quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Vozes Femininas no Início do Cristianismo


ALMEIDA, Rute Salviano. Vozes Femininas no Início do Cristianismo. São Paulo: Hagnos, 2017.

Rute Almeida tem preenchido uma lacuna na história do cristianismo, trazendo as aventuras das personagens femininas que também protagonizaram os vários acontecimentos importantes dessa religião. Li o seu primeiro livro, Uma Voz Feminina na Reforma, e li a sua segunda obra, Uma Voz Feminina Calada Pela Inquisição. Ela lançou uma terceira literatura, Vozes Femininas no Início do Protestantismo Brasileiro, que ainda não li. E agora, em 2017, foi lançada Vozes Femininas no Início do Cristianismo, que acabo de ler e recomendo.

No capítulo inicial é dado um panorama geral de como era o império romano antes, durante e depois de Jesus. Fala-se sobre a capital Roma, sua cultura, culinária, costumes, abastecimento de água, lazer de sua população, governo de César Augusto, religião, magia, ritos, vícios, os abortos e infanticídios permitidos, a relatividade dos casamentos, que eram facilmente dissolvidos pelo divórcio. Sobre uma das crendices de Tibério, segundo Imperador, Salviano nos diz:

“Tibério, imperador romano sucessor de Augusto, era bastante supersticioso e tinha pavor dos trovões; quando havia tempestade, nunca deixava de pôr na cabeça uma coroa de louros, crendo que as folhas o livrariam dos raios.” P. 54.

No segundo capítulo são nos dadas informações preciosas sobre o cristianismo primitivo. A liturgia do culto cristão no século II, a práticas de caridade, casamento e criação dos filhos, as primeiras literaturas cristãs, os primeiros líderes do cristianismo pós-apostólico, as perseguições aos cristãos, celibato, a hierarquia dentro da comunidade de fiéis, gnosticismo, salvação pelas obras, entre outros. Sobre o cuidado dos cristãos para com as crianças, está escrito:

“Numa cultura na qual o infanticídio e o abandono de crianças eram práticas comuns, as igrejas cristãs se empenharam na tarefa de cuidar de crianças indesejadas e órfãs.” P. 76.

No capítulo três, Salviano nos mostra como se configurava o sexo feminino na sociedade romana nos primeiros séculos. Educação e matrimônio das mancebas, o papel de esposa e a criação dos filhos, as vaidades femininas (cremes faciais, penteados, perfumes, roupas, moda, roupas, jóias, enfeites), religião feminina. Sobre as mulheres cristãs, estas estavam proibidas de casar com quem não professasse o cristianismo. A sua função na igreja, a opinião dos líderes sobre o sexo feminino, o papel do sexo no seio da comunidade cristã, são alguns dos temas abordados. Os pais da igreja eram bem machistas, consideravam a mulher, um ser de segunda classe. Um exemplo que deixa isso bem manifesto está num escrito de Tertuliano (160-220 D.C):

“Tu dá a luz na dor e na angústia, mulher; sofres a atração do teu marido e ele é teu senhor. E ignoras que Eva és tu? Está viva ainda, neste mundo, a sentença de Deus contra o teu sexo. Vive, como se impõe, como acusada. És tu a porta do diabo. Foste tu que quebraste o selo da Árvore; foste a primeira a desertar da lei divina; foste tu que iludiste aquele que o diabo não pode atacar; foste tu que tão facilmente venceste o homem, imagem de Deus. Foi a tua paga, a morte, que causa a morte do próprio filho de Deus. E pensa tu em cobrir de ornamentos as tuas túnicas de pele?” P. 147.

O capítulo quatro fala sobre as perseguições sob o governo do imperador Trajano juntamente com as cartas entre ele e Plínio, o jovem, sobre como proceder em relação aos cristãos, as primeiras defesas escritas pelos pais da igreja, respondendo as acusações injustas, e, finalmente, Salviano entra no assunto principal: as mulheres cristãs dos primeiros século da igreja. Houve perseguições nos governos de Marco Aurélio e Sétimo Severo, onde mulheres da igreja foram duramente punidas por sua fé, como Blandina, Felicidade e Perpétua. As três são resumidamente biografadas. Vários suplícios de mulheres são narrados por Eusébio de Cesareia, Historiador do quarto século. Sobre a morte de Perpétua, Salviano revela a sua coragem diante da morte:

“Perpétua, porém, padecendo com um gladiador pouco destro e com mão trêmula, viu-se obrigada ela mesma a levar a espada à própria garganta, indicando o lugar onde deveria ser cortada e assim foi feito.” P. 185.

O quinto capítulo fala sobre as mulheres do deserto, viúvas, diaconisas. São Ama Sara, Princípia, Ama Sinclética, Marcela, Fabíola, Olímpia. Todas elas deram grandes contribuições para o crescimento do cristianismo, doando seus bens, tempo e dedicando suas vidas a ajudar os mais pobres. Mulheres desprendidas, que não se importavam mais com as coisas desse mundo, mais almejavam agradar o seu deus, para alcançar o mundo vindouro.  Até os pais da igreja Jerônimo e João Crisóstomo tinham grande apreço por algumas dessas mulheres, reconhecendo o inestimável valor delas no seio da comunidade cristã. Sobre a sede de conhecimento de Marcela, o livro tem a dizer:

“A insaciável curiosidade intelectual era o que mais havia de admirável em Marcela. Ela tinha fé, mas desejava conhecimento, e o desejava da fonte mais confiável. Jerônimo, um dos principais nomes do cristianismo, era procurado por ela seguidamente com as questões mais difíceis. Marcela conhecia grego e adquiriu reputação por sua exegese bíblica detalhada e literal.” P. 214.  

O capítulo sexto traz mais histórias de mulheres desprendidas, em que algumas abraçaram o celibato, a vida contemplativa e se entregaram completamente a causa da igreja. Macrina (irmã dos pais capadócios Gregório de Nissa e Basílio de Cesareia), Mônica (mãe de Agostinho), Melânia (a anciã), Paula e Eustóquia. A Vulgata Latina, famosa tradução da Bíblia, teve a participação de duas dessas mulheres.

“Paula e Eustóquia foram companheiras fieis de Jerônimo. Ele ensinava latim para as crianças do povo, grego e hebraico para as monjas e elas, que já dominavam as línguas bíblicas, tornaram-se suas secretárias, ajudando-o em sua tradução da Bíblia para o latim, conhecida como a Vulgata.” P. 282.

O derradeiro capítulo revela-nos as peregrinações de duas mulheres que se destacaram em sua época – Egéria e Melânia (a jovem). Egéria foi uma itinerante, visitando os lugares das histórias bíblicas, meditando e orando com os monges cristãos com os quais se deparava. Melânia (a jovem) tornou-se monja, e fundou monastérios (feminino e masculino). Era muito rica e abriu mão de toda a sua riqueza, investindo o seu dinheiro a causa cristã. Quanto a Egéria, grande foi a sua contribuição na descrição dos lugares que visitou:

“O que diferencia Egéria de outros peregrinos de sua época é exatamente essa descrição de seu itinerário, que é uma das mais antigas narrativas de viagens aos lugares santos da Palestina. [...] Mesmo não sendo uma escrita clássica, a autora escreveu de forma direta e espontânea, com abundância de detalhes e descrições não só de lugares, mas de pessoas e liturgias.” P. 301-302.

Livro muito bom. Uma obra muito proveitosa para quem gosta de estudar a história da igreja cristã. 

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