quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Santos Fortes: Raízes do Sagrado no Brasil


FERNANDES, Luiz Estevam; KARNAL, Leandro. Santos Fortes: Raízes do Sagrado no Brasil. Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2017.

Karnal (Ph.D em História na USP) e Fernandes (Ph.D em História na Unicamp), trazem neste livro, uma ínfima parcela do panteão de santos (ou semideuses) do catolicismo romano, que estão presentes na devoção de milhões dos católicos do mundo inteiro, em especial, os fiéis brasileiros. Ambos os Historiadores são ateus, no entanto, nutrem um profundo respeito pela religiosidade que irão historiar. Aqui e ali, vemos algumas pitadas de humor e de ironia, talvez uma crítica velada a cachorrada que é essa miríade de intercessores mortos do catolicismo romano? Afinal ninguém é de ferro, e é muito difícil se isentar de alguma crítica, quando se fala na história dessa instituição. Os autores advertem aquelas pessoas que se julgam mais racionais e inteligentes que os devotos dos santos fortes:

“Bom senso é aquilo que apenas eu tenho. Infelizmente, a fé do outro está sempre errada e Deus se comunica de forma reta apenas comigo. Somente eu sei que estas pessoas cometem um equívoco porque são diferentes de mim e não interpretam a Bíblia, a Torá ou o Corão da maneira correta – a propósito, a minha. [...] A virtude presumida pode ser mais grave no Juízo Final do que uma singela devoção ao bem.” P. 13.

Eles têm razão. Estou pronto a admitir, que me julgo mais racional (virtude presumida) que os veneradores (adoradores) desses semideuses católicos, mas também, estou pronto a recuar e, dizer que, em muitos outros aspectos da minha vida, eu sou irracional, passional, subjetivo ao extremo, ao passo que muitíssimos devotos dos santos, estão há anos luz de mim, em inteligência, sagacidade e objetividade em outras áreas. Ninguém é frio, calculista, realista e objetivo, em todas as áreas da existência. Viver assim seria insuportável. Precisamos cultivar pensamentos mágicos.

Para quem dirige suas orações aos santos, pouco importa o que a igreja tem a dizer sobre eles, seja aprovando ou reprovando. Discursos vindo da Teologia não tem lugar na cabecinha de quem acredita que foi abençoado por esses mediadores do céu.  

"Os devotos dos santos fortes não se preocupam com teologias elaboradas em gabinetes e bibliotecas. Não debatem as sutilezas conceituais da latria (adoração devida a Deus), dulia (veneração de santos) e hiperdulia (dedicada à Virgem Maria). Apenas sentem que precisam de ajuda. Teologia é recurso mental sofisticado. A necessidade imediata e prática dispensa esse tipo de sutileza. O fiel não é metafísico; o aqui e agora é mais forte do que a especulação sobre as causas primeiras. A fé de alguém diante do seu santo de eleição não diminuiria diante dos protestos de todos os teólogos e, obviamente, não depende da aprovação deles." P. 13.

O monte Olimpo do Vaticano é tão cheio de intermediadores de Deus, que muitos estão tirando férias há séculos, por não terem mais terráqueos que peçam as bênçãos celestiais a eles.

"Por fim, há santos absolutamente anônimos para a imensa maioria das pessoas, mesmo as católicas. São milhares de obscuros bispos da Alta Idade Média, abades dos confins do mundo, condessas de lugares ermos e mártires sem muito holofote. [...] Dos milhares de santos do panteão católico, constituem a maioria, perdidos nas brumas do tempo e enterrados nas areias do esquecimento". P. 22-23.

Sou um cético inveterado ao modo de o catolicismo guiar as pessoas em suas devoções espirituais, entretanto, sou o primeiro a baixar a guarda, quando surgem problemas em minha vida, dos quais acredito que são mais fortes do que posso suportar. Portanto, não tenho vergonha de pedir uma ajudinha do céu, mesmo que tal pedido chegue aos céus entrelaçado com muita desconfiança e ceticismo (talvez não passem do teto). Nós, humanos, somos frágeis demais, para aguentar as pedradas da vida, sozinhos. Quanto a isso, subscrevo as palavras abaixo:

"Para todos os seres humanos chega um dia de angústia no qual os recursos humanos disponíveis estão barrados. Pode ser uma doença sem cura, uma crise financeira aguda ou uma angústia com um filho. A impotência diante das fatalidades, o mundo hostil e as ciladas dos inimigos terrenos e espirituais sobrepujam a força da alma angustiada. Esse é o momento da intercessão, do auxílio, da busca do além para o aqui e agora." P. 57-58.

O livro contará a história de vários santos: São Jorge, São Sebastião, São Judas Tadeu, São Longuinho, Santo Expedito, Maria, São João Batista, Santa Bárbara, Santo Antônio, entre outros. Alguns são santos canônicos (aprovados pela igreja), outros foram aclamados pelo povo, como o padre Cícero, no interior do Ceará.

Sobre o popular Chiquinho de Assis:

"Francisco nunca se ordenou. Não era padre, de fato. Logo, nunca pôde presidir uma missa. Tampouco se encaixou no modelo monacal de sua época, o do isolamento em fortalezas de Deus chamadas mosteiros, rezar pela salvação de uns poucos e, no processo, garantir a própria entrada no Paraíso. O novo modelo de santo era o do frade, o irmão consagrado. Sua atuação podia se dar em conventos, mas preferencialmente devia se dar no mundo, em meio ao pecado. Menos estudo e mais ação. Pregar de maneira itinerante, de acordo com a necessidade do lugar e das pessoas. Pregar a toda criatura, humana ou não. Uma visão ecológica e holística da natureza como criação divina, sem hierarquias". P. 108.

Chiquinho conseguiu convencer várias pessoas a viverem sem nada, apenas de doações, esmolas, da maneira mais simples possível. Atraiu a atenção de muitas cidades. Num determinado momento, a igreja sempre com sede e fome de poderes ilimitados, teve receio do aumento dos seguidores de Chiquinho.

"Receava-se a expansão da ordem franciscana. Se os ideais de pobreza e desapego não fossem suficientemente controlados, o que seria da instituição mais rica da Idade Média?" P. 113-114.

Mas a grande ironia da coisa foi que:

"Menos de um século depois de sua morte [de Francisco], a ordem franciscana era tão rica quanto qualquer outra. A própria Basílica de Assis, ricamente adornada por dois gênios, é prova disso. Cada cena da vida de Francisco que ilustra o templo é antagônica ao custo que aquela arte de vanguarda teve à ordem. [...] Assim, os franciscanos chegariam ao século XVI como a ordem mais importante da Europa". P. 119.

Muitos que eram santos, já não são tão santos assim.

"Bárbara é mais um dos milhares de santos mártires dos primeiros séculos do cristianismo. Sua existência concreta é altamente questionável. No movimento de verificação e atualização de sua lista hagiológica feito pelo Vaticano nos anos 1960, retirou-se a santa do rol de mártires oficiais. Ou quase. Ela ainda consta do martirológico, mas a data de 4 de dezembro, sua festa, e mesmo o seu nome foram removidos do calendário da Igreja na reforma de 1969. Isso significa que a Igreja reconhece o culto e a popularidade de Bárbara, mas não afirma categoricamente sua existência." P. 163.

E nós, brasileiros, já temos os nossos santos. Há poucos anos, não tínhamos nenhum, apenas beatos. Agora são dezenas.

"[...] até pouco tempo, o maior país católico não tinha santos nativos. João Paulo II canonizou Madre Paulina. O nacionalismo queria mais, pois a santa viveu aqui, mas nasceu na Itália. Vieram Frei Galvão e suas pílulas mágicas. Nascido em Guaratinguetá, tornou-se o primeiro santo tupiniquim com eira e beira. Em outubro de 2017, o papa Francisco anunciou a canonização de trinta novos santos brasileiros: os mártires de Cunhaú e Uruaçú, no Rio Grande do Norte. Nada mal. Saímos de nenhum para dezenas de santos oficiais em pouco mais de uma década e meia." P. 182-183.

E ainda existem, digamos, os santos apócrifos:

"O Brasil, bem como qualquer país de matriz católica, está cheio de santos fora do altar, esperando o reconhecimento da Igreja. Ou nem necessitando dele. A canonização é espontânea. O postulante a santo pode ser um padre ou um bandido, pobre coitado ou ricaço com fama de evérgeta, criança ou velho". P. 184.