quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Somos Todos Canalhas


FILHO, Clóvis de Barros; POMPEU, Júlio. Somos todos canalhas: filosofia para uma sociedade em busca de valores. 1. ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2015. (PDF).

"Por mais interessante que possa parecer o argumento de um pensador, deixar-se seduzir por ele ao ponto de lhe consagrar um altar e desconsiderar todas as ideias discrepantes é contrário ao espírito da filosofia". P. 06.

Clóvis de Barros (Ph.D em Ciência da Comunicação na USP) e Júlio Pompeu (Ph.D em Psicologia na Universidade do Espírito Santo) são ótimos intérpretes da Filosofia, colocando em palavras simples as ideias dos antigos gregos e outros pensadores mais modernos.

Aqui, eles passeiam pela história do pensamento, explicitando formidavelmente os valores políticos, sociais e morais, que fizeram os Filósofos quebrarem a cabeça. Passando pela aristocracia dos valores gregos, com a mudança para valores igualitários, advindos do cristianismo, chegando aos ideais iluministas com Rousseau, Kant, discutindo o utilitarismo de Mill. Por fim, dialogando sobre o tema tão em voga da tolerância. Devo ter me esquecido de alguma coisa que eles trabalham, mas em geral é isso.

PS: não consegui identificar os motivos do título deste livro. Há apenas uma menção aos "canalhas" na última página.

Aqui vai uma longa citação, sobre o ceticismo niilista sobre a busca dos valores:

"Desde que o homem pensa, estamos em busca de valores absolutos tais como o bem, o sagrado, o belo – atemporais e independentes da história. O niilismo, que proclama a morte de Deus, contribuiu largamente para fazer acreditar na sua inexistência. Tanto para o niilismo filosófico quanto para o relativismo ético, toda investigação sobre valores é uma grande bobagem ou uma grande sacanagem; uma tentativa de fazer triunfar uma alegria sobre a atemporais e independentes da história. O niilismo, que proclama a morte de Deus, contribuiu largamente para fazer acreditar na sua inexistência. Tanto para o niilismo filosófico quanto para o relativismo ético, toda investigação sobre valores é uma grande bobagem ou uma grande sacanagem; uma tentativa de fazer triunfar uma alegria sobre a outra em nome de uma verdade absoluta que faz défaut.

O problema é que apesar disso tudo temos que continuar vivendo e convivendo. E, salvo o melhor juízo, nossa vida e nossa convivência continuam dependendo de escolhas. E estas sempre implicarão a identificação do que mais vale a pena. Portanto, ainda que eles sejam uma grande bobagem ou uma grande sacanagem, a verdade é que continuaremos precisando de valores para fazer nossas escolhas, encontrar nossos caminhos, seja na particularidade de nossas vidas íntimas ou na coletividade da nossa ética social.

[...] a convicção de que os valores não passam de uma grande bobagem parece atender aos interesses de muitos. Porque assim estaríamos definitivamente chafurdados no reino da animalidade, onde o triunfo da força é garantidor do triunfo dos apetites, dos prazeres em detrimento do que nos é estranho, alheio e sem importância." P. 07.

Se não temos livre arbítrio para deliberarmos racionalmente sobre a melhor maneira de viver, ainda assim, acreditamos que transcendemos a matéria, e é isso que importa. É isso que escrevem os autores:  

"[...] mesmo que alguém sugira que não há liberdade alguma e que não passamos de células ignorantes, incapazes de identificar a complexa rede de causalidades que nos determina estritamente, o fato é que dentro dessa ignorância nos acreditamos livres, senhores de certa autonomia de escolha, trazendo de novo à baila a necessidade da discussão sobre os valores". P. 07.

A diferença entre nós e os animais é que pensamos racionalmente sobre o nosso agir, já os outros seres vivos agem apenas por instintos. Um dos livros de Rousseau nos dão a base disto:

"[Tenho grande apreço] pelo texto de Rousseau intitulado Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, o qual não canso de citar. Nele, o filósofo suíço explica que o gato nasce sabendo viver como gato. Toda a sua vida será regida pelo instinto. Portanto, tudo no gato é instintivo. Não há a menor possibilidade de ele tomar uma decisão ou fazer uma escolha, porque a escolha na sua vida já é dada pela natureza. Cada movimento seu obedece a uma espécie de programa felino. E é por isso que ele morrerá de fome, mas não comerá alpiste.

O homem não seria assim porque tem condições de escolher e de tomar decisões. Não é 100% regido por seu instinto. Ele é capaz de exercer a sua liberdade justamente porque transcende a sua natureza. E por isso segura um pouco a onda das suas pulsões de vez em quando. Então, Rousseau tem aquela famosa frase: 'No homem a vontade fala ainda quando a natureza se cala.' E a vontade é exatamente essa instância deliberativa, racional, inteligente, que nos faz ir um pouco além da nossa condição instintiva. Costuma-se dizer que o pássaro é livre para voar. Na poesia isso fica bonito. Mas na filosofia sabemos que não há nenhuma liberdade no gesto do pássaro em voo. Ele é escravo do voo, determinado pelo instinto de pássaro. Não há escolha. O voo não é resultado da deliberação, mas uma inexorabilidade da tirania da natureza." P. 98.

Quem nunca valorizou ou gostou de algo, só porque a sociedade, ou pessoas de seu convívio valorizam/gostam?

"Quem nunca se perguntou se aquilo que busca com afinco, que diz que gosta, realmente se trata de algo de que gosta, genuinamente, ou se diz que gosta só porque todos dizem que é algo bom? É o caso quando conquistamos coisas que muitos desejam – os outros nos invejam e parabenizam, mas será que gostamos da coisa conquistada ou dos cumprimentos recebidos? Em resumo, até que ponto a nossa felicidade é mera organização íntima e singular dos nossos afetos e até que ponto essa organização é influenciada pelos outros?" P. 127.

Num país onde a leitura, o estudo, o prazer do conhecimento e da intelecção, é muitas vezes motivo de piada, temos nos últimos anos, um outro agravante: as redes sociais, que democratizaram a mediocridade da grande massa. Estamos sempre ávidos por mostrar como nossa vida é “maravilhosa” e “eletrizante”, e até objeto de inveja dos outros.

"Na falta de recursos intelectuais, educacionalmente adquiridos e desenvolvidos, o que resta é a imitação, adesão irrefletida à moda. Vida sem autonomia intelectual cujo único prazer desloca-se da percepção fantasiosa produzida pelo indivíduo para o aplauso da massa. Não é à toa que estes tempos de educação em baixa, de verdadeira aversão a tudo que lembra atividade intelectual, também são tempos de uma autoexposição inédita. Tempos de privacidade em baixa, fora de moda. É curioso como em menos de cinquenta anos passamos de uma ordem social em que os prazeres eram reservados a espaços íntimos, para poucos, para uma ordem em que os prazeres devem ser fotografados e compartilhados com milhões de espectadores. Antes, o prazer do jantar sofisticado. Agora, o prazer de contar ao mundo sobre o jantar sofisticado. Prazer dos joinhas ou likes do Facebook – como se o jantar perdesse o seu valor como experiência e adquirisse valor como elemento de exposição, como atrativo de aplausos sociais, estes, sim, definidores do prazer." P. 136.

Seria Deus o garantidor dos valores? Como podemos falar neles, sem partimos da premissa de que um Legislador que transcende nossas contingências e contradições é compulsoriamente necessário?

"Os valores são complexos exatamente porque se apresentam como referências por vezes contraditórias que se anulam, que apontam para soluções práticas opostas. Essa complexidade nos dá a chance de escolher, de deliberar individual ou coletivamente, moral ou eticamente, sobre os valores que queremos respeitar. É uma escolha sempre difícil porque, para identificar que valor vale mais, talvez precisássemos de alguma verdade absoluta, uma referência que estivesse no topo da pirâmide e que fosse garantida como fundamento. Talvez por isso muitos tenham dito que sem Deus fica difícil pensar em moral. Se entendermos Deus como o topo dessa pirâmide indiscutível, aí talvez a afirmação faça algum sentido." P. 164.

Mesmo tendo Deus como o topo dessa pirâmide, quais valores derivariam da Divindade Suprema? Este seria/é mais um problema. Mesmo que acreditemos numa verdade absoluta para mensurar os nossos valores, ainda assim, os valores continuariam a serem discutidos ad infinitum. E olha que acredito em Deus...