SADE,
Marquês de. Diálogo entre um Padre e um Moribundo e outras Diatribes e
Blasfêmias. São Paulo: Iluminuras, 2001. (Versão em PDF).
“[...] aceita que
após tua morte teus olhos não mais verão, tuas orelhas não mais escutarão. Do
fundo de teu caixão, não serás mais testemunha dessas cenas que tua imaginação
te representa hoje em negras cores”. P. 28.
Marquês de
Sade, uma das personagens mais polêmicas da história! Seus escritos chocam até
hoje! São histórias fortes, que levam o ser humano ao limite do que é
considerado permitido e normal! Nasceu em 1740, na França. Foi preso diversas
vezes, inclusive na famosa prisão da Bastilha. Vivenciou todo o burburinho da
Revolução Francesa (1789-1799), chegando a falecer em 1814.
O presente
livro é uma reunião de várias obras de Sade. Todas despejando ódio e
repulsa viscerais contra a igreja católica. O cristianismo com seus mandamentos ridículos deve ser banido da França. Argumentos
são desferidos contra a existência de Deus, contra a imortalidade da alma,
contra o inferno. Jesus é um charlatão, um vil leproso, um vulgar impostor;
seus ditos são tolices; são quimeras. O crime para Sade, não consiste em quebrar os preceitos divinos, mas em tentar obedecê-los. Nada mais antinatural e pecaminoso do que
ir contra a vontade da natureza que nos é imposta. Sobretudo, na questão da
libido. O maior crime que cometemos contra nós mesmos é quando reprimimos
nossas paixões sexuais, sejam elas quais forem.
Temos em
Diálogo entre um Padre e um Moribundo..., sete obras de Sade. Vamos a cada uma
delas.
Fantasmas
Ele começa
bradando contra Deus, quer dizer, contra a incongruente ideia de sua
existência.
“Ser quimérico e vão cujo nome apenas derramou mais sangue na face
da terra do que jamais fará qualquer guerra política, por que não retornas ao
nada de onde a louca esperança dos homens e seu ridículo temor infelizmente
ousaram te arrancar?! Tu que só surgiste para o suplício do gênero humano,
quantos crimes seriam poupados na terra se houvessem degolado o primeiro
imbecil que ousou falar em ti! Vamos, aparece se existes e não admitas que uma
frágil criatura ouse te insultar, afrontar, ultrajar como faço, renegando tuas
maravilhas e rindo de tua existência, feitor de pretensos milagres! Faz um só
para provar que existes!” P.
13.
Diálogo entre um Padre e um Moribundo
Uma
conversa entre um padre e um “pecador” perto de ir para o saco é travada, com o
primeiro querendo que o moribundo volte-se para Deus e a igreja, afim de se
arrepender de seus pecados. Acontece que o iminente defunto, numa enxurrada de
argumentos filosóficos dá uma tremenda surra intelectual no padreco, fazendo
esse ficar sem argumento algum para persuadi-lo a deixar a vida de
libertinagem.
O
moribundo diz:
“Sendo possível que a natureza tenha feito sozinha tudo o que
atribuis a teu Deus, por que pretendes arrumar-lhe um senhor? A causa do que
não compreendes talvez seja a coisa mais simples do mundo. Aperfeiçoa tua
física e entenderás melhor a natureza; purifica tua razão, elimina teus
preconceitos e não necessitarás mais desse deus.” P. 18.
O moribundo é um empirista e
materialista nato. Os sentidos e somente eles, podem nos prover conhecimento do
mundo real.
“Prova-me que a natureza não se basta a si mesma, e te permito
conceber-lhe um senhor. Até então não esperes nada de mim. Só me rendo à
evidência que recebo dos sentidos; onde eles cessam, minha fé desfalece. Creio
no sol porque o vejo, concebo-o como o centro de reunião de toda a matéria
inflamável da natureza, aceito sua marcha periódica sem espantar-me. É uma
operação física, talvez tão simples quanto a da eletricidade, mas que não nos é
permitido compreender.” P. 19.
No fim do papo, o blasfemador revela o
que realmente vale a pena na vida:
“Meu fim se aproxima. Seis mulheres mais belas que a luz
encontram-se no gabinete vizinho; reservei-as para este momento. Pega a tua
parte e, a meu exemplo, procura esquecer em seus seios os sofismas inúteis da
superstição e os erros imbecis da hipocrisia.” P. 24.
Da Imortalidade da Alma – Primeiro Discurso
As palavras dele bastam:
“Se podemos adquirir idéias apenas por meio de substâncias
materiais, como poderíamos supor que a causa de nossas idéias é imaterial?
Ousar sustentar que podemos ter idéias sem os sentidos seria tão absurdo como
dizer que um cego de nascença pode ter uma idéia das cores.”
P. 26.
“Mas desejar uma quimera, será, por si só, prova incontestável da realidade dessa quimera? Do mesmo modo, desejamos
a vida eterna dos corpos; no entanto, esse desejo é frustrado: por que o da vida eterna de nossa alma não o
seria igualmente? As mais simples reflexões sobre a natureza dessa alma
deveriam nos convencer de que a idéia de sua imortalidade é apenas ilusão. De
fato, o que vem a ser essa alma, senão princípio de sensibilidade? O que vem a
ser pensar, gozar, sofrer, senão sentir? O que vem a ser a vida senão o
conjunto desses diferentes movimentos próprios a serem organizados? Desse modo,
assim que o corpo deixa de viver, a sensibilidade não mais pode atuar; não pode
mais haver idéias, nem, por conseguinte, pensamentos. Logo, as idéias não podem
senão provir dos sentidos: como querem que, uma vez privados desses sentidos,
ainda tenhamos idéias?”
P. 27.
“O sentimento e o pensamento são partes desses movimentos: desse
modo, no homem morto, esses movimentos cessarão assim como os outros. De
fato, por meio de que raciocínio pretendem nos mostrar que essa alma, que não
pode sentir, querer, pensar e agir senão por meio de seus órgãos, consegue
sentir dor ou prazer, ou até mesmo ter consciência de sua existência quando os órgãos
que a informavam estarão decompostos?” P. 28.
Da Imortalidade da Alma – Segundo Discurso
“Qualquer que seja o modo como o fazemos, só vemos matéria em todos
os seres que existem — O quê!, direis, o
homem e a tartaruga são a mesma coisa? — Não, claro, diferem na forma; mas a
causa do movimento que constitui ambos é certamente a mesma.” P. 30.
Sade argumenta que se somos criaturas
feitas pelo Deus cristão, como ele poderia nos condenar ao inferno, visto que
seríamos alguma substância vinda dele.
“Em suma: nessa hipótese, não me venham falar em inferno ou paraíso,
pois seria insensatez Deus punir ou recompensar uma substância que dele emanou.” P. 32.
Do Inferno
Um dos argumentos até hoje propostos
pelos defensores do inferno, é que ele tem que ser eterno, porque os pecados
são cometidos contra um Deus infinito, logo, eles merecem punição infinita. Em resposta
Sade dispara:
“Segundo essa doutrina, o mais leve erro seria punido assim como o
mais grave: ora, pergunto se é possível, admitindo um Deus justo, supor uma iniqüidade
dessa espécie? Quem, por sinal, criou o homem? Quem lhe deu as paixões que os
tormentos do inferno devem punir? Não foi vosso Deus? Assim, portanto, cristãos
imbecis, admitis que por um lado esse Deus ridículo confere
aos homens inclinações que é obrigado a punir por outro? Será que ignorava que
essas inclinações haviam de ultrajá-lo? Se sabia disso, por que então conceder-lhes
esse tipo de pendores? E se não sabia, por que puni-los por um erro que compete
apenas a ele?” P.
37.
Acredito que nenhum apologista cristão
responda adequadamente a essas perguntas.
Franceses, mais um esforço
se quereis ser republicanos
O Marques presenciou todo o processo da
Revolução Francesa, que depões o rei Luiz XVI. Republicano apaixonado escreveu
essa obra, com o intuito de conclamar a França a abandonar de uma vez por
todas, a crença religiosa. O cristianismo é uma quimera e, portanto, não ter
lugar na sociedade que estava emergindo.
“O vós que tendes a foice nas mãos, desferi o derradeiro golpe na árvore
da superstição; não vos contenteis com podar os ramos: desenraizai de uma vez
uma planta cujos efeitos são tão contagiosos; convencei-vos perfeitamente de
que vosso sistema de liberdade e de igualdade contraria demasiado abertamente
os ministros dos altares de Cristo para que um só deles o adote de boa-fé ou não
procure abalá-lo, se chegar a ter de novo qualquer império sobre as consciências”.
[...] Vós vistes aonde chegaram. Quem, no entanto, os conduziu até lá? Não
foram os meios que a religião lhes forneceu? Ora, se não proibirdes
absolutamente esta religião, os que a pregam, tendo sempre os mesmos meios,
logo atingirão os mesmos fins”. P.
55-56.
“Conservemos hoje o mesmo desprezo, tanto pelo deus vão que os impostores
pregam como por todas as sutilezas religiosas decorrentes de sua ridícula adoção.
Os homens livres não se deixam mais iludir por um chocalho como esse. Que a
extinção total dos cultos faça parte dos princípios que propagamos por toda
Europa. Não nos contentemos em quebrar os cetros; pulverizemos para sempre os ídolos”. P. 58.
Sade vê a religião cristã e
a liberdade como dois caminhos antagônicos.
“Sim, cidadãos, a religião é incoerente com o sistema da liberdade;
já o sentistes. O homem livre jamais se curvará aos deuses do cristianismo;
jamais seus dogmas, seus ritos, seus mistérios ou sua moral convirão a um
republicano”. P.
58.
Sobre os costumes que devem ser
adotados pela nova republica francesa, encontram-se a descriminalização do
roubo, do estupro. Mas para tal, não pensemos que ele não traga justificativa
alguma. Tudo o que defende é “legitimado” por uma avalanche de recursos tirados
da história, da política, da filosofia e etc.
“Deus me livre de querer aqui atacar ou destruir o juramento do
respeito às propriedades que a nação acaba de pronunciar; mas que me seja permitido
ao menos expor algumas idéias sobre a injustiça desse juramento. Qual o
espírito de um juramento pronunciado por todos os indivíduos de uma nação? Não é
o de manter uma perfeita igualdade entre os cidadãos, de submetê-los igualmente
à lei protetora das propriedades de todos? Pergunto-vos agora se é justa a lei
que ordena a quem nada possui respeitar quem tem tudo. Quais são os elementos
do pacto social? Ele não consiste em ceder um pouco de sua liberdade e de suas propriedades
para assegurar e manter o que se conserva de uma e de outra?” P. 67.
Sade propunha uma sociedade que pudesse
saciar incessantemente os desejos sexuais mais variados possíveis. Todos deviam
participar. Mulheres, crianças, jovens... Ninguém deve ser de ninguém. Nada de
casamento. Se um homem tem vontade de transar com uma criança, ele está livre
para tal; quer ter relações com outro homem, que o faça; quanto as mulheres,
elas devem estar sempre dispostas a satisfazer os impulsos sexuais de qualquer
homem que reivindicar o seu corpo. Uma mulher TEM que proporcionar prazer a vários
homens que solicitarem os seus serviços luxuriantes. Quanto a isso, as palavras
de Sade chocam qualquer pessoa com um mínimo de humanidade.
“Um homem que queira gozar de uma mulher ou de uma garota qualquer poderá,
se as leis que promulgais são justas, intimá-la a comparecer a uma dessas casas
de que falei; e lá, sob a salvaguarda das matronas desse templo de Vênus, ela
lhe será entregue para satisfazer, com igual humildade e submissão, todos os
caprichos que lhe agradar, por mais estranhos e irregulares que possam parecer;
pois não há nenhum que não esteja na natureza, nenhum em favor do qual ela não
se confesse. Só teria que se fixar a idade. Ora, creio não poder fazê-lo sem
perturbar a liberdade de quem deseja gozar de uma mulher desta ou daquela
idade. Quem tem o direito de comer o fruto de uma árvore certamente poderá colhê-lo
verde ou maduro, conforme as inspirações de seu gosto.
Mas, dirão, há uma idade em que a saúde da jovem decididamente pode
ser prejudicada pelos procedimentos do homem. Essa consideração não tem nenhum
valor; desde que me concedeis o direito de propriedade sobre o gozo, esse direito é independente dos efeitos que ele produz; a partir de então,
tanto faz esse gozo ser vantajoso ou
prejudicial ao objeto que a ele deve se submeter.
Não provei a legalidade em contrariar a vontade de uma mulher nesse
assunto e que, tão logo ela inspire o desejo do gozo, deve submeter-se a ele,
abstraindo todo sentimento egoísta? O mesmo acontece com a sua saúde. Desde que
as considerações que se façam a esse respeito possam
destruir ou enfraquecer o gozo daquele que a deseja, e que tem o direito de se
apropriar dela, esse cuidado com a idade torna-se inútil porque de modo algum
se trata aqui de saber o que sente o objeto condenado pela natureza e pela lei à
satisfação momentânea dos desejos de outro. Não se trata nesse exame senão
daquilo que convém a quem deseja”. P.
72.
Sociedade dos Amigos do
Crime
Nesse derradeiro texto, Sade fala do
regimento, pelo que eu entendi, de uma espécie de clube fechado para as pessoas residentes em Paris ou arredores, para que elas se entreguem aos prazeres sexuais que lhes der na telha. Uma
espécie de maçonaria. Aqui vão algumas dessas leis norteadoras da Sociedade dos
Amigos do Crime:
“2 - O indivíduo que queira ser admitido na sociedade deve renunciar
a toda espécie de religião, submetendo-se a provas que constatarão seu desprezo
por
esses cultos humanos e seu quimérico objeto. O mais leve retorno de sua
parte a tais asneiras implicará sua exclusão imediata.
3 - A sociedade não admite deus algum; há que se ostentar ateísmo
para ingressar nela. O único deus que conhece é o prazer; por este ela
sacrifica tudo.
Admite todas as volúpias imagináveis e aprecia todos os deleites;
todos os gozos são autorizados em seu seio, não há nenhum que não incense,
recomende ou proteja.
4 - A sociedade rompe todos os laços do casamento e confunde todos
os do sangue. Em sua sede deve-se, indistintamente, gozar tanto da mulher do próximo
quanto da própria, tanto de seu irmão e irmã, de seus filhos e sobrinhos,
quanto os dos outros. A menor repugnância a essas regras é um poderoso motivo
de exclusão.” P.
87-88.
É quase impossível ter empatia por Sade.
Principalmente quando ele legitima o estupro de mulheres e crianças. O Marquês nutria um
ódio visceral pela religião. Essa completa rejeição da religião é ate compreensível,
visto que o catolicismo francês vivia mancomunado com o Estado, enquanto o povo
e muitos do baixo clero (padres) viviam numa miséria desgraçada. Como ver algo
bom na igreja diante de seus disparates, calcados numa sede doentia pelo poder?