GLEISER, Marcelo. A
Dança do Universo: Dos Mitos de Criação ao Big Bang. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.
“Para a maioria dos
cientistas o estudo da Natureza é encarado como um desafio intelectual. Sua
motivação para enfrentar esse desafio vem de uma profunda fé na capacidade da
razão humana de poder entender o mundo à sua volta.” P. 19.
Marcelo Gleiser, Ph.D em Física na
Universidade de Londres, faz um passeio pelo maravilhoso, misterioso e estranho
mundo dos astros, estrelas, cometas, planetas e átomos. Gleiser passou a ficar
conhecido do grande público apenas na metade dos anos 2000, por causa da série
Poeira das Estrelas, apresentada no Fantástico, em que nos brindava com as
descobertas científicas da Astronomia. Mas este livro é de 1997. Seus trabalhos
na área de Cosmologia já eram reconhecidos nos EUA. Não é por acaso, que ele é
também membro da Sociedade de Física Americana.
A Dança do Universo é um livro direcionado
para o grande público. Mas não se engane, a leitura dele será cansativa em
alguns momentos. Porém, isso não
desqualifica a obra. No geral é um livro muito bom.
Gleiser é ateu, mas reconhece que os
teístas tiveram papel primordial na empreitada científica.
“[...] se voltarmos
um pouco no tempo, veremos que alguns dos cientistas responsáveis pelo
desenvolvimento de nossa visão do Universo eram profundamente religiosos.” P.
19.
No capítulo primeiro, sobre os mitos de
criação, Gleiser mostra que os antigos já tinham a percepção de que a Terra era
redondinha. Ovídio (43 a.C.-18 d. C), poeta romano, já dizia em sua obra Metamorfoses:
“Divisão,
subdivisão, quem quer que ele seja, Ele moldou a terra na forma de um grande
globo”. P. 33.
No mito de criação chinês, o deus Pan Ku
morre para que o Universo seja aperfeiçoado; e da putrefação do seu corpo, emergem
os humanos.
“E dos vermes que
cobriam seu corpo surgiu a humanidade.” P. 34.
Nossa! Isso faz todo o sentido!
Sobre a relação da ciência e religião,
Gleiser tece esses comentários:
“[...] será
possível que uma pessoa possa questionar o mundo cientificamente e ainda assim
ser religiosa? Acredito que a resposta é um óbvio sim, contanto que seja claro
para essa pessoa que ambas não devem interferir entre si de modo errado, ou
seja, que existem limites tanto para a ciência como para a religião. Cientistas
não devem abusar da ciência, aplicando-a a situações claramente especulativas,
e, apesar disso, sentirem-se justificados em declarar que resolveram ou que
podem resolver questões de natureza teológica. Teólogos não devem tentar
interpretar textos sagrados cientificamente, porque estes não foram escritos
com esse objetivo. Para mim, o que é realmente fascinante é que tanto a ciência
como a religião expressam nossa reverência e fascínio pela Natureza. Sua
complementaridade se manifesta na motivação essencialmente religiosa dos
maiores cientistas de todos os tempos.” P. 40.
As Leis da Física são imutáveis e
universais, abrangendo todo o Universo, se não fosse assim, a ciência seria
impossível.
“Uma das funções
mais importantes da física é a busca de leis universais que sejam capazes de
descrever fenômenos naturais observados tanto no dia-a-dia como no laboratório.
Ao chamarmos essas leis de ‘universais’, estamos implicitamente supondo que
elas são válidas não só em qualquer parte do Universo, mas também em qualquer
momento de sua história. Essa suposição baseia-se na nossa crença de que a
Natureza, em um nível mais profundo de análise, é de fato imutável, e que,
portanto, as leis que concebemos para descrever seu funcionamento são também
imutáveis. [...] De fato, é justamente por causa dessa imutabilidade das leis
da física que o estudo racional da Natureza é possível.” P. 52.
Essa crença é anátema para o irracionalismo
pós-moderno.
Mais uma vez, Gleiser reconhece o papel da religião
no forjar do pensamento científico:
“Sua filosofia
religiosa influenciou e moldou o pensamento de alguns dos maiores filósofos e
cientistas da história, incluindo Platão e Kepler. Alguns autores consideram
Pitágoras o fundador Alguns autores consideram Pitágoras o fundador da ciência,
enquanto outros, levados pela enorme repercussão do seu pensamento em várias
áreas do conhecimento, consideram Pitágoras ‘o fundador da cultura européia em
sua vertente mediterrânea ocidental’.” P. 53.
Copérnico não foi o primeiro a tirar a
Terra do centro do universo. Muito antes dele, já se especulava sobre.
“Astrônomos
pitagóricos sugeriram que não só a Terra se move, como também não é o centro do
Universo.” P. 57.
Por mais que a crença religiosa tenha tido
o seu quinhão de responsabilidade sobre o desenrolar da ciência, esta deve
caminhar sozinha, sem estar presa aos pressupostos de nenhuma religião,
assevera o nosso Físico.
“Para que o
discurso científico tenha uma natureza universal, é fundamental que ele não
dependa de nenhuma crença religiosa ou interpretação subjetiva.” P. 64.
Isso de certa forma, não contradiz o que
ele já disse anteriormente, quando afirma que a crença religiosa de uns, teve
um impacto profundo em suas ciências? O pressuposto religioso de que o Universo
é inteligível, porque um deus pessoal e todo poderoso o criou, tornando-o
inteligível e pronto para ser investigado, foi uma das premissas pela qual os
grandes cientistas do passado criaram a ciência moderna. Esse foi o pressuposto
religioso-filosófico deles e, ainda é o de muitos hoje. Não consigo ver
contradição, ou empecilho nisto. Pressupostos ligados ao divino, sempre
estiveram atrelados ao estudo do mundo natural, como o próprio Gleiser atesta
algumas páginas a frente.
“Para ele, assim
como para Platão e para Aristóteles, os corpos celestes eram divinos. Mais
ainda, a ordem que percebemos no Universo é uma manifestação direta da
inteligência divina. O estudo dos céus servia como um veículo de ascensão
espiritual para o astrônomo. Por intermédio de seu trabalho, o astrônomo
liberava-se das limitações e trivialidades da vida diária, em busca de uma
existência moral e ética superior; para Ptolomeu, a astronomia estava
profundamente ligada à filosofia moral. Ao investigar os mecanismos celestes, o
astrônomo estava em contato com o divino.” P. 84.
“O frade
franciscano de Oxford, Roger Bacon (c. 1219-1292), [...] fiel a seus
pronunciamentos contra o dogmatismo, ele enfatizou a importância da matemática
e da experimentação como instrumentos no estudo da Natureza e, portanto, como
veículos para nos aproximarmos de Deus e de sua Criação, tornando-se uma
importante influência no desenvolvimento inicial da ciência. Quando penso em
Roger Bacon, imediatamente a imagem de um ‘profeta da ciência’ me vem à mente,
um visionário solitário anunciando o inevitável declínio do Universo medieval.”
P. 97-98.
“Newton via o
Universo como manifestação do poder infinito de Deus. Não é exagero dizer que
sua vida foi uma longa busca de Deus, uma longa busca de uma comunhão com a
Inteligência Divina, que Newton acreditava dotar o Universo com sua beleza e
ordem. Sua ciência foi um produto dessa crença, uma expressão de seu misticismo
racional, uma ponte entre o humano e o divino.” P. 164.
Claro que o fato da religião/crença no
divino ter contribuído, não é um passaporte automático para a sua validade
enquanto verdade metafísica sobre o Universo. Não acreditamos mais na
Astrologia e na Alquimia, por mais que essas também tenham sido respectivamente
o embrião da Astronomia e da Química. Muitos reconhecem a religião como mola
propulsora para a ciência na modernidade, no entanto, tornaram-se ateus. Outros
tanto a reconhecem, como também subscrevem seus pressupostos fundamentais. O
importante é que todos contribuam para o aumento do conhecimento sobre o
Cosmos.
Os gregos, ah, os gregos! Sempre eles!
“Talvez mais
relevante que os vários detalhes de seu legado cultural, os gregos nos
ensinaram como é importante nos perguntar sobre o mundo à nossa volta e sobre
nós mesmos. Seu amor pela razão e sua fé no uso do raciocínio como instrumento
principal na busca do conhecimento formam o arcabouço fundamental do estudo
científico da Natureza. Não devemos nunca fugir dessa busca, intimidados pela
nossa ignorância. O medo deve ser combatido com a razão e não com mais medo.
Essa, para os gregos, é a chave da sabedoria.” P. 88.
Gleiser, a exemplos de muitos, traz o mito
tão propalado de que na Idade Média, a igreja colocou empecilhos ao estudo da
natureza, e de que a crença na Terra plana era generalizada.
“Ao entrarmos na
Idade Média, veremos que essa curiosidade sobre o mundo natural irá
praticamente desaparecer. A ascensão da Igreja e o declínio de Roma
redirecionaram as preocupações das pessoas ‘educadas’ para questões teológicas
extremamente abstratas; as sementes plantadas pelos gregos irão hibernar por um
longo tempo. Isso não significa que nenhuma ciência tenha sido produzida nesse
período. Os árabes, em particular, produziram melhorias no modelo de Ptolomeu,
e levaram a matemática a novos níveis de sofisticação. Entretanto, seu Universo
continuou sendo essencialmente aristotélico, finito, com a Terra no centro e
dividido entre os domínios do ser e do devir.
O único tipo de
estudo aceitável era de natureza teológica. Questões pertinentes ao estudo da
Natureza eram consideradas não só supérfluas como também perigosas para a
salvação da alma. A situação se tornou tão terrível que, por aproximadamente
setecentos anos, de 300 d.C. (santo Lactancio) até o ano 1000 (papa Silvestre
11), se acreditava novamente que a Terra era plana! Quando os muçulmanos
trouxeram os textos de Aristóteles, Euclides, Arquimedes, Ptolomeu e muitos
outros de volta para a Europa, uma nova brisa de despertar começou a soprar,
lentamente liberando o intelecto do sono hipnótico da Idade Média.” P.
88-89.
Se eu não tivesse lido Terra Plana, Galileu na Prisão e Outros Mitos Sobre Ciência e Religião, acreditaria ainda nisso. Mas
esta obra desmente com maestria muitas dessas afirmações acima.
Como todo livro sobre história da ciência,
ele passa por Copérnico, Galileu, Tycho, Newton Kepler... Sobre este último,
olha que bacana:
"Kepler não
devia ser uma pessoa muito agradável de se conviver, ou por quem fosse fácil
sentir atração física. Fora suas horrendas feridas e vermes nos dedos, parece
que ele tomou apenas um banho em toda sua vida. E, mesmo assim, ele reclamou que
o banho o deixou doente por dias." P. 124.
Se o grande mestre foi assim, quem sou eu
para contrariar. Não tenho 1% da genialidade intelectual dele, mas compartilho
pelo menos de uma de suas práticas.
Sobre o afamado caso de Galileu e a igreja,
Gleiser tem isto a dizer:
“Embora seja comum
representar Galileu como um dos grandes mártires na luta pela liberdade de
expressão e a Igreja como o vilão intolerante, a verdade (ao menos o que
podemos concluir, dada a evidência existente e as interpretações em conflito) é
bem mais sutil. [...]Os problemas iniciais de Galileu vieram principalmente do
meio acadêmico, incitados por professores de filosofia de várias universidades
italianas, cegamente obedientes à doutrina aristotélica.” P. 137.
Sobre a existência de Deus, o que dizer?
Gleiser assume uma atitude parcimoniosa.
“Mesmo que não
possamos descartar por completo a possibilidade de que uma prova definitiva da
existência de Deus esteja escondida em algum canto obscuro da Natureza,
pacientemente esperando para ser descoberta por nós, também não podemos descartar
a possibilidade de que jamais tenhamos acesso a essa prova através da ciência.
Ou de que essa prova simplesmente não exista, a menos que acreditemos nela.
Talvez existam muitas respostas possíveis a essa pergunta, científicas ou não,
cada uma satisfazendo parcialmente nossa necessidade de entender a origem de
todas as coisas. No momento, tudo o que podemos fazer é especular, com base em
nossos próprios preconceitos. Para mim, não é claro que a beleza e a ordem que
tantas vezes encontramos na Natureza não possam ser simplesmente resultado do
acaso, de acidentes sem nenhum objetivo ou ‘plano final’. Por outro lado,
também não é claro que tudo seja produto do acaso.” P. 203.
As misteriosas Leis da Física não podem ser
um poderoso indício de um Criador? Gleiser, como cético que é, mostra-se
cautelosamente incrédulo.
“Será que as leis
da física são evidência para a existência de um Criador? É muito tentador dizer
que as leis da física são ‘inteligentes’. Afinal, é devido à nossa inteligência
que podemos desvendar os mecanismos através dos quais a Natureza opera,
expressando-os em termos de leis físicas. Mas assumir superficialmente essa
posição pode ser muito perigoso. O fato de que seja necessária inteligência
para desvendarmos as leis da física não implica que elas sejam produto de um
Criador. A menos, claro, que acreditemos que nossa própria inteligência não seja
produto do acaso, por intermédio da seleção natural, mas sim o produto do
trabalho de um Criador. Será que a necessidade de identificarmos inteligência
por trás do funcionamento dos processos naturais é uma conseqüência do fato de
sermos seres inteligentes? Afinal, se a capacidade do cérebro humano de
reconhecer padrões complexos (como, por exemplo, atribuirmos formas a
constelações ou a nuvens, ou reconhecermos melodias musicais) é uma de suas
propriedades mais importantes, não seria previsível que tentaríamos encontrar inteligência
em um mundo cheio de padrões complexos? Será que somos vítimas de nossos próprios
processos mentais?
Ou será que o modo
como funcionamos é realmente produto premeditado de um Criador inteligente? Até
que tenhamos uma compreensão mais profunda da origem de nossa própria inteligência,
talvez seja um pouco prematuro querer atribuir inteligência ao Universo como um
todo.” P. 204.
As Leis da Física como passaram a existir?
Ninguém sabe! É um mistério, que parece-me insolúvel! Gleiser reconhece a
grande dificuldade nesse enigma inexplicável.
“Mesmo que seja
possível usar relatividade geral e mecânica quântica na construção de modelos
matemáticos que descrevam de modo auto-consistente uma possível ‘origem’, na
minha opinião modelos por si sós não são suficientes para que realmente
possamos entender a origem do Universo. Já que todos esses modelos supõem a
validade das leis da física como ferramenta fundamental em sua construção,
eles, por definição, não podem explicar qual a origem das próprias leis da
física. Se simplesmente supusermos que as leis da física foram criadas
juntamente com o Universo, cairemos forçosamente numa regressão infinita.
Na minha opinião,
que também é defendida por outros colegas, como, por exemplo, Paul Davies, é a
questão da origem das leis da física que lida de fato com ‘A Pergunta’.
Infelizmente, a resposta para tal pergunta está além do alcance das teorias
físicas, pelo menos do modo como elas são formuladas no momento. Será que
devemos então desistir de investigar essas questões através da física?
Certamente não!
Mas talvez, ao
refletirmos sobre essas questões, e sobre nossas limitações ao lidarmos com
elas, um pouco de humildade, tantas vezes esquecida no ‘calor’ do debate
científico, venha a ser restaurada.” P. 361-362.
Já vi não lembro onde, que a relatividade
de Einstein foi usada para “provar” o relativismo pós-moderno. Mas este é um
uso completamente equivocado das ideias do nobre cientista.
“A teoria da
relatividade especial é uma teoria de absolutos, mesmo que ela tenha sido (e
ainda seja) interpretada como uma teoria de relativos nas suas muitas
encarnações fora da física, de jantares em família a círculos mais acadêmicos.”
P. 277.
Para o azar dos pós-modernos é o absoluto
que a ciência procura.
“Desde os pré-socráticos
até nossos dias, a busca do absoluto é uma inspiração constante para a
criatividade científica.” P. 281.
A Física na virada do século XIX para o XX,
sofreu uma gigantesca reviravolta e baque. O mundo atômico e subatômico emergia
de tal forma, que deixou a comunidade de cientistas arrepiada com o que
acontecia no mundo minúsculo dos átomos - elétrons, nêutrons, prótons. O universo quântico com os seus inacreditáveis
absurdos, tais como a dualidade onda/partícula da luz, perda da causalidade, a
imprevisibilidade total da localização dos elétrons, a interferência do
observador, entre outros, colidia/rompia/separava completamente e violentamente
o mundo clássico do mundo quântico. Os objetos quânticos podem nem existir! As
descobertas malucas e extraordinárias do universo diminuto dos átomos chegaram
ao ponto de deixar um de seus pesquisadores, o Nobel de Física Erwin
Schrödinger tão tenso, que ficou doente, diante dos disparates encontrados. Mesmo
diante dos acalorados debates e brigas, da incredulidade, ceticismo e
estupefação dos pesquisadores e do próprio Einstein (ele se angustiou muito),
Gleiser assevera que a Física Quântica é bastante eficaz para explicar nosso
mundo de partículas invisíveis, gozando o posto de ser a teoria mais bem
colocada na explicação das coisas.
“A mecânica
quântica é extremamente eficiente na descrição dos resultados de inúmeros
experimentos que testam fenômenos em escalas atômicas e subatômicas. De fato,
ela é a teoria científica mais eficiente em toda a história da ciência. É
devido ao seu fantástico sucesso que um número enorme de maravilhas
tecnológicas foi criado durante este século, de transistores e computadores até
discos laser e televisão digital. “As descobertas de hoje serão as ferramentas
de amanhã.” P. 305.
Para terminar estes recortes de A Dança do
Universo, nada melhor do que fechar o livro com estas palavras:
“O conhecimento
pode gerar poder, e o poder é muito sedutor. A ciência pode curar, mas também
pode matar. Contudo, a alternativa, certamente, não é desprezar a importância
crucial da ciência para a sociedade. Essa atitude seria uma viagem sem escalas
para o obscurantismo, forçando nossa qualidade de vida a regredir aos padrões
miseráveis de um passado não muito distante. O conhecimento não representa
necessariamente sabedoria, mas com certeza a ignorância nunca é uma opção
razoável.” P. 275.
“Teorias científicas jamais serão a verdade final: elas Irão sempre evoluir e mudar, tornando-se progressivamente mais corretas e eficientes, sem chegar nunca a um estado final de perfeição. Novos fenômenos estranhos, inesperados e imprevisíveis irão sempre desafiar nossa imaginação. Assim como nossos antepassados, estaremos sempre buscando compreender o novo. E, a cada passo dessa busca sem fim, compreenderemos um pouco mais sobre nós mesmos e sobre o mundo a nossa volta.” P. 397-398.