores passaram a roubar túmulos recentes para pegar os corpos. Ou, no caso de William Burke e William Hare na Escócia do século XIX, assassinar pessoas vivas (dezesseis no total) e vender os corpos para serem dissecados por um professor de anatomia.” P. 71.
Os mortos no medievo:

“No final da Idade Média, a ‘danse macabre’, ou dança dos mortos, era um assunto popular na arte. As pinturas exibiam corpos em decomposição com sorrisos enormes, que voltam para pegar os vivos, alheios a tudo. Os corpos exultantes, anônimos pela putrefação, acenam e batem os pés enquanto puxam papas e pobres, reis e ferreiros em sua dança animada. As imagens lembravam os espectadores que a morte era certa: ninguém escapa. O anonimato aguarda.” P. 74.

O nosso fim e daqueles que amamos se aproxima:

“O mitologista Joseph Campbell nos diz sabiamente para desprezar o final feliz, ‘pois o mundo que conhecemos, que vimos, só oferece um final: a morte, a desintegração, o desmembramento e a crucificação do nosso coração com o fim daqueles que amamos’.” P. 77.

A artificialidade da indústria da morte:

“Se deixados em paz, os corpos humanos apodrecem, se decompõem, se desintegram e afundam gloriosamente na terra, de onde vieram. Usar o embalsamamento e os caixões pesados de proteção para impedir esse processo é uma tentativa desesperada de adiar o inevitável e demonstra nosso pavor óbvio da decomposição. A indústria da morte faz caixões e embalsamamentos com a justificativa de ajudar nossos corpos a parecerem ‘naturais’, mas nossos costumes relacionados à morte são tão naturais quanto treinar criaturas majestosas como os ursos e os elefantes para dançarem com roupinhas fofas ou erguer réplicas da Torre Eiffel e dos canais de Veneza no meio do árido deserto norte-americano.” P. 85.

A futilidade da tecnologia frente a morte:

“Os cadáveres mantêm os vivos presos à realidade. Eu tinha vivido toda a minha existência até começar a trabalhar na Westwind (crematório na Califórnia) relativamente distante de mortos. Agora, eu tinha acesso a montes deles, empilhados no freezer do crematório. Eles me obrigavam a encarar minha própria morte e a morte dos meus entes queridos. Por mais que a tecnologia possa ter se tornado nossa mestra, precisamos apenas de um cadáver humano para puxar a âncora do barco e nos levar de volta para o conhecimento firme de que somos animais glorificados que comem, cagam e estão fadados a morrer. Não somos nada mais do que futuros cadáveres.” P. 89.

Os mortos e as bactérias:

“Embora seja verdade que cadáveres criem imagens e cheiros ofensivos, um corpo humano morto oferece bem pouca ameaça a um vivo; as bactérias envolvidas na decomposição não são as mesmas que causam doenças. [...]vivo. É mais perigoso para a sua saúde andar de avião do que estar no mesmo aposento que um corpo morto”. P. 91-92.

Os sentimentos que o cadáver evocam em nós:

“Um cadáver não precisa que você se lembre dele. Na verdade, não precisa de mais nada — fica mais do que satisfeito de ficar ali, deitado, apodrecendo. É você que precisa do cadáver. Ao olhar para o corpo, você entende que a pessoa se foi, que não é mais uma participante ativa do jogo da vida. Ao olhar para o corpo, você se vê nele e sabe que também vai morrer. O contato visual é uma chamada à autopercepção. É o começo da sabedoria.” P. 92.

A ironia macabra de vermos o nosso próprio velório quando estamos bem idosos:

“O segmento que cresce mais rápido na população americana está acima dos 85 anos, o que eu chamaria de os agressivamente idosos. Se você chegar a essa idade, além de ter uma boa chance de estar vivendo com algum tipo de demência ou doença terminal, as estatísticas mostram que você tem 50% de chances de acabar em uma casa de repouso, o que gera a pergunta se uma boa vida é medida em qualidade ou quantidade. [...] Em 1899, apenas 4% da população americana tinha mais de 65 anos, e nem se pensava em chegar a 85. Agora, inúmeros indivíduos sabem que a morte está vindo durante meses ou anos de deterioração. A medicina nos deu a ‘oportunidade’ (imprecisamente definida) de estar no nosso próprio velório.” P. 115.

A morte é quem dá sentido as nossas vidas:

“A morte pode parecer destruir o sentido das nossas vidas, mas na verdade ela é a fonte da nossa criatividade. Como disse Kafka: ‘O sentido da vida é que ela termina’. A morte é o motor que nos mantém em movimento, que nos dá motivação para realizar, aprender, amar e criar. Os filósofos proclamam isso há milhares de anos com a mesma veemência com que insistimos em ignorar o aviso geração após geração. Isaac estava fazendo doutorado, explorando os limites da ciência e fazendo música por causa da inspiração que a morte oferecia. Se ele vivesse para sempre, era provável que acabasse se tornando chato, desanimado e desmotivado, privado da riqueza da vida pela rotina maçante. As grandes conquistas da humanidade nasceram dos prazos impostos pela morte.” P. 117-118.

O sonho da imortalidade:

“Mesmo sabendo que podem ter uma morte lenta e sofrida, muitas pessoas ainda desejam ficar vivas a qualquer custo. Larry Ellison, o terceiro homem mais rico dos Estados Unidos, doou milhões de dólares para pesquisas dedicadas à extensão da vida, porque, segundo ele: 'A morte me deixa com muita raiva. Não faz sentido para mim'. Ellison transformou a morte na sua inimiga e acredita que devíamos expandir nosso arsenal de tecnologia médica para acabar com ela de uma vez por todas. Não é surpresa que o grupo de pessoas que tentam tão freneticamente aumentar nosso tempo de vida seja formado basicamente por homens ricos e brancos. Homens que viveram vidas de privilégio sistemático e acreditam que esta deva se estender para sempre.” P. 117.

E mais uma vez, reflitamos sobre o nosso inescapável fim:

“Nunca é cedo demais para começar a pensar na própria morte e na morte das pessoas que você ama. Não quero dizer pensar na morte em ciclos obsessivos, com medo do seu marido ter sofrido um acidente horrível de carro ou do seu avião pegar fogo e despencar do céu. Mas uma interação racional, que termina com você percebendo que vai sobreviver ao pior, seja lá qual for o pior. Aceitar a morte não quer dizer que você não vai ficar arrasado quando alguém que você ama morrer. Quer dizer que você vai ser capaz de se concentrar na sua dor, sem o peso de questões existenciais maiores como 'Por que as pessoas morrem?' e 'Por que isso está acontecendo comigo?'. A morte não está acontecendo com você. Está acontecendo com todo mundo. Uma cultura que nega a morte é uma barreira para alcançar uma boa morte. Superar nossos medos e conceitos equivocados e loucos sobre esse assunto não vai ser tarefa fácil, mas não devemos esquecer a rapidez com que outros preconceitos culturais — o racismo, o sexismo, a homofobia — começaram a desmoronar no passado recente. Está mais do que na hora da morte ter seu momento da verdade.” P. 118-119.