quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Idade Média: O Que Não Nos Ensinaram

PERNOUD, Régine. Idade Média: O Que Não Nos Ensinaram. São Paulo: Linotipo Digital, 2016. (PDF).

Ainda hoje é comum, as pessoas vincularem a Idade Média, a um período sombrio e sem avanço significativo algum, seja nas artes, literatura, poesia, ciências. Uma era de trevas sobre a Europa, precisamente por estar sob a influência cristã. Régine Pernoud, Historiadora, Arquivista e Paleografa, com um Ph.D em Letras na Ècole Nationale des Chartes, na França, que trabalhou durante décadas chafurdando antigos documentos empoeirados da idade medieval, discorda desse diagnóstico.

“Mil anos sem produção poética ou literária digna desse nome, é concebível? Mil anos vividos pelo homem sem que se tenha exprimido nada de belo, de profundo, de grande, sobre ele mesmo? Quem acreditaria nisto? No entanto, fizemos acreditar nisso pessoas muito inteligentes que somos nós mesmos, os franceses, e isso por quase quatrocentos anos.” P. 47.

Por exemplo, é comum haver uma sobrevalorização da civilização islâmica que detinha o monopólio do saber. De fato, os árabes muçulmanos na Idade Média, deram grandes contribuições aos vários ramos do conhecimento, inclusive na ciência. Fizeram coisas incríveis. Isso é um fato bem atestado. Não se pode negá-lo. Embora isso não se configure numa dita idade de ouro. Entretanto, essa não é toda história. Eles fizeram o que fizeram, porque o Ocidente conquistado, tinha todo o aparato (ou considerável parte dele), para que a civilização islâmica pudesse florescer.

“Esquecemos frequentemente estes pormenores quando se trata das traduções de Aristóteles, que os filósofos árabes fizeram, em seguida, na Espanha; jamais teriam podido empreender semelhante empreendimento em Sevilha, como houvessem encontrado aí as bibliotecas que haviam conservado as obras de Aristóteles, e isto bem antes da invasão, ou seja, para a Espanha, antes do século VIII. A ciência e o pensamento árabes não fizeram mais do que aprofundar-se nas fontes preexistentes, a dos manuscritos que permitiram este conhecimento de Aristóteles e de outros escritores antigos. Seria um verdadeiro absurdo supor o contrário, como, aliás, se fez. A culpa é dos nossos livros escolares que mencionam Avicena e Averróis, mas passam completamente por cima de Isidoro de Sevilha. Jacques Fontaine chamou atenção sobre o fato de que, em arquitetura, o arco otomano, que se atribui geralmente aos árabes, existia há mais de cem anos antes de sua eclosão nesta Espanha ‘visigótica’, que ele tão bem estudou.” P. 50.

Esse é apenas um fator. Existem outros.

É na modernidade renascentista que se volta para a revalorização da Antiguidade Clássica e não na medievalidade, que a escravidão floresce. Apesar de na segunda ter existido a servidão, em que o servo estava preso a terra.

“[...] há grande distância entre esta servidão medieval e o renascimento da escravidão que se produziu bruscamente no século XVI, nas colônias da América. Ora, trata-se de escravidão, de pessoas consideradas e tratadas como coisas, vendidas e transportadas como carregamento de mercadorias comuns. É, realmente, a volta à escravidão determinada pela expansão colonial que caracteriza o período clássico. E não se vê humanismo em destaque nessa época que prestasse alguma atenção a esta porção da humanidade que foi escravizada como na Antiguidade. No entanto, parece não haver dúvida que a reconquista de influência pela Antiguidade desempenhou papel decisivo para justificar este injustificável comércio.” P. 80.

Pernoud também argumenta que no medievo, a igreja católica lutou contra os casamentos forçados. Enquanto que nos países muçulmanos até hoje, a livre escolha do casamento praticamente não existe.

“Uma força lutou contra essas uniões impostas, e esta foi a Igreja; ela multiplicou, no direito canônico, as causas de nulidade, reclamou sem cessar a liberdade para os que se unem, um com relação ao outro e, com frequência, mostrou-se bastante indulgente ao tolerar, na realidade, a ruptura de laços impostos — muito mais nesta época do que mais tarde, notemos. O resultado é a constatação que provém da simples evidência de que o progresso da livre escolha do esposo acompanhou em toda parte o progresso da difusão do cristianismo. Hoje ainda é, em países cristãos, que esta liberdade, tão justamente reclamada, é reconhecida pelas leis, enquanto que, nos países muçulmanos ou nos países do Extremo Oriente, essa liberdade, que nos parece essencial, não existe ou só recentemente foi concedida.” P. 87.

As mulheres também tinham uma certa autonomia nas atividades e funções que compõe o mundo do trabalho. Ironicamente, é na idade moderna que a mulher começa a perder mais e mais direitos e liberdades.

“Basta dizer que o lugar da mulher na Igreja é exatamente o mesmo que ela ocupou na sociedade civil e que, pouco a pouco, lhe foi retirado, depois da Idade Média, tudo o que lhe conferia alguma autonomia, alguma independência, alguma instrução.” P. 91

“Nas atas de notários é muito frequente ver uma mulher casada agir por si mesma, abrir, por exemplo, uma loja ou uma venda, e isto sem ser obrigada a apresentar uma autorização do marido. Enfim, os registros de impostos (nós diríamos, os registros de coletor), desde que foram conservados, como é o caso de Paris, no fim do século XIII, mostram multidão de mulheres exercendo funções: professora, médica, boticária, estucadora, tintureira, copista, miniaturista, encadernadora etc. Não é senão no fim do século XVI, por um decreto do Parlamento, datado de 1593, que a mulher será afastada explicitamente de toda a função no Estado. A influência crescente do direito romano não tarda então a confinar a mulher no que foi sempre seu domínio privilegiado: os cuidados domésticos e a educação dos filhos.” P. 92-93.

Pergunto-me: por mais que haja essa “multidão de mulheres exercendo funções”, nos documentos pesquisados pela Pernoud, não seriam essas mulheres exceção e não a regra?  

No medievo já se sabia que a Terra era redonda.

“Quando preparávamos, nos Arquivos Nacionais, uma exposição sobre o século de São Luís, enviei uma assistente, aliás bastante culta, para consultar, de Brunetto Latini, a passagem bem conhecida do Tesouro, em que ele explicava a seus leitores, em meados do século XIII, a redondeza da terra. [...] Galileu não tinha descoberto que a terra era redonda; o fato já era conhecido há mais de quatro séculos.” P. 96.

Sobre a Inquisição:

“Sob vários aspectos, a Inquisição foi a reação de defesa de uma sociedade para a qual, com razão ou sem ela, a preservação da fé pareceria tão importante como a da saúde física para a atualidade. É palpável aqui o que faz a diferença de uma época para outra, isto é, diferença de critérios, de escala de valores. E é elementar em História começar por levá-los em conta, ou seja, respeitá-los, sem o que o historiador se transforme em juiz.” P. 99.

Pernoud parece dar aquela bela passada de pano para os abusos da igreja católica. Seria por ela ser adepta dessa religião? Talvez.

“De fato, para o crente — e a imensa maioria acreditava, durante a Idade Média — a Igreja está perfeitamente em seu direito quando exerce o poder de jurisdição: enquanto que guardiã da fé, esse direito lhe foi sempre reconhecido pelos que, pelo batismo, pertenciam à Igreja. Daí, por exemplo, a aceitação geral de sanções tais como a excomunhão ou a interdição. Excomungar é colocar fora da comunidade de fiéis quem não se conforma com as regras instituídas pela Igreja enquanto sociedade; é um ‘colocar fora do jogo’, como se pratica em toda parte com quem trapaceia, quem trai, quem não aceita as regras de uma sociedade, de um clube, de um partido, de uma associação qualquer, à qual, anteriormente, pretendia pertencer. Na mesma linha das sanções eclesiásticas, a interdição condenava a uma espécie de excomunhão geral um território inteiro, toda uma cidade, para levar à obediência seu responsável: senhor, rei, até abades etc. Esta espécie de banimento da comunidade dos fiéis era o meio mais eficaz de obter o arrependimento do culpado, porque a interdição compreendia a suspensão de todas as cerimônias religiosas; os sinos deixavam de tocar, os ofícios religiosos (casamentos, enterros...) não eram mais celebrados, o que tornava por demais intolerável a vida das populações.” P. 102-103.

Concluo com estas palavras:

“Haveria um primeiro progresso decisivo a fazer com respeito à Idade Média: seria aceitar que ‘estas pessoas’ tenham sido pessoas como nós; uma humanidade como a nossa, aliás, nem melhor, nem pior, mas diante da qual não basta fazer um gesto de desprezo ou um sorriso condescendente; pode-se estudá-la, serenamente, como a qualquer outra.” P. 122.