sábado, 22 de abril de 2017

Contra um mundo melhor: ensaios do afeto


PONDÉ, Luiz Felipe. Contra um Mundo Melhor: Ensaios do Afeto. São Paulo: Leya, 2010. (PDF).

“Mas, afinal, o que é a vida senão se ocupar de coisas e, ao final, tornar-se mais uma coisa no chão de terra que nos cobrirá a todos?” P. 92.

Quarto do livro que leio do Pondé (Ph.D em Filosofia na USP), um escritor e palestrante que muito me agrada, por sua perspicácia em desmentir as ideias romanciadas e tolas que vemos no cotidiano. Pondé é um Filósofo do cotidiano; está interessado nas coisas banais da vida (aliais o que não seria banal?).

Como tinha dito nas outras postagens sobre seus livros, ele em muitas situações é um resmungão, contraditório, um marqueteiro até. Mas tá valendo. Seus livros acabam sendo obras de “anti auto-ajuda” - críticas veementes aos milhares de escritos que inundam o mercado editorial, com besteiras de como encontrar a felicidade, visto que segundo elas, nascemos para ser felizes, que somos especiais, de que devemos confiar em nós mesmos, e um monte de ilusões.

Não encontramos em seus livros, tratados filosóficos sobre Metafísica, Ontologia, Epistemologia e etc., até porque se assim o fossem, eu nem estaria lendo-os.  

“[...] prefiro escrever textos curtos, falta-me a paciência necessária para textos longos”. P. 10.

“Cansei da filosofia, por isso comecei a escrever para não filósofos, porque a universidade, antes um lugar de gente inteligente, se transformou num projeto contra o pensamento. Todos são preocupados em construir um mundo melhor e suas carreiras profissionais. E como quase todas são pessoas feias, fracas e pobres, sem ideias e sem espírito inquieto, nada nelas brota de grandioso, corajoso ou humilde. Eu não acredito num mundo melhor. E não faço filosofia para melhorar o mundo. Não confio em quem quer melhorar o mundo.” P. 10-11.

Mostra-se exageradamente pretensioso quando diz:

“Cuidado, a leitura destes ensaios pode trazer efeitos colaterais: dúvidas, insegurança, insônia, raiva. Se isso acontecer, e você não gostar do que está sentindo, leia livros de autoajuda, tome remédios, faça meditação por cinco minutos”. P. 12.

Pelo menos ele admite:

“Mas, como tudo nesta coletânea é assistemático, os tamanhos variam, alguns beiram a miséria de conteúdo por ser meros fragmentos de pensamento”. P. 12.

Pondé é um ateu, que não vê a religião com os olhos bufando de raiva como muitos materialistas a veem. Ela é superstição? Sim. Mas de igual modo e até pior, são as crendices modernas dos “inteligentinhos”.

“Acho que a vida provavelmente não tem nenhum sentido, apesar de que é na sua forma profunda um movimento que busca a ordem. Em matéria de sentido, prefiro os antigos: Deus, a fidelidade, a castidade, a culpa, a disciplina, a família, o medo, Shakespeare, a Bíblia, a Ilíada. Rejeito todos os novos sentidos: a democracia como religião moderna, a revolução sexual, que não passa de puro marketing de comportamento (continuamos a mentir sobre o sexo e a ser infelizes), a sustentabilidade (nova grife para o ambientalismo), a cidadania, a igualdade entre os homens, uma alimentação balanceada, o fascismo dos direitos humanos, enfim, tudo o que os idiotas contemporâneos cultuam em seu grande cotidiano”. P. 10.

“Pessoalmente, digo que nunca saberemos tudo, por isso sempre poderemos crer e dialogar com o invisível, e que a história dos últimos séculos nos provou que, quando deixamos de acreditar em Deus, sempre acabamos acreditando em qualquer bobagem como ‘História, natureza, ciência, energias, política, em si mesmo, tanto faz’ (como dizia o escritor inglês Chesterton no começo do século XX). Para mim, Deus permanece uma ideia mais elegante.” P. 11-12.

“Mas um trágico cético, como eu, tende a dar valor às crenças religiosas como hábitos válidos em alguma medida. Mas um cético trágico, como eu, tende a partilhar certa sensibilidade pelo mistério que as religiões têm. Antes de tudo porque são antigas e prefiro sempre crenças antigas”. P. 60.

Eis o seu pessimismo diante da vida:

“Não controlamos a vida. Grandes planos podem dar em nada, ter fé pode levar você ao fracasso, acreditar em si mesmo pode levá-lo a erros definitivos, escolher ficar rico pode ou não dar certo, ter muito dinheiro pode sim garantir pessoas ao seu redor amando-o [...] ou pode levá-lo à solidão – enfim, não há garantias. É por isso que o normal é ser inseguro, mentiroso, covarde, e não santo ou corajoso”. P. 12.

“Não é humano saber que a vida é sustentada numa ilusão contínua. Pagamos um preço. Outro risco: pensamos que a dúvida, esse ácido do espírito, só afeta as ideias; mas não, ele também afeta a alma, o corpo, o desejo, os gestos, a capacidade de sonhar à noite. [...] Não acredito em nenhum sistema de valor disponível. Ando como quem anda num deserto, sem direção e sem discernimento, porque a paisagem é toda igual, feita da mesma matéria efêmera e sem forma. Acho que esta é a condição pós-moderna por excelência”. P. 15.

“Muitas vezes, em horas de agonia, contemplamos as paredes e o teto de nosso quarto, mergulhados no silêncio da solidão”. P. 25.

Em muitos momentos, sou muito tentado a concordar com tudo isso. A vida em certo sentido é uma merda (mesmo que exista um deus). Mas sempre queremos pensar que existe algo superior que está levando tudo para o bem maior, no final.

Os ressentimentos do Filósofo e sua acidez não param, trazendo verdades (?) que incomodam:

“TODO MUNDO TEM SEU PREÇO. Essa é uma máxima conhecida há muito tempo. Creio nela profundamente. Apesar de muita gente tentar negá-la, vendendo uma imagem à prova de qualquer preço de si mesmo. O cotidiano é um massacre. Claro que, se você é rico, pode pousar de superior, mas isso é raridade que não vale porque sustentada na sorte incomum. Ninguém é digno para além da miséria que o assola.

Todavia, sem hipocrisia não há civilização, e isso é a prova de que somos desgraçados: precisamos da falta de caráter como cimento da vida coletiva. Muitas vezes sinto, como que de forma material, a presença da hipocrisia ligando as pessoas do mundo quando se afirmam éticas. Por isso o desfile de falsas virtudes em toda parte: o ser entregue à sua pureza seria obsceno. O véu que esconde a nudez moral horrível é como a hipocrisia que nos torna falsamente belos. Mas o pior é quando o pensamento se torna escravo dessa hipocrisia.

Por isso o filósofo deve sempre desdenhar a sobrevivência e o bom convívio e ser contra um mundo saudável. A suposição de que as pessoas se amam em família ou que filhos e pais necessariamente se amam é tão falsa quanto a ideia de que as pessoas não têm preço – e, às vezes, esse preço é bem menor do que imaginamos. O amor familiar pode ser apenas resultado de falta de opção. O problema é que a vida sem família, na maioria esmagadora dos casos, é puro abandono. Precisamos nos sentir parte de algo (pelo menos a maioria de nós) e, para isso, pagamos o preço de não ser livres e de fingir que amamos uns aos outros.” P. 45.

Atos morais não são virtudes de fato:

“[...] eu sempre penso que o fundamento de todo ato verdadeiramente moral, que resiste à miséria de ter um preço, é algo de ordem fisiológica e visceral. Uma fobia, um pânico, uma doença, uma vergonha, um trauma, uma violência contra a alma e o corpo, nunca um ato ético consciente ou um princípio. Um vício, nunca uma virtude”. P. 47.

Mais ceticismo e tragédia:

“Quando digo que sou trágico, quero dizer que não acho que o mundo tenha suficiência moral última, digo que o mundo está à deriva, indo para lugar  nenhum”. P. 61.

“Como diria o filósofo alemão Horkheimer no século XX: somos uma raça de exilados abandonados à própria má-sorte, ninguém 'cuida' de nós.” P. 62.

“[...] poucos têm coragem suficiente para enfrentar uma existência insuficiente de sentido.” P. 63.

“A esmagadora maioria dos homens e mulheres se despedaça contra as paredes desse abismo que é o vazio e a indiferença cósmica.” P. 63.

“Mas reconheço que a ausência de beleza torna o homem um monstro, por isso entendo que a busca desenfreada da beleza mova o espírito humano em meio às trevas que é a sobrevivência. P. 74.

“Amadurecer é se aproximar da morte e sentir o cheiro da insignificância de tudo”.  P. 89.

“A natureza humana por si só já tende à mentira, ao orgulho, à inveja, que se repetem à monotonia em virtude das duras condições de sobrevivência nas quais vivemos há milhares de anos. Não há como evitar a vida sob pecados tão essenciais como orgulho e inveja”. P. 91.

Não somos melhores que a sociedade alemã diante dos horrores do nazismo:

"NÃO ACHO que tenhamos mudado um milímetro desde a experiência nazista. Naquele momento, muitos europeus colaboraram com o massacre não apenas porque odiavam as vítimas dos nazistas (nem precisavam odiá-las, isso seria até demais pensar), mas apenas pelo amor ao cotidiano. Hoje em dia, se qualquer regime decidisse perseguir o grupo do qual seu vizinho faz parte, você fecharia os olhos como os franceses fizeram.

A covardia e o amor à rotina acomodam mais os homens ao crime coletivo e social do que a força das ideias. Em nome de um emprego melhor, em nome de sentir menos medo diariamente, em nome de conseguir melhor qualidade de vida, aceitamos qualquer crime. Toda discussão sobre o massacre nazista (ou qualquer outro) esbarra no fato de que nós, hoje, gostamos de pensar que não faríamos a mesma coisa que aqueles homens e mulheres fizeram. Nossa maior preocupação é assegurar uma ideia construtiva de nós mesmos. O massacre nazista nasceu do horror que continuamos a alimentar com relação a tudo que afete nosso cotidiano imediato. Erraram todos os que se esqueceram de dizer isso. Além disso, nos sentimos mais tranquilos quando outros estão sendo destruídos em nosso lugar. Estamos sempre dispostos a nos calar quando um jantar a mais é garantido.

O comportamento moral comum é mais decidido em nome de uma noite tranquila e um dia monótono do que em nome de qualquer ideia de justiça que algum dia alguém escreveu. E se qualquer massacre se der em nome de alguma ideia em que acreditamos e, além disso, se nosso cotidiano estiver garantido, aí então nos transformamos em feras banais.” P. 76.

Triste constatar que ele tem toda a razão. Hoje mesmo, basta olharmos ao nosso redor para vermos pessoas sofrendo, e nada fazemos. Sempre olhamos para o nosso próprio umbigo. Milhões de seres humanos estão nas mais péssimas condições de vida, e a sociedade para não sair de sua zona de conforto, finge que está tudo bem, ou que, afinal de contas, a situação não está tão mal assim. Queremos incutir em nós mesmos, o pensamento de que agiríamos diferente dos alemães. Somos virtuosos, eles não.

Talvez de forma paradoxal, Pondé declara no final:

“Sou apenas alguém que, sem até hoje saber a razão, passou a ser constantemente visitado – no sentido mais comum que a expressão tem, por exemplo, na tradição do cristianismo ortodoxo – pela sensação de que o mundo é sustentado pelas mãos de uma beleza que é também uma presença que fala”. P. 110.