ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de; FILHO, Walter Fraga. Uma História do Negro
no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação
Cultural Palmares, 2006.
Wlamyra de Albuquerque (Doutora em História Social na Unicamp) e Walter
Fraga (Doutora em História Social na Unicamp), traçam a história do negro desde a
escravidão africana, sendo intensificada pelos árabes, culminando no grande
comércio escravagista europeu, que trouxe para cá, a partir do século XVI,
milhões de negros para trabalharem forçadamente para enriquecer a Portugal e os
senhores de engenho.
O Brasil se desenvolveu ancorado no trabalho escravo, que fazia do
negro uma coisa útil para um determinado fim. Tanto o escravo africano como o
escravo crioulo (nascido aqui), arranjaram diversas formas de resistência ao
regime escravocrata, ora fugindo e criando seus quilombos, ora sabotando as
plantações e os bens de seus senhores, fundando irmandades...
Eles criaram a Capoeira, luta disfarçada em dança; mantiveram em meio a
perseguição, a sua inabalável crença nos orixás, inundaram o Brasil com os seus
costumes, hábitos, culinária...
Diante de revisionismos toscos de uma classe de pessoas que se julgam
guardadoras da alta moral, que querem minimizar os horrores da escravidão e de
suas sequelas tão evidentes diante de nossos olhos (o racismo e a situação de
vulnerabilidade do negro), é um alento ler um livro sério sobre a história de
tão grande parcela de pessoas que levaram esse país nas costas.
A escravidão já existia no continente africano muito antes dos europeus
aportarem lá, para levar os seus primeiros cativos para trabalharem em suas lavouras,
países, feitorias e etc. Mas era em quantidades bem inferiores comparada ao
viria depois. Os árabes intensificaram vertiginosamente tráfico, e daí não
parou mais.
“Desde
que os árabes ocuparam o Egito e o norte da África, entre o fim do século VII e
metade do século VIII, a escravidão doméstica, de pequena escala, passou a
conviver com o comércio mais intenso de escravos. A escravidão africana foi
transformada significativamente com a ofensiva dos muçulmanos. Os árabes
organizaram e desenvolveram o tráfico de escravos como empreendimento comercial
de grande escala na África. Não se tratava mais de alguns poucos cativos, mas
de centenas deles a serem trocados e vendidos, tanto dentro da própria África
quanto no mundo árabe e, posteriormente, no tráfico transatlântico para as
Américas, inclusive para o Brasil.” P.
15.
A religião dos árabes lhes davam o aval para escravizarem aqueles que
não estavam no curral de fieis do islamismo. As jihads chegaram a África, para
converter na base da força e escravizar.
“Desde os
fins do século VIII, os árabes, partindo da região do Golfo Pérsico e da
Arábia, disseminaram o islamismo pela força da palavra, dos acordos comerciais
e, principalmente, das armas. Eram as guerras santas, as jihad, destinadas a
islamizar populações, converter líderes políticos e escravizar os ‘infiéis’, ou
seja, quem se recusasse a professar a fé em Alá.” P. 16.
A “misericórdia” de Alá se traduzia assim, para com os de fora:
“O Corão
não condenava o cativeiro. Para os seguidores do profeta Maomé, a escravização
era uma espécie de missão religiosa. O infiel, ao ser escravizado, ‘ganhava’ a
oportunidade da conversão e, depois de devidamente instruído nos preceitos
islâmicos, tinha direito a voltar a ser livre.” P. 18.
Quantos mais escravos, mais dinheiro no bolso. Nessa corrida, por
exemplo, os luadenses eram os caçadores.
“[...]
eram os próprios moradores de Luanda que se lançavam à caça de cativos. Luanda
rapidamente se tornou uma grande feira de comércio de gente. Angola, desde fins
do século XVI até a primeira metade do século XVIII, foi o maior fornecedor de
escravos para as Américas portuguesa e espanhola.” P. 33.
Cabe aqui uma ressalva. Não é raro vermos por aí, alguns querendo
mitigar a escravidão que houve por aqui, ressaltando a escravidão dos africanos
contra os próprios africanos, alegando que nem eles tinham consideração pelos
seus “irmãos”. Tal ideia ignora que a única coisa que eles tinham em comum eram
a cor da pele e a sua moradia num mesmo continente, que por sinal é gigante,
abarcando culturas e modos de vida bem distintos. Eles eram suscetíveis a todos
os erros e virtudes, como qualquer europeu era. Não consigo concluir a partir
da escravidão existente na África, um álibi para a escravatura aqui, e muito
menos para o racismo ainda existente.
O conceito de salvação dos cristãos não era muito diferente dos
muçulmanos. A justificativa para escravizar tinha na verdade uma missão mais
nobre e profunda por trás. A salvação espiritual do africano. Ah, o amor
cristão...
“Na idéia
dos europeus, o tráfico era justificado como instrumento da missão
evangelizadora dos infiéis africanos. O padre Antônio Vieira considerava o
tráfico um ‘grande milagre’ de Nossa Senhora do Rosário, pois retirados da
África pagã, os negros teriam chances de salvação da alma no Brasil católico.
No século XVIII, o conceito de civilização complementará a justificativa
religiosa do tráfico atlântico ao introduzir a idéia de que se tratava de uma
cruzada contra as supostas barbárie e selvageria africanas.” P. 41.
Feito cativo, o africano agora seria tratado que nem gado.
“Antes de
entrar nas embarcações, eles [os escravos] eram marcados a ferro quente no
peito ou nas costas com os sinais que identificavam a que traficante
pertenciam, uma vez que em cada barco viajavam escravizados pertencentes a
diferentes donos.” P. 48.
A vinda até aqui era dura, penosa, um verdadeiro inferno.
“Estimativas
mais recentes calculam entre 15 a 20 por cento de mortos durante uma viagem
normal, mas não era incomum haver 40 a 50 por cento de perdas.” P. 50.
“Havia
ainda a morte provocada por suicídio e não foram poucos os cativos que puseram
fim à existência precipitando-se no mar.” P.
50.
Até existiam leis que tinham a finalidade de “proteger” os escravos
contra os exagerados castigos impostos por seus senhores, mas não novidade que
eles só estavam no papel, não tendo nenhum efeito prático e real.
“Apesar
da legislação colonial permitir que escravos e livres denunciassem senhores
cruéis às autoridades civis ou eclesiásticas, pouquíssimos senhores responderam
perante os juízes por acusações de crueldade contra escravos. A maioria dos
acusados terminou perdoada ou absolvida por juízes que, em geral, pertenciam à
mesma classe dos senhores.” P. 69.
Diante da revolta de ser escravizado, muitos negros podiam e sabotavam as
produções. Era preciso ter cuidado e estar de olho.
“A
produção no engenho podia ser facilmente sabotada. Bastava espremer um limão em
uma caldeira de melado para impedir a sua cristalização em açúcar. Daí que,
trabalhadores negligentes e rebeldes não eram selecionados para as tarefas mais
especializadas. Para conseguir a colaboração dos escravos era preciso recorrer
a incentivos. Os senhores costumavam pagar os escravos especializados com
pequenas quantidades de açúcar, aguardente, melaço, roupa ou mesmo em
dinheiro.” P. 75.
E que não é novidade:
“A sociedade
escravista contou com o apoio da Igreja Católica para inculcar nos cativos
paciência e humildade como virtudes desejáveis.” P. 96.
Li não lembro aonde, um Historiador dizendo que os feriados católicos,
que não eram poucos, e é exatamente pela abundância deles, salvaram muitos
africanos dos trabalhos estafantes a que estavam submetidos. Isso alivia e
minimiza o papel dela numa conjuntura tão brutal quanto foi a escravidão no
Brasil?
Umas das grandes forças terapêuticas que mantiveram muitos africanos
fortes diante da brutalidade portuguesa, foi a religião. A crença nos orixás
dava-lhes a força necessária para resistirem e manterem a esperança. Mas cultivar
o culto aos seus deuses era proibido pelo estado.
“Africanos
e afro-brasileiros não tinham liberdade para cultuar seus santos e deuses, mas
muitas vezes tinham permissão para fazê-lo. E permissão não é liberdade. A
Constituição do país, promulgada em 1824, definiu o catolicismo como religião
oficial do Império, sendo outras religiões permitidas desde que não ostentassem
templos. Mas as religiões afro-brasileiras não estavam incluídas nessa
tolerância legal porque não eram consideradas religião e sim superstição,
curandeirismo, feitiçaria. Por isso eram consideradas práticas ilegais e muitas
vezes criminosas.” P. 112.
Na segunda metade do século XIX começam a aparecer vários grupos
abolicionistas, e muitos se destacaram na guerra contra o sistema escravista.
Uns lutavam apenas pelo fim do cativeiro, outros, se preocupavam com a situação
econômica e social dos negros quando fossem libertos. Foi o caso de André
Rebouças (1838-1898).
“André
Rebouças pregava mudanças na legislação que permitissem aos ex-escravos acesso
à terra. Era o que ele chamava de ‘democracia rural’, uma espécie de reforma
agrária que deveria promover a inclusão social dos ex-escravos. Para Rebouças a
luta contra a escravidão não podia ser desligada da luta pela cidadania dos
ex-escravos e dos seus descendentes.” P.
164.
Acabada a escravidão em 1888, as ideias racistas eugênicas começam a percorrer
o seu nefasto caminho.
“Em 1894,
Raimundo Nina Rodrigues, professor da Faculdade de Medicina da Bahia, defendeu
uma idéia polêmica sobre a responsabilidade penal no Brasil. Segundo Nina
Rodrigues os criminosos deveriam ser julgados por critérios diferenciados, pois
os negros seriam naturalmente incapazes de compreender certas regras sociais e,
portanto, não poderiam ser responsabilizados penalmente do mesmo modo que os
brancos. Na sua lógica, por conta das hierarquias raciais, os negros deveriam
ter um tratamento jurídico diferenciado. Afinal, se as raças eram desiguais em
termos civilizatórios, não se poderia igualar a cidadania dos negros à dos
brancos, ou seja, não era possível estabelecer direitos e deveres iguais para
todos. Já em 1899 ele publicou um estudo intitulado ‘Mestiçagem, crime e
degenerescência’, no qual relacionou certos problemas psiquiátricos a
miscigenação racial. No entanto, as suas convicções racistas não o impediram de
realizar pesquisas importantes sobre a presença africana no Brasil. Nina
Rodrigues foi autor de Os Africanos no Brasil, um estudo fundamental para a
história dos negros brasileiros. Nesse livro, o autor trata, dentre outros
aspectos, da origem étnica dos escravos, suas práticas religiosas, valores e
costumes.” P. 205.
Teses eugênicas ainda são defendidas por estudiosos hoje em dia. O famoso
documentário norueguês Lavagem Cerebral, em seu terceiro episódio traz a
opinião de dois estudiosos que são peremptoriamente contra o casamento de
negros e brancos, alegando que isso é prejudicial a humanidade. O documentário
Uma História Sobre o Racismo, da BBC, é outro que mostra que ideias eugênicas e
racistas ainda têm fôlego nos dias atuais.
Mas nem todos eram contra a miscigenação no final do século XIX, veja o
porquê:
“Mas para
outros era justamente a miscigenação que garantiria a civilização no Brasil. A
esperança era que, em médio e longo prazo, o país se tornasse predominantemente
branco. E o caminho para o branqueamento era a miscigenação. Desse modo a ‘raça
branca’, considerada mais evoluída, corrigiria as marcas deixadas na população
brasileira por aquelas tidas como ‘raças inferiores’, negros e índios.” P. 206.
Havia quem contestasse as teses raciais que inferiorizavam os negros.
“Manoel
Bomfim, ao contrário da grande maioria dos intelectuais do seu tempo, não
considerava que a numerosa população negra era o que explicava o atraso da
sociedade brasileira. Para ele, as teorias raciais não passavam de 'ciência
barata' que, covardemente, era usada para garantir a exploração dos fracos
pelos fortes. Manoel Bomfim nasceu em Sergipe, estudou na Faculdade de Medicina
da Bahia e, além de insistente contestador da validade científica das teorias
raciais, criticou os políticos brasileiros por não terem se empenhado por
melhores condições de vida para os negros depois da abolição.” P.
207.
Havia quem acreditasse que os negros estariam extintos nos iniciais
deste século.
“Em 1911,
durante o Congresso Internacional das Raças realizado em Londres, o
representante brasileiro, Batista Lacerda, garantiu que no início do século XXI
já não haveria negros no país e que o número de mulatos seria insignificante.” P. 208.
Nos EUA existiam as Leis Jim Crown, que segregava os negros. Estes não
podiam ter a liberdade de frequentar os mesmos lugares que os negros. No Brasil
não havia leis nesse sentido, porém, eram como se houvesse. Os negros eram
impedidos de muitas atividades que só eram permitidas aos brancos.
No esporte:
“Até a
década de 1930, jogadores negros não eram admitidos nos times de primeira
divisão do campeonato paulista.” P.
237.
No lazer:
“Na
cidade de São Paulo, por exemplo, o acesso dos negros aos parques e praças era
restrito a locais afastados dos freqüentadores brancos.” P. 263.
Nos postos de trabalho:
“As
dificuldades crescentes impostas aos trabalhadores negros para sua inserção no
mercado de trabalho contrastavam cruamente com o desenvolvimento industrial e
urbanístico de São Paulo. Mesmo na década de 1930, quando a imigração diminuiu
de ritmo e aumentou o número de trabalhadores nacionais na indústria paulista,
os critérios de contratação e demissão continuaram marcados pelo racismo. Os
brancos, depois os mulatos, é que tinham maiores chances de conseguir e manter
empregos, em detrimento das pessoas de pele mais escura. [...] A grande
imprensa, os jornais de maior circulação, que tanto haviam contribuído com o
movimento abolicionista, demonstravam pouco ou nenhum interesse pelas questões
que afligiam a população negra no pós-Abolição.” P. 260.
O culto aos deuses africanos demorou para ser totalmente pelo governo.
"[...]
só em janeiro de 1976, durante os festejos ao Senhor do Bonfim na Bahia, o
então governador Roberto Santos assinou o ato administrativo que garantiu a
liberdade de culto para as religiões afro brasileiras. Só então, os terreiros
deixaram de ser obrigados a pedir licença para funcionarem e foi suspenso o
pagamento de taxa ou registro na polícia." P. 243.
A Capoeira, luta criada pelo negro em solo tupiniquim, foi proibida no
Brasil republicano.
“Quando a
República foi proclamada [...] a capoeira passou a ser contravenção prevista no
Código Penal de 1890, com pena de dois a seis meses de prisão. Muitos
praticantes acusados de outros crimes, como vagabundagem e roubo, tiveram como
destino a colônia correcional da Paraíba, a ilha de Fernando de Noronha ou o
Acre para que fossem corrigidos pelo trabalho. A ordem do presidente Deodoro da
Fonseca era que a capoeiragem fosse extinta do território nacional para o bem
dos cidadãos e da segurança do Estado. A atenção especial da legislação penal
republicana, por certo, estava relacionada à participação política de capoeiras
nos episódios que antecederam a proclamação da república em 1889. Mas outras
razões para a repressão aos capoeiras também foram enumeradas. Em Belém, um
delas era o suposto aumento da criminalidade. Na interpretação da polícia
paraense os capoeiras eram os principais responsáveis por delitos que iam desde
o uso de palavras obscenas em locais públicos a homicídios.” P. 247.
A sociedade branca dizia hipocritamente que não existia racismo no
Brasil. Assim como hoje, muitos dizem a mesma coisa.
“Falar de
preconceito contra negros [anos 1920] já era algo bastante censurado, uma vez
que a sociedade brasileira não reconhecia a existência do racismo, nem tão
pouco que as dificuldades de ascensão social das populações negras tivessem
como causa a discriminação racial. A negação do preconceito era conveniente,
pois mantinha os privilégios de uma minoria e isentava o governo brasileiro de
qualquer responsabilidade sobre a situação de pobreza e marginalidade da
população negra.” P. 262.
Criticar movimentos negros não é prerrogativa dos dias atuais, isso já
vem de longa data.
“A idéia
de identidade nacional formulada pelas elites republicanas não apenas servia
para negar a existência do racismo como para desestimular a formação de
associações negras. Quando, em 1928, O Clarim d’Alvorada anunciou a intenção de
organizar um Congresso da Mocidade Negra, os jornais da grande imprensa
paulista reagiram indignados à iniciativa. A possibilidade de que os negros
pudessem se organizar e manifestar politicamente suas aspirações assustava a
elite brasileira. Houve quem se perguntasse: ‘que necessidade há nisso?’, ‘o
que se vai falar nesse congresso?’.” P. 263.
“Na interpretação de alguns jornais [década de
1940], a organização dos negros devia ser combatida porque ameaçava a
democracia, porque contribuía para o que chamavam de ‘racismo às avessas’, ou
seja, o preconceito do negro em relação ao branco. O argumento do ‘racismo às
avessas’ era a evidência de que na sociedade brasileira havia o preconceito
racial, pois não se admitia que os negros tivessem o direito de se organizar e
reagir ao racismo.” P. 274.
Passados 100 anos da abolição, o negro se encontrava em situação
extremamente vulnerável na sociedade brasileira. Abolição de quê mesmo?
“A
militância negra da década de 1980 passou a questionar, com vigor, a versão
oficial da Abolição que exaltava muito mais a bondade e a caridade da princesa
Isabel do que a luta dos escravos para conquistar a liberdade. Ao mesmo tempo,
não parecia fazer sentido comemorar a Abolição se a maioria da população negra
continuava relegada a péssimas condições de vida. Com o objetivo de resgatar o
espírito de luta e enaltecer a resistência, as organizações negras passaram a
rejeitar o 13 de Maio.” P. 295-296.
E não é que já vi criaturinhas exaltarem sobremaneira a princesa Isabel
por ela ter assinado a Lei Áurea, desconsiderando por completo a luta de resistência
de três séculos dos escravos em busca de suas liberdades, fora a militância dos
grupos abolicionistas, compostos por pessoas brancas?