quarta-feira, 17 de maio de 2017

Uma Confissão


TOLSTÓI, Liev. Uma Confissão. São Paulo: Mundo Cristão, 2017.

“Qual o sentido de minha vida? Nenhum. Ou: O que vai ser da minha vida? Nada. Ou: Para que existe tudo o que existe e para que eu existo? Para existir.” P. 54.

A maioria das pessoas que nascem (ou nasceram) no ocidente, já nascem com uma religião que lhes é imposta. Na Rússia do século XIX, não era diferente e era muito mais forte o vínculo da sociedade, mesmo que superficial, com a religião estatal, no caso a Igreja Ortodoxa Russa. Mais uma igreja preocupada em se manter no poder, sem pouco se importar com os seus fieis, o que não é novidade alguma.

O grande e aclamado escritor Liev Tolstói, viveu debaixo da soberania dos Czars na Rússia, e como todo bom russo, era um católico ortodoxo. Sabe aquela historinha que conhecemos aqui no Brasil, do católico não praticante? Ou seja, o bebê nasce em um lar católico, é batizado, durante sua infância e adolescência vai uma ou outra vez a missa, visto que seus pais já não são tão praticantes assim, e tal não-praticidade lhe é passada, culminando muitas vezes em ceticismo e desdém pela religião inculcada. Chega um momento, que aquela religião com seus dogmas é quase que totalmente relativizada e tem pouca relevância nos negócios do dia a dia, sejam eles quais forem. Pois bem, era mais ou menos dessa forma na sociedade russa.

Tolstói, homem mui sábio, leitor e escritor voraz, percebeu que não tinha mais fé, logo cedo em sua vida. Esse livro é um relato pessoal e emocionante da sua crise de fé. Um desvelamento das mais profundas angústias de sua alma! Um desabafo! Uma peregrinação dolorosa da razão à fé.

Uma coisa é você não praticar o que a sua igreja manda e, mesmo assim, pensar que ainda é católico, mesmo tendo ciência que é um desleixado, mas com a consciência “limpa” diante de Deus, mantendo sua crença nele e nas doutrinas da igreja. Outra bem diferente é você chegar a pôr em dúvidas sérias e sinceras os ensinamentos da igreja em que foi criado, mesmo ainda tendo algum tipo de fé no deus que ela prega.

“A doutrina religiosa que me foi transmitida desde a infância desapareceu dentro de mim da mesma forma como nos outros; a única diferença é que, como comecei cedo a ler e pensar, minha renúncia à doutrina religiosa se tornou consciente também muito cedo. Aos dezesseis anos, parei de rezar e, por iniciativa própria, parei de ir à igreja e jejuar. Parei de crer no que tinham me transmitido desde a infância, mas acreditava em algo”.  P. 19. 

Posteriormente até a fé no deus trino não lhe era mais cabível. Chegou um tempo em que sua fé estava voltada para o progresso, mito herdado do iluminismo. Mas o tempo fez sua crença esmorecer. Escrevia, era Professor, viajava para a Europa, casou, teve filhos – mas estava exausto espiritualmente, posto que não sabia qual seria o sentido de sua vida.

“[...] comecei a ter momentos, no início, de perplexidade, de interrupções da vida, como se eu não soubesse como viver, o que fazer, e me perdia e caía no desânimo. Mas isso passava e eu continuava a viver como antes. Depois, esses momentos de perplexidade começaram a se repetir cada vez com mais freqüência e sempre da mesma forma”. P. 33. 

Tempos depois:

“[...] me convenci de que, em primeiro lugar, não se tratava de questões tolas infantis, mas sim das questões mais importantes e mais profundas da vida e, em segundo lugar, que eu, por mais que pensasse, não conseguia lhes dar resposta”. P. 34.

A coisa foi piorando, ao ponto dele cogitar o suicídio, mas numa confusão total, não queria chegar a esse ponto.

“A vida me dava enjôo – alguma força indeterminada me seduzia para que eu, de algum modo, me desvencilha-se da vida. Mas não se pode dizer que eu queria me matar. [...] com todas as forças eu desejava me afastar da vida. A idéia de suicídio me veio de maneira tão natural quanto, antes, me vinham os pensamentos sobre o aperfeiçoamento da vida. [...] Eu mesmo não sabia o que queria: tinha medo da vida, desejava me livrar dela e, no entanto, ainda esperava dela alguma coisa.” P. 36, 37.

Os vários ramos do saber, como a Biologia, a Sociologia, a Matemática, a Psicologia, a Medicina e tantos outros não davam respostas às perguntas referentes ao sentido da vida. Não é da competência delas inquirir e solucionar sobre as questões (sentido, propósito, finalidade) da existência. Nem a Filosofia com a sua argúcia está apta a resolver tal problema, mesmo que faça as perguntas certas.

A vida era um absurdo! Tirar a vida e acabar com tudo, era a saída mais racional, ou menos irracional. Mas algo novo depois de muitos anos, começava a surgir no raciocínio de Tolstói que o levou lentamente a outro caminho. Ele percebeu que:

“[...] toda a humanidade tem algum conhecimento do sentido da vida, não reconhecido e desprezado por mim”. P. 75.

Porém, um impasse veio-lhe a mente, visto que Tolstói não conseguia ver a fé e a razão como amigas. Para ele, estavam em pólos antagônicos. O sentido da vida não pode ser obtido pelo método da razão. A desrazão é a alavanca para o ser humano ter um vislumbre da essência da sua existência. Ele não queria abandonar a razão, mas tampouco queria perder a chance de salvar a sua vida, encontrando o sentido desta, que ele tanto necessitava.

“[...] Decorre daí que o saber racional não fornece o sentido da vida, ele a exclui; e o sentido atribuído à vida por milhões de pessoas, por toda a humanidade, se fundamenta num saber falso e desprezado.” P. 75.

Apesar de tudo e, com muitas ressalvas, o caminho lentamente estava sendo pavimentado para voltar a sua velha fé abandonada.

“[...] ou aquilo que eu chamava de racional não era tão racional como eu pensava, ou aquilo que me me parecia irracional não era tão irracional como eu pensava”. P. 76.

“[...] comecei a entender que, nas respostas fornecidas pela fé, se abriga a profunda sabedoria da humanidade e que eu não tinha direito de negá-la com base na razão, e que, acima de tudo, só essas respostas atendem à questão da vida.” P. 83.

“E me salvei do suicídio. Quando e como se deu, dentro de mim, essa reviravolta, não posso dizer. Assim como a força da vida se aniquilou dentro de mim gradualmente, de modo imperceptível, e acabei chegando à impossibilidade, aquela força da vida retornou para mim. E o estranho é que essa força de viver, que voltou para mim, não era nova, mas bem antiga – a mesma que me atraía nas primeiras fases de minha vida. Voltei aos primórdios, à infância e à juventude. Voltei a direção da fé, para aquela vontade que me produziu e que quer algo de mim; voltei para o objetivo único e principal de minha vida, ser melhor, ou seja, viver de acordo com aquela vontade; voltei para a convicção de que posso encontrar a expressão daquela vontade em algo que se esconde de mim, algo que toda a humanidade elaborou a fim de orientá-la, ou seja, voltei à fé em Deus, no aprimoramento moral, na tradição que transmite o sentido da vida”. P. 100.

Bonitinho e comovente, não é? Nem tanto. Páginas e mais páginas à frente (até antes dessa citação, Tolstói não esconde que mesmo “crendo”, dúvidas, tristezas e frustrações eram corriqueiras na sua “nova” vida. Muitas decepções com as ditas pessoas de “fé”. Dificuldades imensas entre transitar entre o reino da razão e da fé, e, em conviver com as arbitrariedades e exclusivismo da igreja ortodoxa russa. O livro acaba e fica subtendido, que as tensões ainda continuaram em sua vida. Elas só acabaram mesmo, quando ele desceu à sepultura.

Livro muito bom. O autor nos mostra uma sinceridade que falta a muitos.