FILHO, Clóvis de Barros; POMPEU, Júlio. Somos todos canalhas: filosofia para
uma sociedade em busca de valores. 1. ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2015. (PDF).
"Por mais
interessante que possa parecer o argumento de um pensador, deixar-se seduzir
por ele ao ponto de lhe consagrar um altar e desconsiderar todas as ideias
discrepantes é contrário ao espírito da filosofia". P. 06.
Clóvis de
Barros (Ph.D em Ciência da Comunicação na USP) e Júlio Pompeu (Ph.D em
Psicologia na Universidade do Espírito Santo) são ótimos intérpretes da
Filosofia, colocando em palavras simples as ideias dos antigos gregos e outros
pensadores mais modernos.
Aqui, eles
passeiam pela história do pensamento, explicitando formidavelmente os valores
políticos, sociais e morais, que fizeram os Filósofos quebrarem a cabeça.
Passando pela aristocracia dos valores gregos, com a mudança para valores
igualitários, advindos do cristianismo, chegando aos ideais iluministas com
Rousseau, Kant, discutindo o utilitarismo de Mill. Por fim, dialogando sobre o
tema tão em voga da tolerância. Devo ter me esquecido de alguma coisa que eles
trabalham, mas em geral é isso.
PS: não
consegui identificar os motivos do título deste livro. Há apenas uma menção aos
"canalhas" na última página.
Aqui vai
uma longa citação, sobre o ceticismo niilista sobre a busca dos valores:
"Desde
que o homem pensa, estamos em busca de valores absolutos tais como o bem, o
sagrado, o belo – atemporais e independentes da história. O niilismo, que
proclama a morte de Deus, contribuiu largamente para fazer acreditar na sua
inexistência. Tanto para o niilismo filosófico quanto para o relativismo ético,
toda investigação sobre valores é uma grande bobagem ou uma grande sacanagem;
uma tentativa de fazer triunfar uma alegria sobre a atemporais e independentes
da história. O niilismo, que proclama a morte de Deus, contribuiu largamente
para fazer acreditar na sua inexistência. Tanto para o niilismo filosófico
quanto para o relativismo ético, toda investigação sobre valores é uma grande
bobagem ou uma grande sacanagem; uma tentativa de fazer triunfar uma alegria
sobre a outra em nome de uma verdade absoluta que faz défaut.
O problema é
que apesar disso tudo temos que continuar vivendo e convivendo. E, salvo o
melhor juízo, nossa vida e nossa convivência continuam dependendo de escolhas.
E estas sempre implicarão a identificação do que mais vale a pena. Portanto,
ainda que eles sejam uma grande bobagem ou uma grande sacanagem, a verdade é
que continuaremos precisando de valores para fazer nossas escolhas, encontrar
nossos caminhos, seja na particularidade de nossas vidas íntimas ou na
coletividade da nossa ética social.
[...] a
convicção de que os valores não passam de uma grande bobagem parece atender aos
interesses de muitos. Porque assim estaríamos definitivamente chafurdados no
reino da animalidade, onde o triunfo da força é garantidor do triunfo dos
apetites, dos prazeres em detrimento do que nos é estranho, alheio e sem
importância." P.
07.
Se não
temos livre arbítrio para deliberarmos racionalmente sobre a melhor maneira de
viver, ainda assim, acreditamos que transcendemos a matéria, e é isso que
importa. É isso que escrevem os autores:
"[...]
mesmo que alguém sugira que não há liberdade alguma e que não passamos de
células ignorantes, incapazes de identificar a complexa rede de causalidades
que nos determina estritamente, o fato é que dentro dessa ignorância nos
acreditamos livres, senhores de certa autonomia de escolha, trazendo de novo à
baila a necessidade da discussão sobre os valores". P. 07.
A
diferença entre nós e os animais é que pensamos racionalmente sobre o nosso
agir, já os outros seres vivos agem apenas por instintos. Um dos livros de
Rousseau nos dão a base disto:
"[Tenho
grande apreço] pelo texto de Rousseau intitulado Discurso sobre a origem da
desigualdade entre os homens, o qual não canso de citar. Nele, o filósofo suíço
explica que o gato nasce sabendo viver como gato. Toda a sua vida será regida
pelo instinto. Portanto, tudo no gato é instintivo. Não há a menor
possibilidade de ele tomar uma decisão ou fazer uma escolha, porque a escolha
na sua vida já é dada pela natureza. Cada movimento seu obedece a uma espécie
de programa felino. E é por isso que ele morrerá de fome, mas não comerá
alpiste.
O homem não
seria assim porque tem condições de escolher e de tomar decisões. Não é 100%
regido por seu instinto. Ele é capaz de exercer a sua liberdade justamente porque
transcende a sua natureza. E por isso segura um pouco a onda das suas pulsões
de vez em quando. Então, Rousseau tem aquela famosa frase: 'No homem a vontade
fala ainda quando a natureza se cala.' E a vontade é exatamente essa instância
deliberativa, racional, inteligente, que nos faz ir um pouco além da nossa
condição instintiva. Costuma-se dizer que o pássaro é livre para voar. Na
poesia isso fica bonito. Mas na filosofia sabemos que não há nenhuma liberdade
no gesto do pássaro em voo. Ele é escravo do voo, determinado pelo instinto de
pássaro. Não há escolha. O voo não é resultado da deliberação, mas uma
inexorabilidade da tirania da natureza." P. 98.
Quem nunca
valorizou ou gostou de algo, só porque a sociedade, ou pessoas de seu convívio
valorizam/gostam?
"Quem
nunca se perguntou se aquilo que busca com afinco, que diz que gosta, realmente
se trata de algo de que gosta, genuinamente, ou se diz que gosta só porque
todos dizem que é algo bom? É o caso quando conquistamos coisas que muitos
desejam – os outros nos invejam e parabenizam, mas será que gostamos da coisa
conquistada ou dos cumprimentos recebidos? Em resumo, até que ponto a nossa
felicidade é mera organização íntima e singular dos nossos afetos e até que
ponto essa organização é influenciada pelos outros?" P. 127.
Num país
onde a leitura, o estudo, o prazer do conhecimento e da intelecção, é muitas
vezes motivo de piada, temos nos últimos anos, um outro agravante: as redes
sociais, que democratizaram a mediocridade da grande massa. Estamos sempre
ávidos por mostrar como nossa vida é “maravilhosa” e “eletrizante”, e até
objeto de inveja dos outros.
"Na falta
de recursos intelectuais, educacionalmente adquiridos e desenvolvidos, o que
resta é a imitação, adesão irrefletida à moda. Vida sem autonomia intelectual
cujo único prazer desloca-se da percepção fantasiosa produzida pelo indivíduo
para o aplauso da massa. Não é à toa que estes tempos de educação em baixa, de
verdadeira aversão a tudo que lembra atividade intelectual, também são tempos
de uma autoexposição inédita. Tempos de privacidade em baixa, fora de moda. É
curioso como em menos de cinquenta anos passamos de uma ordem social em que os
prazeres eram reservados a espaços íntimos, para poucos, para uma ordem em que
os prazeres devem ser fotografados e compartilhados com milhões de
espectadores. Antes, o prazer do jantar sofisticado. Agora, o prazer de contar
ao mundo sobre o jantar sofisticado. Prazer dos joinhas ou likes do Facebook –
como se o jantar perdesse o seu valor como experiência e adquirisse valor como
elemento de exposição, como atrativo de aplausos sociais, estes, sim,
definidores do prazer." P.
136.
Seria Deus
o garantidor dos valores? Como podemos falar neles, sem partimos da premissa de
que um Legislador que transcende nossas contingências e contradições é
compulsoriamente necessário?
"Os
valores são complexos exatamente porque se apresentam como referências por
vezes contraditórias que se anulam, que apontam para soluções práticas opostas.
Essa complexidade nos dá a chance de escolher, de deliberar individual ou
coletivamente, moral ou eticamente, sobre os valores que queremos respeitar. É
uma escolha sempre difícil porque, para identificar que valor vale mais, talvez
precisássemos de alguma verdade absoluta, uma referência que estivesse no topo
da pirâmide e que fosse garantida como fundamento. Talvez por isso muitos
tenham dito que sem Deus fica difícil pensar em moral. Se entendermos Deus como
o topo dessa pirâmide indiscutível, aí talvez a afirmação faça algum
sentido." P.
164.
Mesmo tendo Deus como o topo dessa pirâmide, quais valores
derivariam da Divindade Suprema? Este seria/é mais um problema. Mesmo que
acreditemos numa verdade absoluta para mensurar os nossos valores, ainda assim,
os valores continuariam a serem discutidos ad infinitum. E olha que acredito em Deus...