NIETZSCHE,
Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. (PDF).
Friedrich
Nietzsche (1844-1900) é um dos Filósofos mais populares, mais lidos, mais
citados... Quando o assunto é ateísmo, sobre quem foram os grandes pensadores
que atacaram o cristianismo, a existência divina, a religião em si, é quase
certo, termos alguma menção ao seu nome e escritos. “Deus está morto!” – este enunciado
certamente vem a memória quando lembramos o que ele tem a dizer sobre Deus.
Nietzsche é também conhecido como o antifilósofo, por escrever através de
aforismos, pequenos textos, ensaios, não ter preocupação com métodos, tendo
como objetivo “dizer
em dez frases o que qualquer outro diz em um livro — o que qualquer outro não
diz em um livro...” P. 63. Sua linguagem é deveras fácil, quando a
comparamos com outros Filósofos.
Crepúsculo
dos Ídolos tem como finalidade derrubar, esmiuçar (com o martelo) os falsos
deuses antigos que teimavam em persistir, tais como a Filosofia grega
representada por Sócrates e Platão, Filósofos que ele não tem apreço algum; ao
cristianismo, este sim, a pior desgraça da humanidade, segundo o antifilósofo
alemão; a moralidade; e as tendências alemãs de seu tempo, em que Nietzsche não
poupa críticas a sociedade alemã, a qual não possui a pujança de outrora. Seu
canhão é disparado contra muita gente. É uma declaração de guerra contra aquilo
que ele chama de décadence.
Ele pergunta:
"O ser humano é apenas um equívoco de Deus? Ou Deus
apenas um equívoco do ser humano?" P.
06.
Ludwig
Feuerbach, Filósofo alemão contemporâneo do nosso autor, diria que o homem
criou Deus a sua imagem e semelhança, invertendo o que o texto bíblico diz.
Uma pergunta
que vai ao estômago dos moralistas hipócritas:
"Como? Vocês escolhem a virtude e o peito estufado, e ao
mesmo tempo olham furtivamente para as vantagens dos irrefletidos? — Mas com a
virtude renuncia-se às 'vantagens'." P. 08.
Vejo tanto
isso, dentre os chamados seguidores de Jesus.
Mais uma
cajadada nos hipócritas moralistas:
"Há um ódio à
mentira e à dissimulação que vem de uma sensível noção de honra; há um ódio
igual que vem da covardia, sendo a mentira proibida por um mandamento divino.
Covarde demais para mentir..." P.
10.
Quantas
pessoas não conheço que são exatamente assim. Não fazem isso ou aquilo, porque
Deus ordenou que não fizessem. E se não houvesse mandamento divino, fariam?
“São covardes demais para mentir...”
O
antifilósofo ateu, naturalmente desdenhava da ideia de uma vida após a morte.
Ele escreve:
“Não há sentido em
fabular acerca de um ‘outro’ mundo [depois que morrermos], a menos que um
instinto de calúnia, apequenamento e suspeição da vida seja poderoso em nós:
nesse caso, vingamo-nos da vida com a fantasmagoria de uma vida ‘outra’,
‘melhor’.” P. 19.
Ele é contra
toda forma de moralidade. O que é bom, a igreja castrou, reclama ele.
“A Igreja primitiva
lutou, como se sabe, contra os ‘inteligentes’, em favor dos ‘pobres de
espírito’: como se poderia dela esperar uma guerra inteligente contra a paixão?
com a extirpação em todo sentido: sua prática, sua ‘cura’ é o castracionismo.
Ela jamais pergunta: ‘Como espiritualizar, embelezar, divinizar um desejo?’ —
em todas as épocas, ao disciplinar, ela pôs a ênfase na erradicação (da
sensualidade, do orgulho, da avidez de domínio, da cupidez, da ânsia de
vingança). — Mas atacar as paixões pela raiz significa atacar a vida pela raiz:
a prática da Igreja é hostil à vida...” P.
22.
Outro disparo
contra a moral pregada pela igreja:
“A fórmula geral que
se encontra na base de toda moral e religião é: ‘Faça isso e aquilo, não faça
isso e aquilo — assim será feliz! Caso contrário...’. Toda moral, toda religião
é esse imperativo — eu o denomino o grande pecado original da razão, a desrazão
imortal. [...] A Igreja e a moral dizem: ‘o vício e o luxo levam uma estirpe ou
um povo à ruína’. Minha razão restaurada diz: se um povo se arruína, degenera
fisiologicamente, seguem-se daí o vício e o luxo (ou seja, a necessidade de
estímulos cada vez mais fortes e mais freqüentes, como sabe toda natureza
esgotada).” P. 26.
Para ele, a
igreja criou a abjeta ideia de livre arbítrio para responsabilizar os homens
dos seus supostos pecados, fazendo com que a humanidade sinta culpa pelo que
não deveria. O livre arbítrio ao contrário do que podemos pensar é uma força
escravizadora, que nos manter debaixo das rédeas da igreja.
“Hoje não temos mais
compaixão pelo conceito de ‘livre arbítrio’: sabemos bem demais o que é — o
mais famigerado artifício de teólogos que há, com o objetivo de fazer a
humanidade “responsável” no sentido deles, isto é, de torná-la deles
dependente... Apenas ofereço, aqui, a psicologia de todo “tornar responsável”.
— Onde quer que responsabilidades sejam buscadas, costuma ser o instinto de
querer julgar e punir que aí busca. [...] a doutrina da vontade foi
essencialmente inventada com o objetivo da punição, isto é, de querer achar
culpado. Toda a velha psicologia, a psicologia da vontade, tem seu pressuposto
no fato de que seus autores, os sacerdotes à frente das velhas comunidades,
quiseram criar para si o direito de impor castigos — ou criar para Deus esse
direito... Os homens foram considerados ‘livres’ para poderem ser julgados, ser
punidos — ser culpados. [...] Hoje, quando encetamos o movimento inverso,
quando nós, imoralistas, buscamos com toda a energia retirar novamente do mundo
o conceito de culpa e o conceito de castigo, e deles purificar a psicologia, a
história, a natureza, as sanções e instituições sociais, não existem, a nossos
olhos, adversários mais radicais do que os teólogos, que, mediante o conceito
de 'ordem moral do mundo', continuam a empestear a inocência do vir-a-ser com 'culpa' e “castigo”. O cristianismo é uma metafísica do carrasco...” P. 29-30.
Eis o seu
niilismo:
“Conhece-se minha
exigência ao filósofo, de colocar-se além do bem e do mal — de ter a ilusão do
julgamento moral abaixo de si. Tal exigência resulta de uma percepção que fui o
primeiro a formular: de que não existem absolutamente fatos morais. O julgamento
moral tem isso em comum com o religioso, crê em realidades que não são
realidades. Moral é apenas uma interpretação de determinados fenômenos, mais
precisamente, uma má interpretação. O julgamento moral é parte, como o
religioso, de um estágio de ignorância em que falta inclusive o conceito de
real, a distinção entre real e imaginário: de modo que ‘verdade’, nesse
estágio, designa coisas que agora chamamos de ‘quimeras’. Portanto, o
julgamento moral nunca deve ser tomado ao pé da letra: assim ele constitui
apenas contra-senso.” P. 31.
Interessante
que a todo momento ele está fazendo julgamentos morais.
A tríade do
conhecimento:
“Deve-se aprender a
ver, aprender a pensar, aprender a falar e escrever: o objetivo, nos três
casos, é uma cultura nobre.” P. 37.
“Aprender a pensar:
não há mais noção disso em nossas escolas. Mesmo nas universidades, mesmo entre
os autênticos doutores da filosofia começa a desaparecer a lógica como teoria, como
prática, como ofício. Leia-se livros alemães: já não se tem a mais remota
lembrança de que para pensar é necessária uma técnica, um plano de estudo, uma
vontade de mestria — de que o pensar deve ser aprendido, tal como a dança deve
ser aprendida, como uma espécie de dança...”
P. 37.
Outra cipoada
no cristianismo:
“De que serve todo o
livre-pensamento, toda a modernidade, zombaria e volúvel flexibilidade, se em
suas entranhas o indivíduo permanece cristão, católico e até sacerdote!” P. 39.
Há beleza no
mundo? Sim, mas só porque, nós, humanos, subjetivamente o dotamos de beleza.
Não há objetividade em nossas valorações estéticas.
“O ser humano
acredita que o mundo está repleto de beleza — ele esquece de si mesmo como
causa dela. Somente ele dotou o mundo de beleza, oh, de uma beleza muito
humana, demasiado humana... No fundo, o ser humano se espelha nas coisas, acha
belo tudo o que lhe devolve a sua imagem: o juízo ‘belo’ é sua vaidade de
espécie... Pois o cético pode ouvir uma leve suspeita lhe sussurrar esta
pergunta: o mundo realmente se tornou belo pelo fato de o ser humano tomá-lo
por belo? Ele o humanizou: isso é tudo. Mas nada, absolutamente nada nos
garante que justamente o ser humano constitua o modelo do belo.” P. 46.
Agora leiamos o que ele diz sobre os doentes sem perspectiva de cura.
“O doente é um
parasita da sociedade. Num certo estado, é indecente viver mais tempo.
Prosseguir vegetando em covarde dependência de médicos e tratamentos, depois
que o sentido da vida, o direito à vida foi embora, deveria acarretar um
profundo desprezo na sociedade. Os médicos, por sua vez, deveriam ser os
intermediários desse desprezo — não apresentando receitas, mas a cada dia uma
dose de nojo a seus pacientes... [...] Morrer orgulhosamente, quando não é mais
possível viver orgulhosamente. A morte escolhida livremente, a morte
empreendida no tempo certo, com lucidez e alegria, em meio a filhos e
testemunhas: de modo que ainda seja possível uma real despedida, em que ainda
está ali aquele que se despede, assim como uma real avaliação do que foi
alcançado e pretendido, uma suma da vida — tudo contraste com a miserável e
terrível comédia que o cristianismo fez da hora da morte. Não se deve jamais
esquecer, em relação ao cristianismo, que ele se aproveitou da fraqueza do
moribundo para cometer violação da consciência, e da própria maneira de morrer
para formular juízos de valor sobre o indivíduo e seu passado! [...] Mas a morte
nas condições mais desprezíveis é uma morte não livre, uma morte no tempo
errado, uma morte covarde. Por amor à vida se deveria desejar uma outra morte,
livre, consciente, sem acaso, sem assalto... [...] Não nos é dado nos impedir
de nascer: mas podemos reparar esse erro — pois às vezes é um erro. Se alguém
se elimina, faz a coisa mais respeitável que existe: com isso, quase se merece
viver...” P. 52-53.
É realmente
assustador ler estas palavras de Nietzsche diante de como foi o seu fim, num
estado de demência avançado, sendo cuidado pela irmã. Temos até prova material
disto, um vídeo em que ele está em estado vegetativo. É só procurar no YouTube.
Muitos
progressistas que admiram Nietzsche, principalmente quando ele atira suas balas
céticas contra a religião, mal sabem dos posicionamentos ultraconservadores que
ele defendia. Para ele, a mulher era uma mera POSSE do marido. Casamento tinha
que ser arranjado. À mulher não cabia a prerrogativa de se casar por livre
vontade com quem quisesse. Matrimônio concretizado tinha que ser matrimônio
INDISSOLÚVEL. Que ironia, o queridinho dos modernistas pensar assim.
“[...] o casamento
moderno [...] claramente perdeu toda racionalidade: mas isso não constitui
objeção ao casamento, e sim à modernidade. A racionalidade do casamento estava
na responsabilidade legal única do homem: com isso o casamento tinha um centro
de gravidade, enquanto agora manca das duas pernas. A racionalidade do
casamento estava em sua indissolubilidade por princípio: com isso adquiriu um tom
capaz de fazer-se ouvir, perante o acaso de sentimento, paixão e momento.
Estava igualmente na responsabilidade das famílias pela escolha dos noivos. A
crescente indulgência para com o casamento por amor praticamente eliminou o
fundamento do matrimônio, aquilo que faz dele uma instituição. Jamais, em tempo
algum, uma instituição é fundada numa idiossincrasia, não se funda o matrimônio,
como disse, no ‘amor’ — ele é fundado no instinto sexual, no instinto de posse
(mulher e filho como posses), no instinto de dominação, que incessantemente
organiza para si a menor formação de domínio, a família, que necessita de
filhos e herdeiros, para segurar também fisiologicamente a medida que alcançou
de poder, influência e riqueza, para preparar longas tarefas e a solidariedade
de instinto entre os séculos. [...] O casamento moderno perdeu seu sentido —
portanto, está sendo abolido.” P.
56-57.
Ele
surpreende ao dizer que um escritor um cristão foi um gole de sorte em sua
vida.
“Dostoiévski, o
único psicólogo, diga-se de passagem, do qual tive algo a aprender: ele está
entre os mais belos golpes de sorte de minha vida, mais até do que a descoberta
de Stendhal.” P. 60.
Nosso autor
previa a entrada dos sacerdotes religiosos no limbo da sociedade. Isso de certa
forma já tem acontecido há décadas no velho continente.
“Enquanto o
sacerdote foi considerado o tipo supremo, toda espécie valiosa de homem foi
desvalorizada... Chega o tempo — prometo — em que será visto como o inferior,
como o nosso chandala, como a espécie mais mendaz e indecente de homem...” P. 60.
Modéstia não
era com ele. Julgava-se o mais sábio alemão.
“Com freqüência me
perguntam por que, afinal, escrevo em alemão: em nenhum outro lugar sou tão mal
lido como em minha pátria. Mas quem sabe, enfim, se eu também desejo ser lido
hoje? — Criar coisas em que o tempo crave suas garras em vão; buscar uma
pequena imortalidade na forma, na substância — jamais fui modesto o bastante
para exigir menos de mim. O aforismo, a sentença, nos quais sou o primeiro a
ser mestre entre os alemães, são as formas da ‘eternidade’; minha ambição é dizer
em dez frases o que qualquer outro diz em um livro — o que qualquer outro não
diz em um livro... Dei à humanidade o mais profundo livro que ela possui, meu
Zaratustra: em breve lhe darei o mais independente.” P. 63.
E suas
inspirações literárias? Ele diz:
“No fundo, é um
número pequeno de livros antigos que conta em minha vida; os mais famosos não
se acham entre eles.” P. 64.
E para
fechar, mais uma crítica a moral cristã:
“Só o cristianismo,
com seu fundamental ressentimento contra a vida, fez da sexualidade algo
impuro.” P. 67.
Posso até
subscrever algumas coisinhas dele, mas no geral, é um cara que não tenho muito
apreço. Um Filósofo que não acreditava na existência da verdade, para mim todo
o discurso dele contra isso ou aquilo cai por terra, afinal a verdade não
existe, segundo a própria premissa admitida por ele. Quanto a sua crítica a
Deus e a moralidade, ele não elaborou argumentos contra a sua existência e a
necessidade dos valores. Ele criou apenas frases de efeito. Frases assim o
outro lado também faz. De todo modo, é um Filósofo que deve ser lido, pela
proporção que seus escritos tomaram no século XX e no atual. O que não quer
dizer que ele seja um bom Filósofo. Popularidade não implica em qualidade. Ele tenta
derrubar dogmas, estabelecendo outros. Quer dizer, os seus próprios.