sexta-feira, 23 de março de 2018

Do Outro Lado: A História do Sobrenatural e do Espiritismo


PRIORE, Mary Del. Do Outro Lado: A História do Sobrenatural e do Espiritismo. 1 ed. - São Paulo: Planeta, 2014. (PDF).

A Historiadora Mary Del Priore (Ph.D em História na USP) sabe como ninguém trazer a baila assuntos que fogem da história tradicional, que geralmente se resumem a tratar de assuntos ligados a política e economia. Até mesmo para quem é formado em História e apaixonado pelo passado, sente-se frustrado em pegar em livros (acadêmicos) que só tratarão do que os bandidos (políticos) fizeram em décadas e séculos atrás. Mary percebendo que bons livros de História podem ser escritos saindo dessa mesmice historiográfica, sempre escreve sobre temas interessantes sobre a história do nosso país. E quer assunto mais intrigante e que chame mais a atenção, do que um que fale sobre o sobrenatural?

"O que há do 'outro lado'? Esta não é uma pergunta feita apenas por historiadores. E, sim, pela sociedade. Religiosos, filósofos, antropólogos, médicos, pesquisadores de várias áreas, além de cidadãos comuns, querem saber. Passa-se por um túnel frio e escuro para mergulhar em águas quentes e iluminadas? Voa-se, de forma invisível, sobre o próprio corpo? Seres de luz vêm nos buscar? Nada se sabe, embora se acumulem depoimentos daqueles que voltaram do além. Mesmo com o cérebro aparentemente estacionário, eles foram capazes de ter visões. Os cientistas chamam o fenômeno de EQM: experiência de quase-morte ou near-death experience, termo cunhado pelo psiquiatra norte-americano Raymond Moody depois de ter estudado mais de cem casos." P. 09.

Se o Brasil é o país mais católico do mundo, ele é o país mais espírita também. Seja mediante as religiões afros, nas suas várias manifestações, como o candomblé, umbanda, jurema, tambor de mina e etc. - seja através do chamado alto espiritismo, tendo como principal eixo os ensinos do francês Alan Kardec, o organizador da doutrina espírita.

Mary fez uma exaustiva pesquisa nos jornais e revistas do século XIX, livros de Kardec e livros, revelando o boom do espiritismo nos EUA, com as irmãs Fox, passando pela Europa, e chegando as terras brasileiras.

“[...] não há sociedade ou cultura na qual esteja ausente a preocupação dos vivos com os mortos, e da participação dos mortos na vida dos vivos. [...] A necessidade de religião - capaz de, na medida do possível, harmonizar o racional e o irracional – continua, de forma consciente ou subliminar, essencial ao equilíbrio humano.” P. 12.

O livro fala sobre o frisson das mesas volantes, do magnetismo, do sonambulismo, do curandeirismo... A reação da igreja católica que condenava todas essas manifestações, atribuindo ao diabo essas práticas que iam de encontro ao que ela ensinava e acreditava. Os jornais também denunciavam o novo movimento religioso, acusando-o de charlatanismo, enganador das massas pobres e ignorantes. As várias classes sociais, que a sua maneira aderiam as práticas espíritas, ora atrás de cura para as suas doenças, ora para saber o seu futuro, ou se comunicar com entes queridos.

No período medieval, a própria igreja ajudou a sedimentar o interesse e o medo dos espíritos, com histórias absurdas, algo que não é novidade no catolicismo.

“Na Idade Média, fantasmas e almas do outro mundo começaram a registrar sua existência. Cronistas da Igreja não hesitavam em comentar que os cadáveres saíam de sua sepultura, passeavam à vontade e, depois, voltavam aos túmulos que abriam com as próprias mãos. Montavam a milhares os testemunhos de tais fatos. Ao competir com os santos, defuntos ganhavam outra característica: a de fazer milagres, sobretudo por quem rezasse por eles. Além do mais, manifestavam-se aos vivos de diversas formas: por meio de sonhos e visões, na forma de fantasmas ou de mortos-vivos.” P. 23.

O grande codificador/organizador da doutrina espírita, foi o conhecido Alan Kardec.

“Em O Livro dos Espíritos, Kardec conta que sua conversão [crença na comunicação com os mortos] foi gradual. Levou dois anos. Não foi uma conversão súbita e emocional, mas sim pensada, refletida, ponderada; uma conclusão rigorosa a partir de um conjunto de 'princípios incontestáveis'. Para ele, o mundo espiritual era o prolongamento da vida concreta. E até mais importante, porque eterno. E passível de ser estudado cientificamente”. P. 34.

A doutrina espírita logo em seu início já adiantava que poderia haver erros ou má conduta dos espíritos contatados. Uma boa estratégia para sempre manter a religião espírita num patamar de veracidade. Se houve erro: a culpa é da interpretação do médium ou do espírito pilantra que quis enganar. Nunca será da própria estrutura de doutrinária e de crenças do espiritismo. Uma maneira esperta de continuar enganando.

“Como outras religiões, o espiritismo que chegava ao Brasil se apresentava como uma revelação, tal como a que tiveram Moisés ou Jesus Cristo. Ela não emanaria de Deus, mas de espíritos falíveis, por vezes trapaceiros, que, embora mortos, estavam perto dos vivos. Donde, para o destinatário da revelação, a necessidade de verificar e discutir tais mensagens.

Como Kardec mesmo dizia, o risco de erro e mistificação não seria jamais eliminado. Ele não tomava tais mensagens por verdades. Cada espírito poderia ensinar alguma coisa aos homens. Mas nenhum ensinaria tudo. Cabia ao interessado formar um conjunto de informações com a ajuda de documentos, ligando uns aos outros. Daí a importância da interpretação ‘científica e moral’, fundamental no kardecismo.” P. 39.

Como era um novo movimento espiritual que estava dando as caras, o espiritismo de Kardec naturalmente entraria em conflito com a igreja católica. Kardec tinha plena consciência disto e foi cauteloso quanto a essa delicada questão.

"De início, Kardec evitou se chocar com a Igreja. Não queria atrair a fúria de uma instituição que era um pilar político. Além disso, num país de cultura católica, seria suicídio exigir que os católicos escolhessem entre suas crenças e o espiritismo. Mas, a partir de 1864, quando suas obras foram colocadas no Index de leituras proibidas pelo Santo Ofício da Inquisição, tornou-se quase impossível conciliar catolicismo e espiritismo". P. 42.

O espiritismo nega ensinamentos centrais do cristianismo, e Kardec sabia dessas diferenças.

“Um dos pontos favoritos das teses de Kardec era a negação do inferno e de seus castigos eternos. Segundo ele, ninguém poderia acreditar numa tal ideia, incompatível com a da existência de um Deus, sinônimo de amor. O único critério de salvação não devia ser o medo, mas a retidão de princípios e a caridade. Fora dessa última não haveria salvação”. P. 42.

O catolicismo não aprovava e nem aprova a comunicação com os mortos, porém, isso é bem contraditório, visto que o fiel católico é orientado a rezar pedindo ajuda a Maria ou a um panteão de santos mediadores, ou seja, pessoas que já morreram. O que é a reza/oração, se não uma espécie de comunicação/diálogo entre quem pede (humano vivo) e entre quem o escuta e responde (Deus, Maria, santos), respondendo com um sim ou um ano, a prece do fiel?

“A Igreja, como já vimos, também movia sua guerra contra a doutrina [espírita]. Desde 1864, ela colocou no Index de livros proibidos as obras espíritas e perseguia a necromancia, ou seja, a comunicação com os mortos, a qual considerava maldita. A ordem era: que os padres respondessem às manifestações de espíritos com a arma tradicional, os exorcismos. Do ponto de vista do Santo Ofício, os espíritos eram assimilados a demônios, e os que os invocavam, a adeptos de Satã.” P. 94.

Toda religião é filha de seu tempo, portanto, por mais que o kardecismo pregasse a prática da caridade e do amor, o racismo estava incluso em suas práticas espirituais, tanto na Europa quando no Brasil. Em terras brasileiras, o espiritismo negro/africano já existia há séculos. Os seguidores de Kardec não queriam ser associados a eles.  

"No final dos anos 1880, com os grupos kardecistas mais organizados, a preocupação era não confundir espíritas e curandeiros. Havia discriminação. Afinal, os espíritos de índios e negros eram considerados pelos kardecistas ‘involuídos’ e ‘carentes’. Kardec, na verdade, nada escreveu a esse respeito. Porém, ao se referir a ‘povos bárbaros e antropófagos’, diferenciando-os dos civilizados, e ao considerar a escravidão um fator cármico, ele os convidava a evoluir espiritualmente." P. 72.

Pensou errado aqueles que decretaram o avanço ininterrupto da razão materialista rumo a uma sociedade sem religião e sem superstição. A França, um dos berços das Luzes estava afundada e crendices de todos os tipos.

“Em 1800, Napoleão quis conhecer o estado de 'superstição' na França, e em cada localidade representantes foram encarregados de anotar comportamentos 'irracionais'. A enquete revelou que, em todas as classes sociais, nas cidades ou no campo, crendices estavam bem vivas: magia, feitiçaria, lobisomens, curandeiros, possessão, evocação de espíritos… A França parecia tomada pelo sobrenatural. A crença em presságios e na adivinhação parecia mais forte do que o sentimento religioso”. P. 76.

A ironia da coisa é que o século XIX era a continuação do período das luzes (iluminismo), que apregoava que a razão e a ciência preencheriam todas as lacunas da existência. Mas aí vem o espiritismo e o sobrenatural e mostram que não seria assim não. A crença nos espíritos ganhava novo fôlego, e não recrudesceria com o avanço da medicina e ciências em geral. E assim tem sido desde então. Adentramos o século XXI, com a fé no além, nos espíritos, na comunicação com os mortos...