sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Crepúsculo dos Ídolos



NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. (PDF).

Friedrich Nietzsche (1844-1900) é um dos Filósofos mais populares, mais lidos, mais citados... Quando o assunto é ateísmo, sobre quem foram os grandes pensadores que atacaram o cristianismo, a existência divina, a religião em si, é quase certo, termos alguma menção ao seu nome e escritos. “Deus está morto!” – este enunciado certamente vem a memória quando lembramos o que ele tem a dizer sobre Deus. Nietzsche é também conhecido como o antifilósofo, por escrever através de aforismos, pequenos textos, ensaios, não ter preocupação com métodos, tendo como objetivo “dizer em dez frases o que qualquer outro diz em um livro — o que qualquer outro não diz em um livro...” P. 63. Sua linguagem é deveras fácil, quando a comparamos com outros Filósofos.

Crepúsculo dos Ídolos tem como finalidade derrubar, esmiuçar (com o martelo) os falsos deuses antigos que teimavam em persistir, tais como a Filosofia grega representada por Sócrates e Platão, Filósofos que ele não tem apreço algum; ao cristianismo, este sim, a pior desgraça da humanidade, segundo o antifilósofo alemão; a moralidade; e as tendências alemãs de seu tempo, em que Nietzsche não poupa críticas a sociedade alemã, a qual não possui a pujança de outrora. Seu canhão é disparado contra muita gente. É uma declaração de guerra contra aquilo que ele chama de décadence.

Ele pergunta:

"O ser humano é apenas um equívoco de Deus? Ou Deus apenas um equívoco do ser humano?" P. 06.

Ludwig Feuerbach, Filósofo alemão contemporâneo do nosso autor, diria que o homem criou Deus a sua imagem e semelhança, invertendo o que o texto bíblico diz.

Uma pergunta que vai ao estômago dos moralistas hipócritas:

"Como? Vocês escolhem a virtude e o peito estufado, e ao mesmo tempo olham furtivamente para as vantagens dos irrefletidos? — Mas com a virtude renuncia-se às 'vantagens'." P. 08.

Vejo tanto isso, dentre os chamados seguidores de Jesus.

Mais uma cajadada nos hipócritas moralistas:

"Há um ódio à mentira e à dissimulação que vem de uma sensível noção de honra; há um ódio igual que vem da covardia, sendo a mentira proibida por um mandamento divino. Covarde demais para mentir..." P. 10.

Quantas pessoas não conheço que são exatamente assim. Não fazem isso ou aquilo, porque Deus ordenou que não fizessem. E se não houvesse mandamento divino, fariam? “São covardes demais para mentir...”

O antifilósofo ateu, naturalmente desdenhava da ideia de uma vida após a morte. Ele escreve:

“Não há sentido em fabular acerca de um ‘outro’ mundo [depois que morrermos], a menos que um instinto de calúnia, apequenamento e suspeição da vida seja poderoso em nós: nesse caso, vingamo-nos da vida com a fantasmagoria de uma vida ‘outra’, ‘melhor’.” P. 19.

Ele é contra toda forma de moralidade. O que é bom, a igreja castrou, reclama ele.

“A Igreja primitiva lutou, como se sabe, contra os ‘inteligentes’, em favor dos ‘pobres de espírito’: como se poderia dela esperar uma guerra inteligente contra a paixão? com a extirpação em todo sentido: sua prática, sua ‘cura’ é o castracionismo. Ela jamais pergunta: ‘Como espiritualizar, embelezar, divinizar um desejo?’ — em todas as épocas, ao disciplinar, ela pôs a ênfase na erradicação (da sensualidade, do orgulho, da avidez de domínio, da cupidez, da ânsia de vingança). — Mas atacar as paixões pela raiz significa atacar a vida pela raiz: a prática da Igreja é hostil à vida...” P. 22.

Outro disparo contra a moral pregada pela igreja:

“A fórmula geral que se encontra na base de toda moral e religião é: ‘Faça isso e aquilo, não faça isso e aquilo — assim será feliz! Caso contrário...’. Toda moral, toda religião é esse imperativo — eu o denomino o grande pecado original da razão, a desrazão imortal. [...] A Igreja e a moral dizem: ‘o vício e o luxo levam uma estirpe ou um povo à ruína’. Minha razão restaurada diz: se um povo se arruína, degenera fisiologicamente, seguem-se daí o vício e o luxo (ou seja, a necessidade de estímulos cada vez mais fortes e mais freqüentes, como sabe toda natureza esgotada).” P. 26.

Para ele, a igreja criou a abjeta ideia de livre arbítrio para responsabilizar os homens dos seus supostos pecados, fazendo com que a humanidade sinta culpa pelo que não deveria. O livre arbítrio ao contrário do que podemos pensar é uma força escravizadora, que nos manter debaixo das rédeas da igreja.

“Hoje não temos mais compaixão pelo conceito de ‘livre arbítrio’: sabemos bem demais o que é — o mais famigerado artifício de teólogos que há, com o objetivo de fazer a humanidade “responsável” no sentido deles, isto é, de torná-la deles dependente... Apenas ofereço, aqui, a psicologia de todo “tornar responsável”. — Onde quer que responsabilidades sejam buscadas, costuma ser o instinto de querer julgar e punir que aí busca. [...] a doutrina da vontade foi essencialmente inventada com o objetivo da punição, isto é, de querer achar culpado. Toda a velha psicologia, a psicologia da vontade, tem seu pressuposto no fato de que seus autores, os sacerdotes à frente das velhas comunidades, quiseram criar para si o direito de impor castigos — ou criar para Deus esse direito... Os homens foram considerados ‘livres’ para poderem ser julgados, ser punidos — ser culpados. [...] Hoje, quando encetamos o movimento inverso, quando nós, imoralistas, buscamos com toda a energia retirar novamente do mundo o conceito de culpa e o conceito de castigo, e deles purificar a psicologia, a história, a natureza, as sanções e instituições sociais, não existem, a nossos olhos, adversários mais radicais do que os teólogos, que, mediante o conceito de 'ordem moral do mundo', continuam a empestear a inocência do vir-a-ser com 'culpa' e “castigo”. O cristianismo é uma metafísica do carrasco...” P. 29-30.

Eis o seu niilismo:

“Conhece-se minha exigência ao filósofo, de colocar-se além do bem e do mal — de ter a ilusão do julgamento moral abaixo de si. Tal exigência resulta de uma percepção que fui o primeiro a formular: de que não existem absolutamente fatos morais. O julgamento moral tem isso em comum com o religioso, crê em realidades que não são realidades. Moral é apenas uma interpretação de determinados fenômenos, mais precisamente, uma má interpretação. O julgamento moral é parte, como o religioso, de um estágio de ignorância em que falta inclusive o conceito de real, a distinção entre real e imaginário: de modo que ‘verdade’, nesse estágio, designa coisas que agora chamamos de ‘quimeras’. Portanto, o julgamento moral nunca deve ser tomado ao pé da letra: assim ele constitui apenas contra-senso.” P. 31.

Interessante que a todo momento ele está fazendo julgamentos morais.

A tríade do conhecimento:

“Deve-se aprender a ver, aprender a pensar, aprender a falar e escrever: o objetivo, nos três casos, é uma cultura nobre.” P. 37.

“Aprender a pensar: não há mais noção disso em nossas escolas. Mesmo nas universidades, mesmo entre os autênticos doutores da filosofia começa a desaparecer a lógica como teoria, como prática, como ofício. Leia-se livros alemães: já não se tem a mais remota lembrança de que para pensar é necessária uma técnica, um plano de estudo, uma vontade de mestria — de que o pensar deve ser aprendido, tal como a dança deve ser aprendida, como uma espécie de dança...” P. 37.

Outra cipoada no cristianismo:

“De que serve todo o livre-pensamento, toda a modernidade, zombaria e volúvel flexibilidade, se em suas entranhas o indivíduo permanece cristão, católico e até sacerdote!” P. 39.

Há beleza no mundo? Sim, mas só porque, nós, humanos, subjetivamente o dotamos de beleza. Não há objetividade em nossas valorações estéticas.

“O ser humano acredita que o mundo está repleto de beleza — ele esquece de si mesmo como causa dela. Somente ele dotou o mundo de beleza, oh, de uma beleza muito humana, demasiado humana... No fundo, o ser humano se espelha nas coisas, acha belo tudo o que lhe devolve a sua imagem: o juízo ‘belo’ é sua vaidade de espécie... Pois o cético pode ouvir uma leve suspeita lhe sussurrar esta pergunta: o mundo realmente se tornou belo pelo fato de o ser humano tomá-lo por belo? Ele o humanizou: isso é tudo. Mas nada, absolutamente nada nos garante que justamente o ser humano constitua o modelo do belo.” P. 46.

 Agora leiamos o que ele diz sobre os doentes sem perspectiva de cura.

“O doente é um parasita da sociedade. Num certo estado, é indecente viver mais tempo. Prosseguir vegetando em covarde dependência de médicos e tratamentos, depois que o sentido da vida, o direito à vida foi embora, deveria acarretar um profundo desprezo na sociedade. Os médicos, por sua vez, deveriam ser os intermediários desse desprezo — não apresentando receitas, mas a cada dia uma dose de nojo a seus pacientes... [...] Morrer orgulhosamente, quando não é mais possível viver orgulhosamente. A morte escolhida livremente, a morte empreendida no tempo certo, com lucidez e alegria, em meio a filhos e testemunhas: de modo que ainda seja possível uma real despedida, em que ainda está ali aquele que se despede, assim como uma real avaliação do que foi alcançado e pretendido, uma suma da vida — tudo contraste com a miserável e terrível comédia que o cristianismo fez da hora da morte. Não se deve jamais esquecer, em relação ao cristianismo, que ele se aproveitou da fraqueza do moribundo para cometer violação da consciência, e da própria maneira de morrer para formular juízos de valor sobre o indivíduo e seu passado! [...] Mas a morte nas condições mais desprezíveis é uma morte não livre, uma morte no tempo errado, uma morte covarde. Por amor à vida se deveria desejar uma outra morte, livre, consciente, sem acaso, sem assalto... [...] Não nos é dado nos impedir de nascer: mas podemos reparar esse erro — pois às vezes é um erro. Se alguém se elimina, faz a coisa mais respeitável que existe: com isso, quase se merece viver...” P. 52-53.

É realmente assustador ler estas palavras de Nietzsche diante de como foi o seu fim, num estado de demência avançado, sendo cuidado pela irmã. Temos até prova material disto, um vídeo em que ele está em estado vegetativo. É só procurar no YouTube.

Muitos progressistas que admiram Nietzsche, principalmente quando ele atira suas balas céticas contra a religião, mal sabem dos posicionamentos ultraconservadores que ele defendia. Para ele, a mulher era uma mera POSSE do marido. Casamento tinha que ser arranjado. À mulher não cabia a prerrogativa de se casar por livre vontade com quem quisesse. Matrimônio concretizado tinha que ser matrimônio INDISSOLÚVEL. Que ironia, o queridinho dos modernistas pensar assim.

“[...] o casamento moderno [...] claramente perdeu toda racionalidade: mas isso não constitui objeção ao casamento, e sim à modernidade. A racionalidade do casamento estava na responsabilidade legal única do homem: com isso o casamento tinha um centro de gravidade, enquanto agora manca das duas pernas. A racionalidade do casamento estava em sua indissolubilidade por princípio: com isso adquiriu um tom capaz de fazer-se ouvir, perante o acaso de sentimento, paixão e momento. Estava igualmente na responsabilidade das famílias pela escolha dos noivos. A crescente indulgência para com o casamento por amor praticamente eliminou o fundamento do matrimônio, aquilo que faz dele uma instituição. Jamais, em tempo algum, uma instituição é fundada numa idiossincrasia, não se funda o matrimônio, como disse, no ‘amor’ — ele é fundado no instinto sexual, no instinto de posse (mulher e filho como posses), no instinto de dominação, que incessantemente organiza para si a menor formação de domínio, a família, que necessita de filhos e herdeiros, para segurar também fisiologicamente a medida que alcançou de poder, influência e riqueza, para preparar longas tarefas e a solidariedade de instinto entre os séculos. [...] O casamento moderno perdeu seu sentido — portanto, está sendo abolido.” P. 56-57.

Ele surpreende ao dizer que um escritor um cristão foi um gole de sorte em sua vida.

“Dostoiévski, o único psicólogo, diga-se de passagem, do qual tive algo a aprender: ele está entre os mais belos golpes de sorte de minha vida, mais até do que a descoberta de Stendhal.” P. 60.

Nosso autor previa a entrada dos sacerdotes religiosos no limbo da sociedade. Isso de certa forma já tem acontecido há décadas no velho continente.

“Enquanto o sacerdote foi considerado o tipo supremo, toda espécie valiosa de homem foi desvalorizada... Chega o tempo — prometo — em que será visto como o inferior, como o nosso chandala, como a espécie mais mendaz e indecente de homem...” P. 60.

Modéstia não era com ele. Julgava-se o mais sábio alemão.

“Com freqüência me perguntam por que, afinal, escrevo em alemão: em nenhum outro lugar sou tão mal lido como em minha pátria. Mas quem sabe, enfim, se eu também desejo ser lido hoje? — Criar coisas em que o tempo crave suas garras em vão; buscar uma pequena imortalidade na forma, na substância — jamais fui modesto o bastante para exigir menos de mim. O aforismo, a sentença, nos quais sou o primeiro a ser mestre entre os alemães, são as formas da ‘eternidade’; minha ambição é dizer em dez frases o que qualquer outro diz em um livro — o que qualquer outro não diz em um livro... Dei à humanidade o mais profundo livro que ela possui, meu Zaratustra: em breve lhe darei o mais independente.” P. 63.

E suas inspirações literárias? Ele diz:

“No fundo, é um número pequeno de livros antigos que conta em minha vida; os mais famosos não se acham entre eles.” P. 64.

E para fechar, mais uma crítica a moral cristã:

“Só o cristianismo, com seu fundamental ressentimento contra a vida, fez da sexualidade algo impuro.” P. 67.

Posso até subscrever algumas coisinhas dele, mas no geral, é um cara que não tenho muito apreço. Um Filósofo que não acreditava na existência da verdade, para mim todo o discurso dele contra isso ou aquilo cai por terra, afinal a verdade não existe, segundo a própria premissa admitida por ele. Quanto a sua crítica a Deus e a moralidade, ele não elaborou argumentos contra a sua existência e a necessidade dos valores. Ele criou apenas frases de efeito. Frases assim o outro lado também faz. De todo modo, é um Filósofo que deve ser lido, pela proporção que seus escritos tomaram no século XX e no atual. O que não quer dizer que ele seja um bom Filósofo. Popularidade não implica em qualidade. Ele tenta derrubar dogmas, estabelecendo outros. Quer dizer, os seus próprios.