TOLSTÓI, Liev. Uma
Confissão. São Paulo: Mundo Cristão, 2017.
“Qual o sentido de minha vida? Nenhum. Ou: O que
vai ser da minha vida? Nada. Ou: Para que existe tudo o que existe e para que
eu existo? Para existir.” P. 54.
A maioria das pessoas
que nascem (ou nasceram) no ocidente, já nascem com uma religião que lhes é
imposta. Na Rússia do século XIX, não era diferente e era muito mais forte o
vínculo da sociedade, mesmo que superficial, com a religião estatal, no caso a Igreja
Ortodoxa Russa. Mais uma igreja preocupada em se manter no poder, sem pouco se
importar com os seus fieis, o que não é novidade alguma.
O grande e aclamado
escritor Liev Tolstói, viveu debaixo da soberania dos Czars na Rússia, e como
todo bom russo, era um católico ortodoxo. Sabe aquela historinha que conhecemos
aqui no Brasil, do católico não praticante? Ou seja, o bebê nasce em um lar
católico, é batizado, durante sua infância e adolescência vai uma ou outra vez
a missa, visto que seus pais já não são tão praticantes assim, e tal não-praticidade lhe é passada,
culminando muitas vezes em ceticismo e desdém pela religião inculcada. Chega um
momento, que aquela religião com seus dogmas é quase que totalmente
relativizada e tem pouca relevância nos negócios do dia a dia, sejam eles quais
forem. Pois bem, era mais ou menos dessa forma na sociedade russa.
Tolstói, homem mui
sábio, leitor e escritor voraz, percebeu que não tinha mais fé, logo cedo em
sua vida. Esse livro é um relato pessoal e emocionante da sua crise de fé. Um desvelamento
das mais profundas angústias de sua alma! Um desabafo! Uma peregrinação dolorosa
da razão à fé.
Uma coisa é você não
praticar o que a sua igreja manda e, mesmo assim, pensar que ainda é católico,
mesmo tendo ciência que é um desleixado, mas com a consciência “limpa” diante
de Deus, mantendo sua crença nele e nas doutrinas da igreja. Outra bem
diferente é você chegar a pôr em dúvidas sérias e sinceras os ensinamentos da
igreja em que foi criado, mesmo ainda tendo algum tipo de fé no deus que ela
prega.
“A doutrina religiosa que me foi transmitida desde
a infância desapareceu dentro de mim da mesma forma como nos outros; a única
diferença é que, como comecei cedo a ler e pensar, minha renúncia à doutrina
religiosa se tornou consciente também muito cedo. Aos dezesseis anos, parei de
rezar e, por iniciativa própria, parei de ir à igreja e jejuar. Parei de crer
no que tinham me transmitido desde a infância, mas acreditava em algo”. P. 19.
Posteriormente até a fé
no deus trino não lhe era mais cabível. Chegou um tempo em que sua fé estava
voltada para o progresso, mito herdado do iluminismo. Mas o tempo fez sua
crença esmorecer. Escrevia, era Professor, viajava para a Europa, casou, teve
filhos – mas estava exausto espiritualmente, posto que não sabia qual seria o
sentido de sua vida.
“[...] comecei a ter momentos, no início, de
perplexidade, de interrupções da vida, como se eu não soubesse como viver, o
que fazer, e me perdia e caía no desânimo. Mas isso passava e eu continuava a
viver como antes. Depois, esses momentos de perplexidade começaram a se repetir
cada vez com mais freqüência e sempre da mesma forma”. P. 33.
Tempos depois:
“[...] me convenci de que, em primeiro lugar, não
se tratava de questões tolas infantis, mas sim das questões mais importantes e
mais profundas da vida e, em segundo lugar, que eu, por mais que pensasse, não
conseguia lhes dar resposta”. P. 34.
A coisa foi piorando,
ao ponto dele cogitar o suicídio, mas numa confusão total, não queria chegar a
esse ponto.
“A vida me dava enjôo – alguma força indeterminada
me seduzia para que eu, de algum modo, me desvencilha-se da vida. Mas não se
pode dizer que eu queria me matar. [...] com todas as forças eu desejava me
afastar da vida. A idéia de suicídio me veio de maneira tão natural quanto,
antes, me vinham os pensamentos sobre o aperfeiçoamento da vida. [...] Eu mesmo
não sabia o que queria: tinha medo da vida, desejava me livrar dela e, no
entanto, ainda esperava dela alguma coisa.” P. 36, 37.
Os vários ramos do
saber, como a Biologia, a Sociologia, a Matemática, a Psicologia, a Medicina e
tantos outros não davam respostas às perguntas referentes ao sentido da vida.
Não é da competência delas inquirir e solucionar sobre as questões (sentido,
propósito, finalidade) da existência. Nem a Filosofia com a sua argúcia está
apta a resolver tal problema, mesmo que faça as perguntas certas.
A vida era um absurdo! Tirar
a vida e acabar com tudo, era a saída mais racional, ou menos irracional. Mas
algo novo depois de muitos anos, começava a surgir no raciocínio de Tolstói que
o levou lentamente a outro caminho. Ele percebeu que:
“[...] toda a humanidade tem algum conhecimento do
sentido da vida, não reconhecido e desprezado por mim”. P. 75.
Porém, um impasse
veio-lhe a mente, visto que Tolstói não conseguia ver a fé e a razão como
amigas. Para ele, estavam em pólos antagônicos. O sentido da vida não pode ser
obtido pelo método da razão. A desrazão é a alavanca para o ser humano ter um
vislumbre da essência da sua existência. Ele não queria abandonar a razão, mas
tampouco queria perder a chance de salvar a sua vida, encontrando o sentido
desta, que ele tanto necessitava.
“[...] Decorre daí que o saber racional não fornece
o sentido da vida, ele a exclui; e o sentido atribuído à vida por milhões de
pessoas, por toda a humanidade, se fundamenta num saber falso e desprezado.” P. 75.
Apesar de tudo e, com
muitas ressalvas, o caminho lentamente estava sendo pavimentado para voltar a
sua velha fé abandonada.
“[...] ou aquilo que eu chamava de racional não era
tão racional como eu pensava, ou aquilo que me me parecia irracional não era
tão irracional como eu pensava”. P. 76.
“[...] comecei a entender que, nas respostas fornecidas
pela fé, se abriga a profunda sabedoria da humanidade e que eu não tinha
direito de negá-la com base na razão, e que, acima de tudo, só essas respostas
atendem à questão da vida.” P. 83.
“E me salvei do suicídio. Quando e como se deu,
dentro de mim, essa reviravolta, não posso dizer. Assim como a força da vida se
aniquilou dentro de mim gradualmente, de modo imperceptível, e acabei chegando
à impossibilidade, aquela força da vida retornou para mim. E o estranho é que
essa força de viver, que voltou para mim, não era nova, mas bem antiga – a mesma
que me atraía nas primeiras fases de minha vida. Voltei aos primórdios, à
infância e à juventude. Voltei a direção da fé, para aquela vontade que me produziu
e que quer algo de mim; voltei para o objetivo único e principal de minha vida,
ser melhor, ou seja, viver de acordo com aquela vontade; voltei para a
convicção de que posso encontrar a expressão daquela vontade em algo que se
esconde de mim, algo que toda a humanidade elaborou a fim de orientá-la, ou
seja, voltei à fé em Deus, no aprimoramento moral, na tradição que transmite o
sentido da vida”. P. 100.
Bonitinho e comovente,
não é? Nem tanto. Páginas e mais páginas à frente (até antes dessa citação, Tolstói
não esconde que mesmo “crendo”, dúvidas, tristezas e frustrações eram
corriqueiras na sua “nova” vida. Muitas decepções com as ditas pessoas de “fé”.
Dificuldades imensas entre transitar entre o reino da razão e da fé, e, em
conviver com as arbitrariedades e exclusivismo da igreja ortodoxa russa. O livro
acaba e fica subtendido, que as tensões ainda continuaram em sua vida. Elas só
acabaram mesmo, quando ele desceu à sepultura.
Livro muito bom. O
autor nos mostra uma sinceridade que falta a muitos.