PERNOUD,
Régine. Idade Média: O Que Não Nos Ensinaram. São Paulo: Linotipo Digital,
2016. (PDF).
Ainda hoje é
comum, as pessoas vincularem a Idade Média, a um período sombrio e sem avanço significativo
algum, seja nas artes, literatura, poesia, ciências. Uma era de trevas sobre a Europa,
precisamente por estar sob a influência cristã. Régine Pernoud, Historiadora,
Arquivista e Paleografa, com um Ph.D em Letras na Ècole Nationale des Chartes, na
França, que trabalhou durante décadas chafurdando antigos documentos
empoeirados da idade medieval, discorda desse diagnóstico.
“Mil anos sem produção poética ou literária digna desse nome,
é concebível? Mil anos vividos pelo homem sem que se tenha exprimido nada de
belo, de profundo, de grande, sobre ele mesmo? Quem acreditaria nisto? No
entanto, fizemos acreditar nisso pessoas muito inteligentes que somos nós
mesmos, os franceses, e isso por quase quatrocentos anos.” P. 47.
Por exemplo,
é comum haver uma sobrevalorização da civilização islâmica que detinha o monopólio
do saber. De fato, os árabes muçulmanos na Idade Média, deram grandes
contribuições aos vários ramos do conhecimento, inclusive na ciência. Fizeram
coisas incríveis. Isso é um fato bem atestado. Não se pode negá-lo. Embora isso
não se configure numa dita idade de ouro. Entretanto, essa não é toda história.
Eles fizeram o que fizeram, porque o Ocidente conquistado, tinha todo o aparato
(ou considerável parte dele), para que a civilização islâmica pudesse florescer.
“Esquecemos frequentemente estes pormenores quando se trata
das traduções de Aristóteles, que os filósofos árabes fizeram, em seguida, na
Espanha; jamais teriam podido empreender semelhante empreendimento em Sevilha,
como houvessem encontrado aí as bibliotecas que haviam conservado as obras de
Aristóteles, e isto bem antes da invasão, ou seja, para a Espanha, antes do
século VIII. A ciência e o pensamento árabes não fizeram mais do que
aprofundar-se nas fontes preexistentes, a dos manuscritos que permitiram este
conhecimento de Aristóteles e de outros escritores antigos. Seria um verdadeiro
absurdo supor o contrário, como, aliás, se fez. A culpa é dos nossos livros
escolares que mencionam Avicena e Averróis, mas passam completamente por cima
de Isidoro de Sevilha. Jacques Fontaine chamou atenção sobre o fato de que, em
arquitetura, o arco otomano, que se atribui geralmente aos árabes, existia há
mais de cem anos antes de sua eclosão nesta Espanha ‘visigótica’, que ele tão
bem estudou.” P. 50.
Esse é apenas
um fator. Existem outros.
É na
modernidade renascentista que se volta para a revalorização da Antiguidade
Clássica e não na medievalidade, que a escravidão floresce. Apesar de na
segunda ter existido a servidão, em que o servo estava preso a terra.
“[...] há grande distância entre esta servidão medieval e o
renascimento da escravidão que se produziu bruscamente no século XVI, nas
colônias da América. Ora, trata-se de escravidão, de pessoas consideradas e
tratadas como coisas, vendidas e transportadas como carregamento de mercadorias
comuns. É, realmente, a volta à escravidão determinada pela expansão colonial
que caracteriza o período clássico. E não se vê humanismo em destaque nessa época
que prestasse alguma atenção a esta porção da humanidade que foi escravizada
como na Antiguidade. No entanto, parece não haver dúvida que a reconquista de
influência pela Antiguidade desempenhou papel decisivo para justificar este injustificável
comércio.” P. 80.
Pernoud também
argumenta que no medievo, a igreja católica lutou contra os casamentos
forçados. Enquanto que nos países muçulmanos até hoje, a livre escolha do
casamento praticamente não existe.
“Uma força lutou contra essas uniões impostas, e esta foi a
Igreja; ela multiplicou, no direito canônico, as causas de nulidade, reclamou
sem cessar a liberdade para os que se unem, um com relação ao outro e, com
frequência, mostrou-se bastante indulgente ao tolerar, na realidade, a ruptura
de laços impostos — muito mais nesta época do que mais tarde, notemos. O
resultado é a constatação que provém da simples evidência de que o progresso da
livre escolha do esposo acompanhou em toda parte o progresso da difusão do
cristianismo. Hoje ainda é, em países cristãos, que esta liberdade, tão
justamente reclamada, é reconhecida pelas leis, enquanto que, nos países
muçulmanos ou nos países do Extremo Oriente, essa liberdade, que nos parece
essencial, não existe ou só recentemente foi concedida.” P. 87.
As mulheres também
tinham uma certa autonomia nas atividades e funções que compõe o mundo do
trabalho. Ironicamente, é na idade moderna que a mulher começa a perder mais e
mais direitos e liberdades.
“Basta dizer que o lugar da mulher na Igreja é exatamente o
mesmo que ela ocupou na sociedade civil e que, pouco a pouco, lhe foi retirado,
depois da Idade Média, tudo o que lhe conferia alguma autonomia, alguma independência,
alguma instrução.” P. 91
“Nas atas de notários é muito frequente ver uma mulher casada
agir por si mesma, abrir, por exemplo, uma loja ou uma venda, e isto sem ser
obrigada a apresentar uma autorização do marido. Enfim, os registros de
impostos (nós diríamos, os registros de coletor), desde que foram conservados,
como é o caso de Paris, no fim do século XIII, mostram multidão de mulheres
exercendo funções: professora, médica, boticária, estucadora, tintureira,
copista, miniaturista, encadernadora etc. Não é senão no fim do século XVI, por
um decreto do Parlamento, datado de 1593, que a mulher será afastada
explicitamente de toda a função no Estado. A influência crescente do direito
romano não tarda então a confinar a mulher no que foi sempre seu domínio
privilegiado: os cuidados domésticos e a educação dos filhos.” P. 92-93.
Pergunto-me: por
mais que haja essa “multidão de mulheres exercendo funções”, nos documentos pesquisados
pela Pernoud, não seriam essas mulheres exceção e não a regra?
No medievo já
se sabia que a Terra era redonda.
“Quando preparávamos, nos Arquivos Nacionais, uma exposição
sobre o século de São Luís, enviei uma assistente, aliás bastante culta, para
consultar, de Brunetto Latini, a passagem bem conhecida do Tesouro, em que ele
explicava a seus leitores, em meados do século XIII, a redondeza da terra.
[...] Galileu não tinha descoberto que a terra era redonda; o fato já era
conhecido há mais de quatro séculos.” P. 96.
Sobre a Inquisição:
“Sob vários aspectos, a Inquisição foi a reação de defesa de
uma sociedade para a qual, com razão ou sem ela, a preservação da fé pareceria tão
importante como a da saúde física para a atualidade. É palpável aqui o que faz
a diferença de uma época para outra, isto é, diferença de critérios, de escala
de valores. E é elementar em História começar por levá-los em conta, ou seja,
respeitá-los, sem o que o historiador se transforme em juiz.” P. 99.
Pernoud parece
dar aquela bela passada de pano para os abusos da igreja católica. Seria por
ela ser adepta dessa religião? Talvez.
“De fato, para o crente — e a imensa maioria acreditava,
durante a Idade Média — a Igreja está perfeitamente em seu direito quando exerce
o poder de jurisdição: enquanto que guardiã da fé, esse direito lhe foi sempre
reconhecido pelos que, pelo batismo, pertenciam à Igreja. Daí, por exemplo, a
aceitação geral de sanções tais como a excomunhão ou a interdição. Excomungar é
colocar fora da comunidade de fiéis quem não se conforma com as regras
instituídas pela Igreja enquanto sociedade; é um ‘colocar fora do jogo’, como
se pratica em toda parte com quem trapaceia, quem trai, quem não aceita as
regras de uma sociedade, de um clube, de um partido, de uma associação
qualquer, à qual, anteriormente, pretendia pertencer. Na mesma linha das
sanções eclesiásticas, a interdição condenava a uma espécie de excomunhão geral
um território inteiro, toda uma cidade, para levar à obediência seu responsável:
senhor, rei, até abades etc. Esta espécie de banimento da comunidade dos fiéis
era o meio mais eficaz de obter o arrependimento do culpado, porque a
interdição compreendia a suspensão de todas as cerimônias religiosas; os sinos
deixavam de tocar, os ofícios religiosos (casamentos, enterros...) não eram
mais celebrados, o que tornava por demais intolerável a vida das populações.” P.
102-103.
Concluo com
estas palavras:
“Haveria um primeiro progresso decisivo a fazer com respeito à Idade Média: seria aceitar que ‘estas pessoas’ tenham sido pessoas como nós; uma humanidade como a nossa, aliás, nem melhor, nem pior, mas diante da qual não basta fazer um gesto de desprezo ou um sorriso condescendente; pode-se estudá-la, serenamente, como a qualquer outra.” P. 122.