Pierre Fatumbi Verger
foi um Escritor, Fotográfo, Antropólogo e Etnólogo francês que pesquisou
exaustivamente a mitologia dos orixás, trazidos pelos africanos, quando estes
foram coagidos a virem para o Brasil para trabalharem como escravos por aqui.
Verger antes de chegar à
cidade de Salvador, viajou o mundo inteiro, pesquisando e fotografando as
diversas culturas do Oriente ao Ocidente. Em 1946 finalmente chega à Bahia,
lugar que o encantou logo de cara. Para ele, Salvador possuía um mistério e um encanto
que os outros lugares pelos quais tinha passado e conhecido não tinham.
E foi com a ritualística
do candomblé que ele se identificou e mergulhou profundamente nos seus mitos e
histórias/estórias, iniciando a sua vivência e “conversão” a religião, pela
ialorixá mãe Senhora, umas das mães de santo mais conhecidas e respeitadas de
Salvador, tanto é, que mãe Stella de oxóssi, talvez a mãe de santo mais
prestigiada da Bahia atualmente, foi discípula e substituta dela.
A “conversão” de Verger
foi tão intensa que a pedido de mãe Senhora, ele teve que ir a fonte da
religiosidade do candomblé, na África, mais precisamente no Benin, onde
antigamente era o reino do Daomé. Ele passou 17 anos vivenciando no dia a dia a
vida e a mística daqueles que dizem guardar todos os mistérios do mundo de
xangô e dos outros orixás. Verger cumpriu todos os rituais humildemente, o que
lhe rendeu praticamente todas, ou quase todas as honrarias possíveis que o culto aos
orixás, voduns, eguns podem oferecer a uma pessoa.
Fotografou, escreveu,
pesquisou de forma despretensiosa tudo que viu, deixando-nos um rico acervo
histórico-antropológico sobre a transcedentalidade e imanência dos deuses
africanos. Muitos livros foram escritos e que hoje são referência obrigatória a
quem deseja estudar a religiosidade africana tanto aqui, no Brasil, como em sua
origem, na África. Uma riqueza literária sem igual.
Até aí, tudo bem, uma
história interessante de um branco europeu que deixa a sua cultura francesa
judaico-cristã, imersa no racionalismo iluminista, para abraçar com o coração e
alma as raízes religiosas africanas tão discriminadas e oprimidas pelo povo do
velho continente.
No entanto, o
documentário nos brinda com uma IRONIA inesperada! Deitado confortavelmente em
minha cama, dei um pinote e uma gargalha demoníaca, voltando o vídeo alguns
segundos, pois precisava ver e ouvir de novo, para ter certeza de que não tinha
entendido errado.
O Verger apesar de ter
devotado toda a sua vida ao candomblé, desde que chegou a Salvador, em
entrevista ao Gilberto Gil, diz CLARAMENTE que não ACREDITA na REALIDADE
ontológica dos orixás! Que belo BANHO DE ÁGUA FRIA nos candomblecistas!
Um dos Antropólogos
entrevistado diz:
“O Verger tinha a relação
ritual com o Candomblé, ele cumpria todas aquelas coisas: as obrigações, os
gestos e etc. Mas uma crença em última análise, não. ”
Até mesmo, mãe Stella,
substituta de mãe Senhora, que foi a sacerdotisa espiritual dele, numa resposta
confusa, diz ao Gil, que o Verger acreditava em partes no orixá.
E para que não fique
dúvidas quanto a incredulidade do Verger, deixemos que ele mesmo fale.
Gilberto Gil pergunta:
"E o transe, a
incorporação do orixá?"
Resposta do Verger:
"Para mim não é
incorporação. Para mim é uma manifestação da verdadeira natureza da gente. Uma
possibilidade de esquecer todas as coisas, que não tem nada que ver com você.
[...] sou um idiota de francês racionalista. A mim não me contam histórias, eu
não sou um idiota que acredita nessas coisas. [nesse momento, risadas do Gil].
É uma coisa “despoetizante” horrível. Eu sofri muito, gostaria muito de me
deixar ir."
Que bomba para os fieis
do Candomblé que tanto lhe admiram! Visto que por mais que ele ame e tenha
dirigido praticamente toda a sua vida ao culto dessas divindades africanas, não
crê na realidade espiritual dos transes que ocorrem nos terreiros. Não é que
ele não acredita na veracidade do transe. Este realmente existe, mas para o
Verger, tomando emprestada as palavras do Gothchalk "essas
manifestações de aparência estranha não obedecem ‘a forças do além, mas do
aquém’." [1]
Seu racionalismo francês
não lhes deixa ser tão crédulo assim. O seu ceticismo despoja/desnuda/desmente,
ou seja, despoetiza a poesia/realidade da religião africana. E isso, num certo sentido
é horrível para ele, que sofreu
muito, pois gostaria muito de se
deixar ir, como seus irmãos brasileiros e africanos. Contudo, sua
consciência está presa a “idiotice” do racionalismo, pois como mesmo diz: "eu não sou um
idiota que acredita nessas coisas."
Pierre Fatumbi Verger
foi realmente um mensageiro entre dois mundos, não apenas do Brasil & África,
que é o sentido que o título do vídeo lhe atribui, mas também do mundo do
misticismo e do racionalismo, que nega totalmente a realidade metafísica do
primeiro. Em última análise, ele estava com o último. Ele passeou
harmoniosamente entre esses dois mundos, encantando-se com a poesia e
experiência "espiritual" do candomblé, sem deixar de lembrar que no
final das contas, não há de fato, patavina nenhuma de orixás, que exista
independente da mente daqueles que lhes atribuem importância e realidade.
Somente um delírio confortante que os ajuda a viver e vencer as barreiras que a
vida naturalmente impõe.
Não posso deixar de
notar uma questão bem incômoda para os adeptos do Candomblé que tem a figura do
Verger em tão alta estima. O cara simplesmente não acreditava que existia na
realidade um panteão de orixás com nomes de xangô, exu, iemanjá... O que um
adepto do Candomblé tem a dizer sobre isso? Seria a mesma coisa de um pastor ou
um padre conhecido, íntegro e respeitado por todos os cristãos, dizer:
"Eu não acredito na bíblia e nem na ressurreição de Jesus. Até gosto dos rituais da igreja e os cumpro com muito amor e respeito, mas 'eu não sou um idiota que acredita nessas coisas'."
Estranho, não? O que os
africanos do Benin, lugar onde ele se consagrou a babalaô, achariam se
soubessem que aquele homem branco europeu que eles ajudaram a crescer no mundo
mágico de seus orixás, na verdade vê tudo isso, apenas como uma manifestação
psicológica produzida pelo cérebro e não como uma incorporação verdadeira vinda
de fora, como eles tão devotamente creem?
Até onde sei, até mesmo
o Gilberto Gil, apresentador do documentário, o próprio Jorge Amado que é
entrevistado, são céticos em relação à sobrenaturalidade das manifestações nos
terreiros. Eles defendem e admiram a cultura religiosa africana, mas apenas por
esta fazer parte da identidade de um povo e, não por sua correspondência
verdadeira com um suposto mundo espiritual, até porque, se não me engano, eles
são ateus. E talvez até o Verger também o seja.
Parabéns ao Gil, aos
produtores e a mãe Stella por não omitirem essa informação polêmica e incômoda
sobre ele. E é claro, ao próprio Verger. Um dia depois dessa entrevista,
realizada em 1996, ele partiu - morreu. Será que foi para as terras de aruanda
(na verdade, nem lembro o que o candomblé tem a dizer sobre o pós-morte)? Será
que se encontrou com xangô, seu orixá? Com certeza não.
REFERÊNCIAS
GOTHCHALK, Carlos Humberto Mendes. Aprendendo a lidar com fenômenos incomuns. São Leopoldo: Sinodal, 2005. P. 39.
GOTHCHALK, Carlos Humberto Mendes. Aprendendo a lidar com fenômenos incomuns. São Leopoldo: Sinodal, 2005. P. 39.