KARNAL, Leandro. Pecar e Perdoar. Rio de Janeiro; Nova
Fronteira, 2014. (Versão em PDF).
Karnal (Ph.D em História na USP) era um cara que eu sempre
via o povo comentar – amando-o ou o seu contrário. Como hoje as pessoas têm a
mania chata de politizar tudo e todos, o Historiador careca, é claro, não
escapou das adjetivações negativas daqueles que se auto-intitulam conservadores de direita; e dos que se auto-proclamam esquerdistas, o Professor
da Unicamp, que antes era um intelectual recomendado, amado e aplaudido, agora
já não é mais visto assim, pois não seguiu a cartilha ditada por eles, quando
postou uma foto com o juiz Sérgio Moro.
Fora dessas classificações, que considero pífias na maioria
das vezes, só tenho elogios até o momento sobre esse autor. Escreve muito bem;
é articulado no falar; expõe ideias e conceitos com bastante clareza e lucidez;
e é um escritor bastante ético e comprometido em não ofender os seus leitores,
por mais que isso seja impossível com os mais fundamentalistas, seja no
espectro político ou religioso.
Karnal faz um esplendoroso passeio pelos elementos que estão
incrustrados na tradição e teologia cristã. Perdão, pecado, orgulho, gula,
inveja, sexo, virtude, oração, jejum, penitência... Às vezes pensei que estava
diante de um pastor/padre habilidoso explicando as escrituras, dado ao seu
conhecimento e respeito em lidar com temas religiosos, mesmo ele sendo ateu.
Grifei um terço do livro. Explanações fantásticas. Karnal
além de exímio conhecedor da religião cristã mostra-se um ilustre conhecedor do
comportamento humano. Repetindo: em certos momentos, parecia que estava diante
de um pastor ou padre explicando com maestria as escrituras.
Ainda no comecinho, Karnal admite que o ateísmo, e não só a
religião, matou milhões de pessoas. Isso é importante vindo de um Historiador
ateu, visto que muitos neófitos do lado materialista batem o pé negando que
houve assassinatos em massa em nome do pensamento ateísta.
“Se a Espanha ultracatólica matou milhares em nome de Deus na
Idade Moderna; a União Soviética e a China de Mao mataram milhões em nome da
racionalidade ateia e ‘científica’, ateus e religiosos já não podiam se
apresentar para o debate de mãos limpas”. P. 11.
Fazendo um tour pelas histórias da Bíblia, Karnal dá um show
de sabedoria em refletir sobre os mandamentos, regras, códigos, normas, leis
divinas, conversas entre Deus e os homens e pecados. Adão, Eva, Noé, Satanás e
sua queda...
A vida dos monges e místicos, como Santo Antão, Francisco
de Assis, Inácio de Loyola, Tereza d´Ávila , e suas relações com Deus, com a
moral religiosa, não passam despercebidas.
Falando sobre o moralismo, Karnal acerta na mosca:
“A identidade do moralista é construída no orgulho de não ser
pecador. O moralista legisla contra o pecador, mas legisla para obter sua
identidade. Aquele que faz regras, aquele que multiplica procedimentos, anseia
pelo erro e pela infração da sua regra”. P. 22.
E não é exatamente assim que ocorre, entre os donos da
virtude e da moral? Orgulham-se de não estarem no time dos “pervertidos”. Corra
para uma igreja, principalmente se ela for evangélica, e verás um exército de
crentes vaidosos, por terem se “libertado” da vida de pecados. Eles adoram
acusar a sociedade de seus supostos erros contra o divino.
“Assim, ao ver um tuberculoso ou um portador de HIV, o
moralista poderia, com prazer secreto pouco disfarçado, sorrir em paz porque o
castigo do pecador era sua redenção moralista. [...] Estou indicando que a
moral só se realiza, o código só é vitorioso e a norma só triunfa com a
existência do infrator”. P. 22-23.
Karnal fala uma grande verdade, um pouco a frente:
“Se olharmos a história do Cristianismo, não seria errado
indicar que o movimento que busca Jesus de Nazaré como fundador foi vitorioso,
em parte, porque se afastou de Jesus de Nazaré. A vitória das instituições
religiosas foi a vitória dos fariseus: a regra, as penitências, a aparência”. P. 25.
“Um alienígena que olhasse à distância estelar o
desenvolvimento dos Cristianismos, diria que eles são um fracasso em relação à
síntese que Jesus deu para os mandamentos. Amar ao próximo como a si mesmo? A
Inquisição católica, a carta de Lutero recomendando matar os judeus, os
calvinistas enforcando supostos feiticeiros em Salém: a história cristã é,
basicamente, uma história de crimes. Acima de tudo, é uma história
institucional de negação da solidariedade e da compaixão. O alienígena teria
apoio amplo entre ateus e antirreligiosos deste planeta.” P. 43.
Ele está certo mais uma vez. Não é difícil constatarmos tal
assertiva. Basta olharmos ao redor e vermos o comportamento das várias igrejas
existentes. E voltarmos nossos olhares para o passado da igreja católica e da
igreja protestante - veremos um amontoado de incongruências, busca pelo poder,
matanças de inocentes e todo tipo de barbaridades. Os crentes, sejam católicos
ou evangélicos, naturalmente e (muitas vezes) desonestamente, amenizarão os
crimes de suas respectivas tradições de fé. Mas os fatos estão aí. Os fariseus
ganharam. Com isso não quero dizer que sou contra as instituições religiosas,
apesar dos pesares, elas cumprem um papel social importante, pois existem
pessoas sérias e honestas, dispostas a ajudar e fazer do mundo, um lugar melhor
para se viver. Karnal também vê dessa maneira. O fato de a cristandade ter um
histórico de violência, não quer dizer que coisas boas também não existiram ou
existem.
“Todos somos inquisidores. Eu que escrevo e você que me lê.
Amamos legislar e indicar certo e errado. Além do pecado, legislar parece ser
um dos maiores deleite s humanos. Legislar é indicar o quanto eu estou certo”. P. 26.
Arrisco
dizer que o moralista religioso é o pior tipo de inquisidor. Talvez, devido ao
atual contexto, poderia incluir também o moralista político.
Entrando no terreno do pecado, porque pecamos? Por que
fazemos coisas que sabemos estarem erradas?
“Aqui está uma parte fascinante do pecado. No plano cósmico e
eterno, por que um ser inteligente como Lúcifer começa uma empreitada sem
chance de êxito? No plano cotidiano e banal, por que eu como o que não devo, ou
fumo, ou enfrento uma briga de trânsito? A resposta tentadora e fácil sai na
hora: porque é bom. Bacon frito é melhor do que alface. Rebelião dá mais
adrenalina do que submissão. O gosto do prazer imediato nubla a perspectiva do
futuro. Peco porque erro o tempo: aposto no aqui e agora e desprezo o futuro
distante. Miopia cronológica? Talvez.” P. 47.
Concordando com o autor de Eclesiastes, karnal diz que todos
somos vaidosos e orgulhosos. Não tem escapatória. Até a virtude tem a sua
vaidade. Vaidades das Vaidades. TUDO é Vaidade.
“O orgulho do bem: a vaidade da mulher virtuosa que olha para
a adúltera; o sentimento de superioridade do político honesto diante do colega
corrupto; o desdém vaidoso do aluno que estudou ao observar o colega que
pratica fraude em uma prova. Há algo de profundamente vaidoso na virtude. O
orgulho é, de longe, o primeiro e mais universal pecado”. P. 52.
O pecado principal, originador de todos os outros é o
Orgulho.
“É o primeiro e mais vasto pecado e um que entra em todos os
outros. Há orgulho em todos os pecados e também na maioria das virtudes”. P. 54.
Sobre o pecado da inveja, Karnal fala de forma majestosa
sobre ele. O pecado do qual todos nós não admitimos que temos. Mas na realidade
o cometemos diariamente. Não temos muito problema ou constrangimento de
dizermos que somos orgulhosos e tal. Todavia, quem de nós admite que é invejoso?
“A inveja é um pecado envergonhado. Há quem bata no peito e
diga que vive para o sexo, ou para a comida, ou para a vaidade estética. Mas,
confesse meu caro leitor, você já encontrou alguém que diga que é muito
invejoso? Já esbarrou com uma pessoa que reconheça que não pode ver a
felicidade alheia que já cai em dor mortal como todo invejoso?” P. 57.
Fantástico o trecho a seguir:
“Invejar é ter dor pela felicidade alheia. O que me incomoda
não é, exatamente, o que o outro tem, mas o quanto ele é feliz com isso. Não
quero a casa do outro, mas fico incomodado como ele vive bem nela. Não invejo o
corpo em si, mas o sucesso que o corpo dele faz. Não quero ter o que você tem,
mas me perturba mortalmente que você o tenha”. P. 57.
“A inveja nunca é positiva. Eu não reconheço que o que você
tem nasceu de algum esforço ou de algum acaso feliz. Apenas me incomoda sua
alegria. Seu riso, seu sucesso, sua felicidade são chicotes nos meus ouvidos.
Por isso a inveja é envergonhada: invejar é reconhecer-se inferior, ser menos
do que alguém.” P. 58.
“O invejoso, em vez de olhar para si e para seu universo, vê
apenas o outro. O invejoso é um cego espiritual, um míope ao menos, incapaz de
se olhar, apenas se compara com o mundo externo. O centro do olhar do invejoso
é o outro. Em linguagem moderna, falta psicanálise ao invejoso; ele não tem
senso crítico sobre si e nem conhecimento das suas motivações. Em linguagem
filosófica, o invejoso não cumpre o mandamento socrático de conhecer a si mesmo.” P. 58
“Qual é a raiz da dor causada pela inveja? Ela dói porque ela
me reconhece menos. O que o outro parece conseguir de forma tão fácil,
eu não consigo ou não tenho. Todos ao meu redor parecem mais leves. Comigo as
coisas sempre parecem mais pesadas. A inveja dói porque me exclui dos eleitos e
me coloca em um círculo nublado e opaco, ela aumenta minha solidão. Dói por
dois lados: eu não sou assim e o outro é. Isso me diminuiu e exalta o outro. A
inveja compara, amarga, envenena e pesa. Corrói como ácido fraco, pois não
queima imediatamente e de forma total, mas desgasta pingando do teto do
ressentimento uma estalactite aguda sobre mim.” P. 58.
Ele desnuda a alma humana. Parece um Psicólogo falando.
“Dourar a pílula da inveja é algo fortemente tradicional.
Temos um arsenal analítico a nosso alcance. Não invejo seu corpo, apenas acho
que você é superficial e se dedica mais ao físico. Assim, minha inveja vira
virtude e eu sou uma pessoa profunda. É mais fácil do que reconhecer que, além
de invejoso, tenho corpo ruim. Você é um político populista; eu digo a verdade
aos meus eleitores, por isso não tenho tantos votos. Ou seja, você foi eleito e
eu, não. Você é obsessivo com trabalho e não valoriza as coisas simples da
vida. Em outras palavras: você ganha mais do que eu.” P. 62.
Somos todos invejosos – em maior ou menor escala. Lendo
isso, sei o quanto invejo as pessoas, sejam elas amigas, colegas, apenas
conhecidas e etc.
Se antes os monges sacrificavam sua carne, almejando agradar
a Deus, se privando de muitos prazeres, hoje também sacrificamos nossos corpos,
não mais para agradar a divindade, mas tendo em vista coisas mundanas. Trocamos
o transcendente pelo imanente. A humanidade continua a sua saga em disciplinar
os corpos - cada época visando finalidades distintas. Aniquilamos nossos
desejos momentâneos, com vistas a um bem “maior”.
“É
interessante notar como hoje, em período de tão forte descristianização nas
cidades ocidentais, a domesticação do corpo esteja ainda em alta.
Sacrifícios, dietas, exercícios, tudo vale nesta nova moral estética.
Os
homens medievais cravaram cilício na carne, espinhos pontiagudos para castigar
o domínio corporal. Os homens contemporâneos correm em uma esteira até se
esgotarem. Os homens morais comiam pouco para jejuarem e demonstrarem como
amavam a Deus. Os contemporâneos comem pouco para reduzirem sua taxa de
gordura. Os homens de outrora perdiam parte dos prazeres da vida para terem
acesso ao almejado prazer da eternidade. Nós, agora, abrimos mão de muitos
prazeres pelo prazer da disciplina, da admiração física e que exaltem nossa
contínua capacidade de disciplina e empenho. Na Idade Média, todo esse
sacrifício chamava-se fé. Hoje, é mais comum que denominemos autoestima,
empreendedorismo e coaching”. P.
87.
Agora falando sobre o tormento mortal que ocorre no mundo
cerebral dos cristãos mais convictos, eis mais uma verdade:
“Um elemento complicador faz da renúncia uma tarefa
interpretativa e interessante. A possibilidade de Satanás entrar na alma
de alguém e lhe dar pensamentos e desejos é tão real como a de Deus fazer a
mesma coisa. Surge assim um problema: como distinguir pensamentos e desejos
satânicos dos pensamentos e desejos divinos? Essa incerteza passa a atormentar
os cristãos e fazer com que qualquer coisa que aconteça em seu corpo e em sua
alma seja objeto de um implacável crivo interpretativo”. P. 105.
E gostem ou não, os mais convictos apologistas, o
cristianismo, ou cristandade, como alguns preferem, apesar de ter trazido
coisas boas para a civilização, também, graças às deduções teológicas de seus
líderes, retardou certos benefícios médicos para a sociedade.
“Em
um livro célebre, Stephanie Snow mostrou como a religião — mais
especificamente, o Cristianismo — contribuiu para retardar a aceitação do uso
de anestesia para aliviar a dor e o sofrimento dos pacientes. Na introdução do
livro, ela afirma: ‘Na teologia cristã, a dor entrou no mundo após a
desobediência de Eva no Jardim do Éden e permaneceu central para a humanidade.’
Em uma estrutura cristã, o sofrimento durante o parto, por exemplo, era
considerado um lembrete necessário e permanente do pecado de Eva. A citação
bíblica ‘Multiplicarei grandemente a sua dor na gravidez; com sofrimento você
dará à luz filhos’ (Gênesis 3:16), era usada como um argumento para que o uso
de éter ou clorofórmio fossem proibidos no parto. Era comum se acreditar que
evitar a dor era agir contra a vontade de Deus, e isso teria impedido a
imediata aceitação da anestesia”. P.
105.
Sobre a oração, Karnal tem isto a dizer:
“A
oração funciona? Tenho certeza que, na maioria dos acidentes graves da aviação,
muitas pessoas fizeram um sinal da cruz ou, ao menos, gritaram “meu Deus!”. E
os aviões caíram. Suponho, igualmente, em todos os hospitais do mundo,
religiosos de todos os credos fizeram preces por entes queridos que agonizavam
e esses paciente morreram. Não é estatística, mas é algo possível de imaginar:
de cada cem pacientes terminais ou casos graves e irreversíveis de doenças,
digamos que um ou dois tiveram uma recuperação milagrosa, não explicável. Para
a maioria absoluta, o milagre não ocorre. Se fosse uma medicação, a prece seria
considerada, matematicamente, ineficaz. Mas continua sendo feita.” P. 164-165.
Ele
está errado? Não, não está. Mas continuamos a orar. Pode até ser uma vez
perdida, mas sempre dirigimos nossas preces para o alto, esperando alguma
ajudinha de lá.
Paro
por aqui. O livro é extraordinário. Karnal tem uma sabedoria ímpar em escrever.