sábado, 18 de março de 2017

A Bíblia e a Arqueologia


RICHELLE, Matthieu. A Bíblia e a Arqueologia. São Paulo: Vida Nova, 2017.

A Bíblia é um livro religioso alicerçado na história. Pelo menos, numa leitura normal e simples do texto, fica muito fácil ver assim. Ela menciona cidades, reis, costumes, impérios... Egito, Babilônia, Pérsia, Assíria... Seriam suas aventuras registradas naquilo que chamamos de Antigo Testamento factualmente fundamentadas na história? A Ciência da Arqueologia pode nos fornecer conhecimentos complementares sobre o texto bíblico? Os Arqueólogos têm algo a dizer sobre a veracidade ou inveracidade histórica sobre os vários eventos que aparecem nas páginas do texto sagrado? A Arqueologia confirma ou nega a Bíblia? Seria correto incorrermos nessa bifurcação? Ou o trabalho arqueológico é muito mais complexo do que essa formulação simplista de ou A ou B?   

Matthieu Richelle, Ph.D em Ciências Históricas e Filológicas na EPHE-Sorbonne, assevera que a Arqueologia não funciona nos limites desse maniqueísmo. As ferramentas de pesquisa dos Arqueólogos para decifrar os artefatos das antigas civilizações, podem ajudar na compressão do texto bíblico. Mas como é dito, a natureza dos achados é muito fragmentária. Os pesquisadores só têm acesso a uma porção ínfima dos artefatos. E eles ainda precisam ser datados, decrifrados e interpretados. Eis um desafio hercúleo para os estudiosos.  Não é nada fácil construir um conhecimento razoavelmente crível sobre os povos antigos. Deduções, induções, especulações, subjetividades, pressupostos metafísicos e metodológicos, estão a todo o momento no trabalho dos especialistas.

“Por mais empolgante que seja a descoberta de novos textos, seria ilusão pensar que é possível lê-los com facilidade. Nos casos das inscrições com caracteres cuneiformes, os especialistas podem encontrar até seiscentos sinais, cada um podendo ainda representar várias sílabas e ideais distintas. Mesmo os textos conservados em escrita alfabética (entre vinte e trinta sinais em geral) podem mostrar-se muito difíceis de decifrar. A tinta pode ter desaparecido em boa parte dele ou ter se misturado com manchas escuras. Os traços de textos cursivos, escritos rapidamente para registrar informações ou mensagens do cotidiano, não são mais fáceis de ler do que uma prescrição médica e exigem um olho bem treinado! Às vezes, é preciso utilizar um programa de tratamento de fotos no computador, modificar o contraste e as cores, para revelar a silhueta de uma letra.” P. 76.

Por essas e outras, deve-se ter muita cautela quando a mídia divulga uma descoberta muito importante e, que revolucionará o conhecimento naquela área. Em não poucas ocasiões há sensacionalismo em jogo.

“Por vezes, a mídia difunde prematuramente uma análise que em seguida se mostra errônea”. P. 79.

As próprias hipóteses feitas pelos Arqueólogos com frequência mostram-se falhas e inadequadas. Esquadrinhar o passado nunca foi fácil.

“Arqueólogos, portanto, propõem regularmente interpretações sedutoras, mas basta esperar alguns meses ou alguns anos para que apareçam outras análises, mais sóbrias e frequentemente mais justas.” P. 90.

A metodologia empregada está sempre mudando, evoluindo – isso contribui para que visões antes estabelecidas possam ser solapadas ou modificadas por novos paradigmas e olhares sobre as escavações.

“[...] os métodos progridem constantemente e, quando os arqueólogos, releem os relatórios de escavações realizadas há décadas, constatam que os protocolos de seus predecessores estão longe de satisfazer aos parâmetros científicos atuais. Ora, uma escavação é um ato de destruição, e não é possível voltar no tempo. Às vezes, os dados não registrados corretamente ou eram mal interpretados”. P. 97-98.

Depois de nos guiar pelas dificuldades intrínsecas do labor arqueológico, Richelle conclui:

“Diante de todos esses limites, a esperança que muitos têm na arqueologia às vezes se mostra ilusória. De tempos em tempos, mesclam-se a ela a má fé ou a ignorância. [...] Nesse tipo de situação, uma dose de subjetividade inevitavelmente entra em jogo na interpretação, segundo os pressupostos de cada um.”

“Por ora, é preciso concluir que, por mais impressionante que seja a luz lançada pelas descobertas materiais sobre a Bíblia, os limites da pesquisa arqueológica não são menos consideráveis. Isso não deve diminuir o fascínio que a disciplina legitimamente suscita, mas, sim, instigar o desejo de esclarecer essa paixão por meio de uma atitude prudente, o que tornará a pesquisa mais científica.” P. 99, 100. 

Estando cientes do caminho nada fácil que os especialistas têm que trilhar - em que pé estão às escavações concernentes aos relatos históricos da Bíblia? A ciência arqueológica confirma ou nega as histórias bíblicas, ou seria melhor abordar a questão de outra maneira, sem entrarmos nessa dicotomia?

“[...] Por um lado, se é normal que aqueles que atribuem importância à veracidade da Bíblia se alegrem com descobertas que a confirmem (e há muitas), não existe nenhuma razão para crer que os sítios sejam ‘reservatórios de confirmações, como se os vestígios existissem para conservar lembranças dos relatos bíblicos. [...] É, pois, totalmente ilusório pensar que se pode ‘provar a Bíblia’, por meio das descobertas feitas nas escavações, e é possível ser enganado em vão. Não somente nada garante que os vestígios e as inscrições que forneceriam uma confirmação de cada fato ou eventos bíblicos tenham sido preservados pelo tempo, mas também é bem evidente que jamais será possível verificar cada elemento dos relatos bíblicos, a começar pelos diálogos de seus personagens!” P. 106, 107.

Nos capítulos finais, o autor dá uma atenção especial às teses levantadas pelo respeitado Arqueólogo Israel Finkelstein (Professor da Universidade de Tel Aviv), em seu livro A Bíblia Desenterrada, que em português, a editora que não foi nenhum pouquinho besta, traduziu por A Bíblia Não Tinha Razão, um contraponto claro ao livro E a Bíblia Tinha Razão, do Jornalista Werner Keller, lançado ainda na década de 1970. Em seu livro, Finkelstein reduz a Bíblia a uma coletânea de livros que têm pouca relevância do ponto de vista histórico. Li o tal livro há uns dez anos ou mais. Richelle vem nos dizer que as ideias levantadas por ele, têm pouca aceitação entre os seus pares. A grande massa dos Arqueólogos e outros estudiosos não apoiam as conclusões do Finkelstein. E muitos deles não são cristãos e nem judeus ortodoxos, que em teoria, estariam ávidos por confirmar as histórias do Antigo Testamento.

“[...] praticamente todos os arqueólogos, experientes e novatos, que trabalham com a Idade do ferro, rejeitaram sua redatação como algo infundado”. P. 134. – Ziony Zevit, Ph.D na Universidade de Berkeley, na Califórnia, e ex-Professor da Universidade Hebraica de Jerusalém.

“Essa obra [A Bíblia Desenterrada], geralmente bem traduzida e de leitura agradável, visa a um público amplo, sobre o qual exerce a sedução de ser apresentada como ‘provada’ pela arqueologia. O especialista, porém, não se sente muito à vontade diante de tanta certeza, por um lado porque conhece os debates atuais acerca de certos dados da arqueologia material – em particular acerca da arqueologia dos séculos 9 e 10 – e, por outro, porque se espanta com tomadas de posição categóricas por parte de arqueólogos no domínio da crítica literária e da história da redação de textos.” P. 135. - André Lemaire, Historiador, Epigrafista e Diretor da Escola Prática de Altos Estudos, na França.

Alguns especialistas são citados, para corroborar a historicidade da Bíblia:

“Temos um nível regular de boas correlações, com base em fatos, desde aproximadamente 2000 a.C. (com raízes mais antigas) até 4000 a.C. Do ponto de vista da confiabilidade geral, [...] o Antigo Testamento se sai muitíssimo bem, desde que seus escritos e escritores sejam tratados de maneira justa e imparcial, de acordo com dados independentes, disponíveis a todos.” P. 122. – Kenneth Kitchen, Egiptólogo e Professor da Universidade de Liverpool.

“Não existe no momento nenhum caso em que uma inscrição extrabíblica tenha demonstrado que o relato bíblico de algum evento do começo do primeiro milênio antes de nossa era seja completamente falso.” P. 127. - Eric H. Cline, Arqueólogo, Ph.D em História Antiga na Universidade da Pensilvânia.

“Cada vez que uma inscrição menciona um rei de Israel ou de Judá, ela concorda com o texto bíblico; as inscrições que têm alguma relação com o texto bíblico não fornecem nenhum caso de contradição. [...] Afirmamos que nenhuma descoberta arqueológica se opõe de modo indiscutível a uma afirmação do Antigo Testamento.” P. 127. – Alan Milard, Professor na Escola de Arqueologia da Universidade de Liverpool.

Afirmações contundentes!

Em termos gerais, Richelle afirma que a Bíblia está em uma boa situação segundo a maioria dos Arqueólogos. Mas ele reitera várias vezes para os mais entusiasmados que tenham cuidado. A Arqueologia não prova a Bíblia! Mostra apenas que muitas de suas histórias são factuais. O labirinto do minotauro realmente existe, mas isso não quer dizer que um minotauro real tocava o terror aos infelizes que porventura, caíssem naquele lugar.

Tudo depende de como olhamos o Antigo Testamento. Olhamos para ele como livro inspirado pelo divino e inerrante? Se sim, então é impossível pensar na possibilidade de que ele contenha algumas incongruências históricas. Não seria justo, adequado e, até seria um pecado, vê-lo como impreciso em seus registros, segundo a visão dos crédulos.

A visão que temos dele é de um livro sujeito a todo tipo de erro, como qualquer outra literatura? Se a resposta é positiva, não tem porque pensarmos que a Arqueologia sempre o confirmará. O Arqueólogo pode ir a campo, aberto a todas as possibilidades – seja admitindo que o texto está se provando factível; ou considerando o texto impreciso, segundo o que as escavações revelam. Prefiro esta segunda opção.

Citando uma segunda vez essa fala do Richelle:

“Arqueólogos, portanto, propõem regularmente interpretações sedutoras, mas basta esperar alguns meses ou alguns anos para que apareçam outras análises, mais sóbrias e frequentemente mais justas.” P. 90.

Isso vale para todos: crentes e descrentes.