quinta-feira, 16 de março de 2017

Pecar e Perdoar


KARNAL, Leandro. Pecar e Perdoar. Rio de Janeiro; Nova Fronteira, 2014. (Versão em PDF).

Karnal (Ph.D em História na USP) era um cara que eu sempre via o povo comentar – amando-o ou o seu contrário. Como hoje as pessoas têm a mania chata de politizar tudo e todos, o Historiador careca, é claro, não escapou das adjetivações negativas daqueles que se auto-intitulam conservadores de direita; e dos que se auto-proclamam esquerdistas, o Professor da Unicamp, que antes era um intelectual recomendado, amado e aplaudido, agora já não é mais visto assim, pois não seguiu a cartilha ditada por eles, quando postou uma foto com o juiz Sérgio Moro.  

Fora dessas classificações, que considero pífias na maioria das vezes, só tenho elogios até o momento sobre esse autor. Escreve muito bem; é articulado no falar; expõe ideias e conceitos com bastante clareza e lucidez; e é um escritor bastante ético e comprometido em não ofender os seus leitores, por mais que isso seja impossível com os mais fundamentalistas, seja no espectro político ou religioso.

Karnal faz um esplendoroso passeio pelos elementos que estão incrustrados na tradição e teologia cristã. Perdão, pecado, orgulho, gula, inveja, sexo, virtude, oração, jejum, penitência... Às vezes pensei que estava diante de um pastor/padre habilidoso explicando as escrituras, dado ao seu conhecimento e respeito em lidar com temas religiosos, mesmo ele sendo ateu.

Grifei um terço do livro. Explanações fantásticas. Karnal além de exímio conhecedor da religião cristã mostra-se um ilustre conhecedor do comportamento humano. Repetindo: em certos momentos, parecia que estava diante de um pastor ou padre explicando com maestria as escrituras.

Ainda no comecinho, Karnal admite que o ateísmo, e não só a religião, matou milhões de pessoas. Isso é importante vindo de um Historiador ateu, visto que muitos neófitos do lado materialista batem o pé negando que houve assassinatos em massa em nome do pensamento ateísta.

“Se a Espanha ultracatólica matou milhares em nome de Deus na Idade Moderna; a União Soviética e a China de Mao mataram milhões em nome da racionalidade ateia e ‘científica’, ateus e religiosos já não podiam se apresentar para o debate de mãos limpas”. P. 11.

Fazendo um tour pelas histórias da Bíblia, Karnal dá um show de sabedoria em refletir sobre os mandamentos, regras, códigos, normas, leis divinas, conversas entre Deus e os homens e pecados. Adão, Eva, Noé, Satanás e sua queda...

A vida dos monges e místicos, como Santo Antão, Francisco de Assis, Inácio de Loyola, Tereza d´Ávila , e suas relações com Deus, com a moral religiosa, não passam despercebidas.

Falando sobre o moralismo, Karnal acerta na mosca:

“A identidade do moralista é construída no orgulho de não ser pecador. O moralista legisla contra o pecador, mas legisla para obter sua identidade. Aquele que faz regras, aquele que multiplica procedimentos, anseia pelo erro e pela infração da sua regra”.  P. 22.

E não é exatamente assim que ocorre, entre os donos da virtude e da moral? Orgulham-se de não estarem no time dos “pervertidos”. Corra para uma igreja, principalmente se ela for evangélica, e verás um exército de crentes vaidosos, por terem se “libertado” da vida de pecados. Eles adoram acusar a sociedade de seus supostos erros contra o divino. 

“Assim, ao ver um tuberculoso ou um portador de HIV, o moralista poderia, com prazer secreto pouco disfarçado, sorrir em paz porque o castigo do pecador era sua redenção moralista. [...] Estou indicando que a moral só se realiza, o código só é vitorioso e a norma só triunfa com a existência do infrator”. P. 22-23.

Karnal fala uma grande verdade, um pouco a frente:

“Se olharmos a história do Cristianismo, não seria errado indicar que o movimento que busca Jesus de Nazaré como fundador foi vitorioso, em parte, porque se afastou de Jesus de Nazaré. A vitória das instituições religiosas foi a vitória dos fariseus: a regra, as penitências, a aparência”. P. 25.

“Um alienígena que olhasse à distância estelar o desenvolvimento dos Cristianismos, diria que eles são um fracasso em relação à síntese que Jesus deu para os mandamentos. Amar ao próximo como a si mesmo? A Inquisição católica, a carta de Lutero recomendando matar os judeus, os calvinistas enforcando supostos feiticeiros em Salém: a história cristã é, basicamente, uma história de crimes. Acima de tudo, é uma história institucional de negação da solidariedade e da compaixão. O alienígena teria apoio amplo entre ateus e antirreligiosos deste planeta.” P. 43.

Ele está certo mais uma vez. Não é difícil constatarmos tal assertiva. Basta olharmos ao redor e vermos o comportamento das várias igrejas existentes. E voltarmos nossos olhares para o passado da igreja católica e da igreja protestante - veremos um amontoado de incongruências, busca pelo poder, matanças de inocentes e todo tipo de barbaridades. Os crentes, sejam católicos ou evangélicos, naturalmente e (muitas vezes) desonestamente, amenizarão os crimes de suas respectivas tradições de fé. Mas os fatos estão aí. Os fariseus ganharam. Com isso não quero dizer que sou contra as instituições religiosas, apesar dos pesares, elas cumprem um papel social importante, pois existem pessoas sérias e honestas, dispostas a ajudar e fazer do mundo, um lugar melhor para se viver. Karnal também vê dessa maneira. O fato de a cristandade ter um histórico de violência, não quer dizer que coisas boas também não existiram ou existem.

“Todos somos inquisidores. Eu que escrevo e você que me lê. Amamos legislar e indicar certo e errado. Além do pecado, legislar parece ser um dos maiores deleite s humanos. Legislar é indicar o quanto eu estou certo”. P. 26.

Arrisco dizer que o moralista religioso é o pior tipo de inquisidor. Talvez, devido ao atual contexto, poderia incluir também o moralista político. 

Entrando no terreno do pecado, porque pecamos? Por que fazemos coisas que sabemos estarem erradas?

“Aqui está uma parte fascinante do pecado. No plano cósmico e eterno, por que um ser inteligente como Lúcifer começa uma empreitada sem chance de êxito? No plano cotidiano e banal, por que eu como o que não devo, ou fumo, ou enfrento uma briga de trânsito? A resposta tentadora e fácil sai na hora: porque é bom. Bacon frito é melhor do que alface. Rebelião dá mais adrenalina do que submissão. O gosto do prazer imediato nubla a perspectiva do futuro. Peco porque erro o tempo: aposto no aqui e agora e desprezo o futuro distante. Miopia cronológica? Talvez.” P. 47.

Concordando com o autor de Eclesiastes, karnal diz que todos somos vaidosos e orgulhosos. Não tem escapatória. Até a virtude tem a sua vaidade. Vaidades das Vaidades. TUDO é Vaidade.

“O orgulho do bem: a vaidade da mulher virtuosa que olha para a adúltera; o sentimento de superioridade do político honesto diante do colega corrupto; o desdém vaidoso do aluno que estudou ao observar o colega que pratica fraude em uma prova. Há algo de profundamente vaidoso na virtude. O orgulho é, de longe, o primeiro e mais universal pecado”. P. 52.

O pecado principal, originador de todos os outros é o Orgulho.

“É o primeiro e mais vasto pecado e um que entra em todos os outros. Há orgulho em todos os pecados e também na maioria das virtudes”. P. 54.

Sobre o pecado da inveja, Karnal fala de forma majestosa sobre ele. O pecado do qual todos nós não admitimos que temos. Mas na realidade o cometemos diariamente. Não temos muito problema ou constrangimento de dizermos que somos orgulhosos e tal. Todavia, quem de nós admite que é invejoso?

“A inveja é um pecado envergonhado. Há quem bata no peito e diga que vive para o sexo, ou para a comida, ou para a vaidade estética. Mas, confesse meu caro leitor, você já encontrou alguém que diga que é muito invejoso? Já esbarrou com uma pessoa que reconheça que não pode ver a felicidade alheia que já cai em dor mortal como todo invejoso?” P. 57.

Fantástico o trecho a seguir:

“Invejar é ter dor pela felicidade alheia. O que me incomoda não é, exatamente, o que o outro tem, mas o quanto ele é feliz com isso. Não quero a casa do outro, mas fico incomodado como ele vive bem nela. Não invejo o corpo em si, mas o sucesso que o corpo dele faz. Não quero ter o que você tem, mas me perturba mortalmente que você o tenha”. P. 57.

“A inveja nunca é positiva. Eu não reconheço que o que você tem nasceu de algum esforço ou de algum acaso feliz. Apenas me incomoda sua alegria. Seu riso, seu sucesso, sua felicidade são chicotes nos meus ouvidos. Por isso a inveja é envergonhada: invejar é reconhecer-se inferior, ser menos do que alguém.” P. 58.

“O invejoso, em vez de olhar para si e para seu universo, vê apenas o outro. O invejoso é um cego espiritual, um míope ao menos, incapaz de se olhar, apenas se compara com o mundo externo. O centro do olhar do invejoso é o outro. Em linguagem moderna, falta psicanálise ao invejoso; ele não tem senso crítico sobre si e nem conhecimento das suas motivações. Em linguagem filosófica, o invejoso não cumpre o mandamento socrático de conhecer a si mesmo.” P. 58

“Qual é a raiz da dor causada pela inveja? Ela dói porque ela me reconhece menos. O que o outro parece conseguir de forma tão fácil, eu não consigo ou não tenho. Todos ao meu redor parecem mais leves. Comigo as coisas sempre parecem mais pesadas. A inveja dói porque me exclui dos eleitos e me coloca em um círculo nublado e opaco, ela aumenta minha solidão. Dói por dois lados: eu não sou assim e o outro é. Isso me diminuiu e exalta o outro. A inveja compara, amarga, envenena e pesa. Corrói como ácido fraco, pois não queima imediatamente e de forma total, mas desgasta pingando do teto do ressentimento uma estalactite aguda sobre mim.” P. 58.

Ele desnuda a alma humana. Parece um Psicólogo falando.

“Dourar a pílula da inveja é algo fortemente tradicional. Temos um arsenal analítico a nosso alcance. Não invejo seu corpo, apenas acho que você é superficial e se dedica mais ao físico. Assim, minha inveja vira virtude e eu sou uma pessoa profunda. É mais fácil do que reconhecer que, além de invejoso, tenho corpo ruim. Você é um político populista; eu digo a verdade aos meus eleitores, por isso não tenho tantos votos. Ou seja, você foi eleito e eu, não. Você é obsessivo com trabalho e não valoriza as coisas simples da vida. Em outras palavras: você ganha mais do que eu.” P. 62.

Somos todos invejosos – em maior ou menor escala. Lendo isso, sei o quanto invejo as pessoas, sejam elas amigas, colegas, apenas conhecidas e etc.

Se antes os monges sacrificavam sua carne, almejando agradar a Deus, se privando de muitos prazeres, hoje também sacrificamos nossos corpos, não mais para agradar a divindade, mas tendo em vista coisas mundanas. Trocamos o transcendente pelo imanente. A humanidade continua a sua saga em disciplinar os corpos - cada época visando finalidades distintas. Aniquilamos nossos desejos momentâneos, com vistas a um bem “maior”.

“É interessante notar como hoje, em período de tão forte descristianização nas cidades ocidentais, a domesticação do corpo esteja ainda em alta. Sacrifícios, dietas, exercícios, tudo vale nesta nova moral estética.

Os homens medievais cravaram cilício na carne, espinhos pontiagudos para castigar o domínio corporal. Os homens contemporâneos correm em uma esteira até se esgotarem. Os homens morais comiam pouco para jejuarem e demonstrarem como amavam a Deus. Os contemporâneos comem pouco para reduzirem sua taxa de gordura. Os homens de outrora perdiam parte dos prazeres da vida para terem acesso ao almejado prazer da eternidade. Nós, agora, abrimos mão de muitos prazeres pelo prazer da disciplina, da admiração física e que exaltem nossa contínua capacidade de disciplina e empenho. Na Idade Média, todo esse sacrifício chamava-se fé. Hoje, é mais comum que denominemos autoestima, empreendedorismo e coaching”.  P. 87.

Agora falando sobre o tormento mortal que ocorre no mundo cerebral dos cristãos mais convictos, eis mais uma verdade:

“Um elemento complicador faz da renúncia uma tarefa interpretativa e interessante. A possibilidade de Satanás entrar na alma de alguém e lhe dar pensamentos e desejos é tão real como a de Deus fazer a mesma coisa. Surge assim um problema: como distinguir pensamentos e desejos satânicos dos pensamentos e desejos divinos? Essa incerteza passa a atormentar os cristãos e fazer com que qualquer coisa que aconteça em seu corpo e em sua alma seja objeto de um implacável crivo interpretativo”. P. 105.

E gostem ou não, os mais convictos apologistas, o cristianismo, ou cristandade, como alguns preferem, apesar de ter trazido coisas boas para a civilização, também, graças às deduções teológicas de seus líderes, retardou certos benefícios médicos para a sociedade.

“Em um livro célebre, Stephanie Snow mostrou como a religião — mais especificamente, o Cristianismo — contribuiu para retardar a aceitação do uso de anestesia para aliviar a dor e o sofrimento dos pacientes. Na introdução do livro, ela afirma: ‘Na teologia cristã, a dor entrou no mundo após a desobediência de Eva no Jardim do Éden e permaneceu central para a humanidade.’ Em uma estrutura cristã, o sofrimento durante o parto, por exemplo, era considerado um lembrete necessário e permanente do pecado de Eva. A citação bíblica ‘Multiplicarei grandemente a sua dor na gravidez; com sofrimento você dará à luz filhos’ (Gênesis 3:16), era usada como um argumento para que o uso de éter ou clorofórmio fossem proibidos no parto. Era comum se acreditar que evitar a dor era agir contra a vontade de Deus, e isso teria impedido a imediata aceitação da anestesia”. P. 105.

Sobre a oração, Karnal tem isto a dizer:

“A oração funciona? Tenho certeza que, na maioria dos acidentes graves da aviação, muitas pessoas fizeram um sinal da cruz ou, ao menos, gritaram “meu Deus!”. E os aviões caíram. Suponho, igualmente, em todos os hospitais do mundo, religiosos de todos os credos fizeram preces por entes queridos que agonizavam e esses paciente morreram. Não é estatística, mas é algo possível de imaginar: de cada cem pacientes terminais ou casos graves e irreversíveis de doenças, digamos que um ou dois tiveram uma recuperação milagrosa, não explicável. Para a maioria absoluta, o milagre não ocorre. Se fosse uma medicação, a prece seria considerada, matematicamente, ineficaz. Mas continua sendo feita.” P. 164-165.

Ele está errado? Não, não está. Mas continuamos a orar. Pode até ser uma vez perdida, mas sempre dirigimos nossas preces para o alto, esperando alguma ajudinha de lá.

Paro por aqui. O livro é extraordinário. Karnal tem uma sabedoria ímpar em escrever.