sábado, 18 de março de 2017

A Bíblia e a Arqueologia


RICHELLE, Matthieu. A Bíblia e a Arqueologia. São Paulo: Vida Nova, 2017.

A Bíblia é um livro religioso alicerçado na história. Pelo menos, numa leitura normal e simples do texto, fica muito fácil ver assim. Ela menciona cidades, reis, costumes, impérios... Egito, Babilônia, Pérsia, Assíria... Seriam suas aventuras registradas naquilo que chamamos de Antigo Testamento factualmente fundamentadas na história? A Ciência da Arqueologia pode nos fornecer conhecimentos complementares sobre o texto bíblico? Os Arqueólogos têm algo a dizer sobre a veracidade ou inveracidade histórica sobre os vários eventos que aparecem nas páginas do texto sagrado? A Arqueologia confirma ou nega a Bíblia? Seria correto incorrermos nessa bifurcação? Ou o trabalho arqueológico é muito mais complexo do que essa formulação simplista de ou A ou B?   

Matthieu Richelle, Ph.D em Ciências Históricas e Filológicas na EPHE-Sorbonne, assevera que a Arqueologia não funciona nos limites desse maniqueísmo. As ferramentas de pesquisa dos Arqueólogos para decifrar os artefatos das antigas civilizações, podem ajudar na compressão do texto bíblico. Mas como é dito, a natureza dos achados é muito fragmentária. Os pesquisadores só têm acesso a uma porção ínfima dos artefatos. E eles ainda precisam ser datados, decrifrados e interpretados. Eis um desafio hercúleo para os estudiosos.  Não é nada fácil construir um conhecimento razoavelmente crível sobre os povos antigos. Deduções, induções, especulações, subjetividades, pressupostos metafísicos e metodológicos, estão a todo o momento no trabalho dos especialistas.

“Por mais empolgante que seja a descoberta de novos textos, seria ilusão pensar que é possível lê-los com facilidade. Nos casos das inscrições com caracteres cuneiformes, os especialistas podem encontrar até seiscentos sinais, cada um podendo ainda representar várias sílabas e ideais distintas. Mesmo os textos conservados em escrita alfabética (entre vinte e trinta sinais em geral) podem mostrar-se muito difíceis de decifrar. A tinta pode ter desaparecido em boa parte dele ou ter se misturado com manchas escuras. Os traços de textos cursivos, escritos rapidamente para registrar informações ou mensagens do cotidiano, não são mais fáceis de ler do que uma prescrição médica e exigem um olho bem treinado! Às vezes, é preciso utilizar um programa de tratamento de fotos no computador, modificar o contraste e as cores, para revelar a silhueta de uma letra.” P. 76.

Por essas e outras, deve-se ter muita cautela quando a mídia divulga uma descoberta muito importante e, que revolucionará o conhecimento naquela área. Em não poucas ocasiões há sensacionalismo em jogo.

“Por vezes, a mídia difunde prematuramente uma análise que em seguida se mostra errônea”. P. 79.

As próprias hipóteses feitas pelos Arqueólogos com frequência mostram-se falhas e inadequadas. Esquadrinhar o passado nunca foi fácil.

“Arqueólogos, portanto, propõem regularmente interpretações sedutoras, mas basta esperar alguns meses ou alguns anos para que apareçam outras análises, mais sóbrias e frequentemente mais justas.” P. 90.

A metodologia empregada está sempre mudando, evoluindo – isso contribui para que visões antes estabelecidas possam ser solapadas ou modificadas por novos paradigmas e olhares sobre as escavações.

“[...] os métodos progridem constantemente e, quando os arqueólogos, releem os relatórios de escavações realizadas há décadas, constatam que os protocolos de seus predecessores estão longe de satisfazer aos parâmetros científicos atuais. Ora, uma escavação é um ato de destruição, e não é possível voltar no tempo. Às vezes, os dados não registrados corretamente ou eram mal interpretados”. P. 97-98.

Depois de nos guiar pelas dificuldades intrínsecas do labor arqueológico, Richelle conclui:

“Diante de todos esses limites, a esperança que muitos têm na arqueologia às vezes se mostra ilusória. De tempos em tempos, mesclam-se a ela a má fé ou a ignorância. [...] Nesse tipo de situação, uma dose de subjetividade inevitavelmente entra em jogo na interpretação, segundo os pressupostos de cada um.”

“Por ora, é preciso concluir que, por mais impressionante que seja a luz lançada pelas descobertas materiais sobre a Bíblia, os limites da pesquisa arqueológica não são menos consideráveis. Isso não deve diminuir o fascínio que a disciplina legitimamente suscita, mas, sim, instigar o desejo de esclarecer essa paixão por meio de uma atitude prudente, o que tornará a pesquisa mais científica.” P. 99, 100. 

Estando cientes do caminho nada fácil que os especialistas têm que trilhar - em que pé estão às escavações concernentes aos relatos históricos da Bíblia? A ciência arqueológica confirma ou nega as histórias bíblicas, ou seria melhor abordar a questão de outra maneira, sem entrarmos nessa dicotomia?

“[...] Por um lado, se é normal que aqueles que atribuem importância à veracidade da Bíblia se alegrem com descobertas que a confirmem (e há muitas), não existe nenhuma razão para crer que os sítios sejam ‘reservatórios de confirmações, como se os vestígios existissem para conservar lembranças dos relatos bíblicos. [...] É, pois, totalmente ilusório pensar que se pode ‘provar a Bíblia’, por meio das descobertas feitas nas escavações, e é possível ser enganado em vão. Não somente nada garante que os vestígios e as inscrições que forneceriam uma confirmação de cada fato ou eventos bíblicos tenham sido preservados pelo tempo, mas também é bem evidente que jamais será possível verificar cada elemento dos relatos bíblicos, a começar pelos diálogos de seus personagens!” P. 106, 107.

Nos capítulos finais, o autor dá uma atenção especial às teses levantadas pelo respeitado Arqueólogo Israel Finkelstein (Professor da Universidade de Tel Aviv), em seu livro A Bíblia Desenterrada, que em português, a editora que não foi nenhum pouquinho besta, traduziu por A Bíblia Não Tinha Razão, um contraponto claro ao livro E a Bíblia Tinha Razão, do Jornalista Werner Keller, lançado ainda na década de 1970. Em seu livro, Finkelstein reduz a Bíblia a uma coletânea de livros que têm pouca relevância do ponto de vista histórico. Li o tal livro há uns dez anos ou mais. Richelle vem nos dizer que as ideias levantadas por ele, têm pouca aceitação entre os seus pares. A grande massa dos Arqueólogos e outros estudiosos não apoiam as conclusões do Finkelstein. E muitos deles não são cristãos e nem judeus ortodoxos, que em teoria, estariam ávidos por confirmar as histórias do Antigo Testamento.

“[...] praticamente todos os arqueólogos, experientes e novatos, que trabalham com a Idade do ferro, rejeitaram sua redatação como algo infundado”. P. 134. – Ziony Zevit, Ph.D na Universidade de Berkeley, na Califórnia, e ex-Professor da Universidade Hebraica de Jerusalém.

“Essa obra [A Bíblia Desenterrada], geralmente bem traduzida e de leitura agradável, visa a um público amplo, sobre o qual exerce a sedução de ser apresentada como ‘provada’ pela arqueologia. O especialista, porém, não se sente muito à vontade diante de tanta certeza, por um lado porque conhece os debates atuais acerca de certos dados da arqueologia material – em particular acerca da arqueologia dos séculos 9 e 10 – e, por outro, porque se espanta com tomadas de posição categóricas por parte de arqueólogos no domínio da crítica literária e da história da redação de textos.” P. 135. - André Lemaire, Historiador, Epigrafista e Diretor da Escola Prática de Altos Estudos, na França.

Alguns especialistas são citados, para corroborar a historicidade da Bíblia:

“Temos um nível regular de boas correlações, com base em fatos, desde aproximadamente 2000 a.C. (com raízes mais antigas) até 4000 a.C. Do ponto de vista da confiabilidade geral, [...] o Antigo Testamento se sai muitíssimo bem, desde que seus escritos e escritores sejam tratados de maneira justa e imparcial, de acordo com dados independentes, disponíveis a todos.” P. 122. – Kenneth Kitchen, Egiptólogo e Professor da Universidade de Liverpool.

“Não existe no momento nenhum caso em que uma inscrição extrabíblica tenha demonstrado que o relato bíblico de algum evento do começo do primeiro milênio antes de nossa era seja completamente falso.” P. 127. - Eric H. Cline, Arqueólogo, Ph.D em História Antiga na Universidade da Pensilvânia.

“Cada vez que uma inscrição menciona um rei de Israel ou de Judá, ela concorda com o texto bíblico; as inscrições que têm alguma relação com o texto bíblico não fornecem nenhum caso de contradição. [...] Afirmamos que nenhuma descoberta arqueológica se opõe de modo indiscutível a uma afirmação do Antigo Testamento.” P. 127. – Alan Milard, Professor na Escola de Arqueologia da Universidade de Liverpool.

Afirmações contundentes!

Em termos gerais, Richelle afirma que a Bíblia está em uma boa situação segundo a maioria dos Arqueólogos. Mas ele reitera várias vezes para os mais entusiasmados que tenham cuidado. A Arqueologia não prova a Bíblia! Mostra apenas que muitas de suas histórias são factuais. O labirinto do minotauro realmente existe, mas isso não quer dizer que um minotauro real tocava o terror aos infelizes que porventura, caíssem naquele lugar.

Tudo depende de como olhamos o Antigo Testamento. Olhamos para ele como livro inspirado pelo divino e inerrante? Se sim, então é impossível pensar na possibilidade de que ele contenha algumas incongruências históricas. Não seria justo, adequado e, até seria um pecado, vê-lo como impreciso em seus registros, segundo a visão dos crédulos.

A visão que temos dele é de um livro sujeito a todo tipo de erro, como qualquer outra literatura? Se a resposta é positiva, não tem porque pensarmos que a Arqueologia sempre o confirmará. O Arqueólogo pode ir a campo, aberto a todas as possibilidades – seja admitindo que o texto está se provando factível; ou considerando o texto impreciso, segundo o que as escavações revelam. Prefiro esta segunda opção.

Citando uma segunda vez essa fala do Richelle:

“Arqueólogos, portanto, propõem regularmente interpretações sedutoras, mas basta esperar alguns meses ou alguns anos para que apareçam outras análises, mais sóbrias e frequentemente mais justas.” P. 90.

Isso vale para todos: crentes e descrentes.

quinta-feira, 16 de março de 2017

Pecar e Perdoar


KARNAL, Leandro. Pecar e Perdoar. Rio de Janeiro; Nova Fronteira, 2014. (Versão em PDF).

Karnal (Ph.D em História na USP) era um cara que eu sempre via o povo comentar – amando-o ou o seu contrário. Como hoje as pessoas têm a mania chata de politizar tudo e todos, o Historiador careca, é claro, não escapou das adjetivações negativas daqueles que se auto-intitulam conservadores de direita; e dos que se auto-proclamam esquerdistas, o Professor da Unicamp, que antes era um intelectual recomendado, amado e aplaudido, agora já não é mais visto assim, pois não seguiu a cartilha ditada por eles, quando postou uma foto com o juiz Sérgio Moro.  

Fora dessas classificações, que considero pífias na maioria das vezes, só tenho elogios até o momento sobre esse autor. Escreve muito bem; é articulado no falar; expõe ideias e conceitos com bastante clareza e lucidez; e é um escritor bastante ético e comprometido em não ofender os seus leitores, por mais que isso seja impossível com os mais fundamentalistas, seja no espectro político ou religioso.

Karnal faz um esplendoroso passeio pelos elementos que estão incrustrados na tradição e teologia cristã. Perdão, pecado, orgulho, gula, inveja, sexo, virtude, oração, jejum, penitência... Às vezes pensei que estava diante de um pastor/padre habilidoso explicando as escrituras, dado ao seu conhecimento e respeito em lidar com temas religiosos, mesmo ele sendo ateu.

Grifei um terço do livro. Explanações fantásticas. Karnal além de exímio conhecedor da religião cristã mostra-se um ilustre conhecedor do comportamento humano. Repetindo: em certos momentos, parecia que estava diante de um pastor ou padre explicando com maestria as escrituras.

Ainda no comecinho, Karnal admite que o ateísmo, e não só a religião, matou milhões de pessoas. Isso é importante vindo de um Historiador ateu, visto que muitos neófitos do lado materialista batem o pé negando que houve assassinatos em massa em nome do pensamento ateísta.

“Se a Espanha ultracatólica matou milhares em nome de Deus na Idade Moderna; a União Soviética e a China de Mao mataram milhões em nome da racionalidade ateia e ‘científica’, ateus e religiosos já não podiam se apresentar para o debate de mãos limpas”. P. 11.

Fazendo um tour pelas histórias da Bíblia, Karnal dá um show de sabedoria em refletir sobre os mandamentos, regras, códigos, normas, leis divinas, conversas entre Deus e os homens e pecados. Adão, Eva, Noé, Satanás e sua queda...

A vida dos monges e místicos, como Santo Antão, Francisco de Assis, Inácio de Loyola, Tereza d´Ávila , e suas relações com Deus, com a moral religiosa, não passam despercebidas.

Falando sobre o moralismo, Karnal acerta na mosca:

“A identidade do moralista é construída no orgulho de não ser pecador. O moralista legisla contra o pecador, mas legisla para obter sua identidade. Aquele que faz regras, aquele que multiplica procedimentos, anseia pelo erro e pela infração da sua regra”.  P. 22.

E não é exatamente assim que ocorre, entre os donos da virtude e da moral? Orgulham-se de não estarem no time dos “pervertidos”. Corra para uma igreja, principalmente se ela for evangélica, e verás um exército de crentes vaidosos, por terem se “libertado” da vida de pecados. Eles adoram acusar a sociedade de seus supostos erros contra o divino. 

“Assim, ao ver um tuberculoso ou um portador de HIV, o moralista poderia, com prazer secreto pouco disfarçado, sorrir em paz porque o castigo do pecador era sua redenção moralista. [...] Estou indicando que a moral só se realiza, o código só é vitorioso e a norma só triunfa com a existência do infrator”. P. 22-23.

Karnal fala uma grande verdade, um pouco a frente:

“Se olharmos a história do Cristianismo, não seria errado indicar que o movimento que busca Jesus de Nazaré como fundador foi vitorioso, em parte, porque se afastou de Jesus de Nazaré. A vitória das instituições religiosas foi a vitória dos fariseus: a regra, as penitências, a aparência”. P. 25.

“Um alienígena que olhasse à distância estelar o desenvolvimento dos Cristianismos, diria que eles são um fracasso em relação à síntese que Jesus deu para os mandamentos. Amar ao próximo como a si mesmo? A Inquisição católica, a carta de Lutero recomendando matar os judeus, os calvinistas enforcando supostos feiticeiros em Salém: a história cristã é, basicamente, uma história de crimes. Acima de tudo, é uma história institucional de negação da solidariedade e da compaixão. O alienígena teria apoio amplo entre ateus e antirreligiosos deste planeta.” P. 43.

Ele está certo mais uma vez. Não é difícil constatarmos tal assertiva. Basta olharmos ao redor e vermos o comportamento das várias igrejas existentes. E voltarmos nossos olhares para o passado da igreja católica e da igreja protestante - veremos um amontoado de incongruências, busca pelo poder, matanças de inocentes e todo tipo de barbaridades. Os crentes, sejam católicos ou evangélicos, naturalmente e (muitas vezes) desonestamente, amenizarão os crimes de suas respectivas tradições de fé. Mas os fatos estão aí. Os fariseus ganharam. Com isso não quero dizer que sou contra as instituições religiosas, apesar dos pesares, elas cumprem um papel social importante, pois existem pessoas sérias e honestas, dispostas a ajudar e fazer do mundo, um lugar melhor para se viver. Karnal também vê dessa maneira. O fato de a cristandade ter um histórico de violência, não quer dizer que coisas boas também não existiram ou existem.

“Todos somos inquisidores. Eu que escrevo e você que me lê. Amamos legislar e indicar certo e errado. Além do pecado, legislar parece ser um dos maiores deleite s humanos. Legislar é indicar o quanto eu estou certo”. P. 26.

Arrisco dizer que o moralista religioso é o pior tipo de inquisidor. Talvez, devido ao atual contexto, poderia incluir também o moralista político. 

Entrando no terreno do pecado, porque pecamos? Por que fazemos coisas que sabemos estarem erradas?

“Aqui está uma parte fascinante do pecado. No plano cósmico e eterno, por que um ser inteligente como Lúcifer começa uma empreitada sem chance de êxito? No plano cotidiano e banal, por que eu como o que não devo, ou fumo, ou enfrento uma briga de trânsito? A resposta tentadora e fácil sai na hora: porque é bom. Bacon frito é melhor do que alface. Rebelião dá mais adrenalina do que submissão. O gosto do prazer imediato nubla a perspectiva do futuro. Peco porque erro o tempo: aposto no aqui e agora e desprezo o futuro distante. Miopia cronológica? Talvez.” P. 47.

Concordando com o autor de Eclesiastes, karnal diz que todos somos vaidosos e orgulhosos. Não tem escapatória. Até a virtude tem a sua vaidade. Vaidades das Vaidades. TUDO é Vaidade.

“O orgulho do bem: a vaidade da mulher virtuosa que olha para a adúltera; o sentimento de superioridade do político honesto diante do colega corrupto; o desdém vaidoso do aluno que estudou ao observar o colega que pratica fraude em uma prova. Há algo de profundamente vaidoso na virtude. O orgulho é, de longe, o primeiro e mais universal pecado”. P. 52.

O pecado principal, originador de todos os outros é o Orgulho.

“É o primeiro e mais vasto pecado e um que entra em todos os outros. Há orgulho em todos os pecados e também na maioria das virtudes”. P. 54.

Sobre o pecado da inveja, Karnal fala de forma majestosa sobre ele. O pecado do qual todos nós não admitimos que temos. Mas na realidade o cometemos diariamente. Não temos muito problema ou constrangimento de dizermos que somos orgulhosos e tal. Todavia, quem de nós admite que é invejoso?

“A inveja é um pecado envergonhado. Há quem bata no peito e diga que vive para o sexo, ou para a comida, ou para a vaidade estética. Mas, confesse meu caro leitor, você já encontrou alguém que diga que é muito invejoso? Já esbarrou com uma pessoa que reconheça que não pode ver a felicidade alheia que já cai em dor mortal como todo invejoso?” P. 57.

Fantástico o trecho a seguir:

“Invejar é ter dor pela felicidade alheia. O que me incomoda não é, exatamente, o que o outro tem, mas o quanto ele é feliz com isso. Não quero a casa do outro, mas fico incomodado como ele vive bem nela. Não invejo o corpo em si, mas o sucesso que o corpo dele faz. Não quero ter o que você tem, mas me perturba mortalmente que você o tenha”. P. 57.

“A inveja nunca é positiva. Eu não reconheço que o que você tem nasceu de algum esforço ou de algum acaso feliz. Apenas me incomoda sua alegria. Seu riso, seu sucesso, sua felicidade são chicotes nos meus ouvidos. Por isso a inveja é envergonhada: invejar é reconhecer-se inferior, ser menos do que alguém.” P. 58.

“O invejoso, em vez de olhar para si e para seu universo, vê apenas o outro. O invejoso é um cego espiritual, um míope ao menos, incapaz de se olhar, apenas se compara com o mundo externo. O centro do olhar do invejoso é o outro. Em linguagem moderna, falta psicanálise ao invejoso; ele não tem senso crítico sobre si e nem conhecimento das suas motivações. Em linguagem filosófica, o invejoso não cumpre o mandamento socrático de conhecer a si mesmo.” P. 58

“Qual é a raiz da dor causada pela inveja? Ela dói porque ela me reconhece menos. O que o outro parece conseguir de forma tão fácil, eu não consigo ou não tenho. Todos ao meu redor parecem mais leves. Comigo as coisas sempre parecem mais pesadas. A inveja dói porque me exclui dos eleitos e me coloca em um círculo nublado e opaco, ela aumenta minha solidão. Dói por dois lados: eu não sou assim e o outro é. Isso me diminuiu e exalta o outro. A inveja compara, amarga, envenena e pesa. Corrói como ácido fraco, pois não queima imediatamente e de forma total, mas desgasta pingando do teto do ressentimento uma estalactite aguda sobre mim.” P. 58.

Ele desnuda a alma humana. Parece um Psicólogo falando.

“Dourar a pílula da inveja é algo fortemente tradicional. Temos um arsenal analítico a nosso alcance. Não invejo seu corpo, apenas acho que você é superficial e se dedica mais ao físico. Assim, minha inveja vira virtude e eu sou uma pessoa profunda. É mais fácil do que reconhecer que, além de invejoso, tenho corpo ruim. Você é um político populista; eu digo a verdade aos meus eleitores, por isso não tenho tantos votos. Ou seja, você foi eleito e eu, não. Você é obsessivo com trabalho e não valoriza as coisas simples da vida. Em outras palavras: você ganha mais do que eu.” P. 62.

Somos todos invejosos – em maior ou menor escala. Lendo isso, sei o quanto invejo as pessoas, sejam elas amigas, colegas, apenas conhecidas e etc.

Se antes os monges sacrificavam sua carne, almejando agradar a Deus, se privando de muitos prazeres, hoje também sacrificamos nossos corpos, não mais para agradar a divindade, mas tendo em vista coisas mundanas. Trocamos o transcendente pelo imanente. A humanidade continua a sua saga em disciplinar os corpos - cada época visando finalidades distintas. Aniquilamos nossos desejos momentâneos, com vistas a um bem “maior”.

“É interessante notar como hoje, em período de tão forte descristianização nas cidades ocidentais, a domesticação do corpo esteja ainda em alta. Sacrifícios, dietas, exercícios, tudo vale nesta nova moral estética.

Os homens medievais cravaram cilício na carne, espinhos pontiagudos para castigar o domínio corporal. Os homens contemporâneos correm em uma esteira até se esgotarem. Os homens morais comiam pouco para jejuarem e demonstrarem como amavam a Deus. Os contemporâneos comem pouco para reduzirem sua taxa de gordura. Os homens de outrora perdiam parte dos prazeres da vida para terem acesso ao almejado prazer da eternidade. Nós, agora, abrimos mão de muitos prazeres pelo prazer da disciplina, da admiração física e que exaltem nossa contínua capacidade de disciplina e empenho. Na Idade Média, todo esse sacrifício chamava-se fé. Hoje, é mais comum que denominemos autoestima, empreendedorismo e coaching”.  P. 87.

Agora falando sobre o tormento mortal que ocorre no mundo cerebral dos cristãos mais convictos, eis mais uma verdade:

“Um elemento complicador faz da renúncia uma tarefa interpretativa e interessante. A possibilidade de Satanás entrar na alma de alguém e lhe dar pensamentos e desejos é tão real como a de Deus fazer a mesma coisa. Surge assim um problema: como distinguir pensamentos e desejos satânicos dos pensamentos e desejos divinos? Essa incerteza passa a atormentar os cristãos e fazer com que qualquer coisa que aconteça em seu corpo e em sua alma seja objeto de um implacável crivo interpretativo”. P. 105.

E gostem ou não, os mais convictos apologistas, o cristianismo, ou cristandade, como alguns preferem, apesar de ter trazido coisas boas para a civilização, também, graças às deduções teológicas de seus líderes, retardou certos benefícios médicos para a sociedade.

“Em um livro célebre, Stephanie Snow mostrou como a religião — mais especificamente, o Cristianismo — contribuiu para retardar a aceitação do uso de anestesia para aliviar a dor e o sofrimento dos pacientes. Na introdução do livro, ela afirma: ‘Na teologia cristã, a dor entrou no mundo após a desobediência de Eva no Jardim do Éden e permaneceu central para a humanidade.’ Em uma estrutura cristã, o sofrimento durante o parto, por exemplo, era considerado um lembrete necessário e permanente do pecado de Eva. A citação bíblica ‘Multiplicarei grandemente a sua dor na gravidez; com sofrimento você dará à luz filhos’ (Gênesis 3:16), era usada como um argumento para que o uso de éter ou clorofórmio fossem proibidos no parto. Era comum se acreditar que evitar a dor era agir contra a vontade de Deus, e isso teria impedido a imediata aceitação da anestesia”. P. 105.

Sobre a oração, Karnal tem isto a dizer:

“A oração funciona? Tenho certeza que, na maioria dos acidentes graves da aviação, muitas pessoas fizeram um sinal da cruz ou, ao menos, gritaram “meu Deus!”. E os aviões caíram. Suponho, igualmente, em todos os hospitais do mundo, religiosos de todos os credos fizeram preces por entes queridos que agonizavam e esses paciente morreram. Não é estatística, mas é algo possível de imaginar: de cada cem pacientes terminais ou casos graves e irreversíveis de doenças, digamos que um ou dois tiveram uma recuperação milagrosa, não explicável. Para a maioria absoluta, o milagre não ocorre. Se fosse uma medicação, a prece seria considerada, matematicamente, ineficaz. Mas continua sendo feita.” P. 164-165.

Ele está errado? Não, não está. Mas continuamos a orar. Pode até ser uma vez perdida, mas sempre dirigimos nossas preces para o alto, esperando alguma ajudinha de lá.

Paro por aqui. O livro é extraordinário. Karnal tem uma sabedoria ímpar em escrever.

segunda-feira, 6 de março de 2017

Raízes Sagradas


Nesse documentário de pouco mais de uma hora, um dos líderes e mente intelectual do terreiro, diz que o Candomblé praticado hoje, não é o Candomblé praticado há 50 ou 100 anos. Houve uma evolução (mudança) em como se cultua os deuses africanos. Talvez isso incomode os mais "puristas". Mas é assim em todas as religiões. O Cristianismo praticado hoje pelas diversas instituições e igrejas, não é o Cristianismo do século I. As contingências histórico-sociais vão moldando aos poucos cada prática e crença religiosa.

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O vídeo também trata dos muitos elementos que distingue essa manifestação fetichista, como por exemplo, a lendária figura de Exu, tão demonizada e temida por aqueles que não fazem parte, ou não conhecem as doutrinas da religião africana. É reiterado com clareza: Exu não é o diabo! Não se fala em diabo no Candomblé. Não existem demônios em sua cosmogonia. Existe Olorum, Deus supremo; os orixás, forças personificadas da natureza, e que interagem com os seres humanos; espíritos dos mortos, porém o Candomblé de raiz, segundo seus adeptos, não trabalha com eles.

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Outro entrevistado adverte: o Candomblé não é para todos. Tem pessoas que serão curadas e terão um destino feliz na igreja evangélica; outras no catolicismo; e outras na religião africana. Deus determina o caminho de cada uma. É um discurso pluralista e mais conciliatório. Evangélicos, sobretudo, de posicionamento pentecostal, têm uma visão bem antagônica a essa: cultos africanos são demoníacos e opressores – as pessoas que estão envolvidas neles, precisam urgentemente abandonarem essas práticas de feitiçaria e procurarem o mais rápido possível um templo cristão, obviamente uma igreja evangélica pentecostal/neopentecostal, para se libertarem dos espíritos das trevas que atuam nesses terreiros. Libertados, agora trocarão o transe dos orixás ou influência deles, pela busca pelo batismo (transe) do (ou com) Espírito Santo, falando nas línguas dos anjos.

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E qual a importância dessa religião para o mundo? Um exemplo é a própria culinária. As famosas e deliciosas moquecas, e tantas outras comidas africanas, saíram dos terreiros para o mundo. Eram comidas feitas para os orixás, que ganharam as nossas mesas, e ganharam o nosso apreço e paladar.

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Um outro tema abordado é o transe. O que acontece com o indivíduo que irá incorporar? Como ele se sente antes, durante e depois? Ele se lembra do que fez? Tem controle sobre os movimentos e danças que faz?

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Rico documentário!

sexta-feira, 3 de março de 2017

A Infelicidade do Século


BESANÇON, Alain. A Infelicidade do Século. São Paulo: Bertrand Brasil, 2000.

“O desacordo tem a ver com o que este século tem de mais característico em relação aos outros: a extraordinária amplitude do massacre de homens feito por homens, que só foi possível pela tomada do poder pelo comunismo de tipo leninista e pelo nazismo de tipo hitlerista. Esses ‘gêmeos heterozigotos’ (Pierre Chaunu), ainda que inimigos e originários de histórias diferentes, têm vários traços em comum. Eles se colocam como objetivo chegar a uma sociedade perfeita, destruindo os elementos negativos que se opõem a ela. Eles pretendem ser filantrópicos, pois querem, um deles, o bem de toda a humanidade, o outro, o do povo alemão, e esse ideal suscitou adesões entusiásticas e atos heróicos. Mas o que os aproxima mais é que ambos se dão o direito – e mesmo o dever – de matar, e o fazem com métodos que se assemelham, numa escala desconhecida na história.” P. 05.

Besançon (Diretor de estudos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris) é um ex-comunista. Tornou-se um crítico mordaz da ideologia marxista. Ao longo do seu livro, termos como comunismo e socialismo, são usados de forma intercambiáveis. O que certamente gera discórdia entre aqueles que dizem que o comunismo enquanto tal, não foi concretizado nos regimes socialistas totalitários dos séculos XX e XXI. Alguns ainda estão à espera do socialismo marxista ganhar status real em algum lugar por aí.

A obra de Besançon é um lamento pelo “esquecimento” e apaziguamento dos crimes perpetrados pelo comunismo soviético. O nazismo passa com razão, por uma situação de hiperamnésia (lembrança de algo com muita intensidade e frequência). Já o comunismo soviético que terminou sua abjeta história há tão pouco tempo (ele escreveu esse livro em 1997), não é tão mal visto como o nazismo, pela sociedade e intelectuais. Há uma anistia injustificável.

“O nazismo, apesar de completamente desaparecido há mais de meio século, é, com razão, objeto de uma execração que não diminui com o tempo. A reflexão horrorizada sobre ele parece até aumentar a cada ano em profundidade e extensão. O comunismo, em compensação, apesar de muito mais recente, e apesar inclusive de sua queda, se beneficia de uma amnésia e de uma anistia que colhem o consentimento quase unânime, não apenas de seus partidários, pois eles ainda existem, como também de seus inimigos mais determinados e até mesmo de suas vítimas. Nem uns nem outros se acham com direito de tirá-lo do esquecimento. Acontece às vezes que o caixão de Drácula se abre. Foi assim que, no final de 1997, uma obra (O livro negro do comunismo) ousou calcular a soma dos mortos que era possível atribuir-lhe. Propunha-se uma cifra de 85 a 100 milhões. O escândalo durou pouco e o caixão já se fecha, sem que, no entanto, essas cifras tenham sido seriamente contestadas.” P. 05.

A ideologia do nazismo e do comunismo seriam semelhantes?

“Pode-se, de fato, comparar o comunismo com o nazismo como duas espécies do mesmo gênero, o gênero ideológico. A sedução, a natureza e o modo de seu poder, o tipo de seu crime, vinculam-se à formação mental de que eles dependem inteiramente: a ideologia. Eu entendo por essa palavra uma doutrina que promete, por meio da conversão, uma salvação temporal, que se pretende conforme a uma ordem cósmica decifrada sistematicamente em sua evolução, que impõe uma prática política que visa a transformar  radicalmente a sociedade”.P. 06.

Besançon explora as etapas do extermínio do nazismo e comunismo, que eram basicamente estes:

- a expropriação;
- a concentração;
- as “operações móveis de assassinato”;
- a deportação;
- os centros de extermínio.

A exemplo dos regimes socialistas atuais, como a Coréia do Norte, a fome foi uma das grandes características da URSS.

“A fome é, na maior parte do tempo, uma consequência da política comunista. É da essência dessa política estender seu controle à totalidade de seus súditos. [...] Não se pode, no entanto, dizer que o poder deseja a fome como tal, mas é o preço que ele aceita pagar para atingir seus objetivos políticos e ideológicos. No Cazaquistão, a população caiu pela metade. [...] Consentida como meio ou desejada como fim, a fome foi o procedimento mais mortífero da destruição comunista das pessoas. Ela responde por mais da metade dos mortos imputáveis ao sistema na URSS, e por três quartos, talvez, na China.” P. 16.

O comunismo subverteu todos os valores morais construídos pela humanidade.

“Eu chamo de moral natural ou comum aquela à qual se referem os sábios da Antiguidade, e também os da China, da índia ou da África. No mundo constituído pela Bíblia, essa moral é resumida na segunda tábua dos mandamentos de Moisés. A ética comunista opõe-se a ela de forma frontal e muito consciente. Ela se propõe a destruir a propriedade e, com ela, o direito e a liberdade que se vinculam a ela, e reformar a ordem familiar. Ela se dá o direito de todos os meios de mentira e de violência para derrubar a velha ordem e fazer surgir a nova. Ela transgride abertamente, em seu princípio, o quinto mandamento ('honrarás pai e mãe'), o sexto ('não matarás'), o sétimo ('não cometerás adultério'), o oitavo ('não roubarás'), o nono ('não darás falso testemunho contra teu próximo') e o décimo ('não cobiçarás a mulher do próximo').

Não é absolutamente necessário crer na revelação bíblica para aceitar o espírito desses preceitos que se encontram em todo o mundo. A maioria dos homens considera que existem comportamentos que são verdadeiros e bons porque correspondem ao que eles conhecem das estruturas do universo. O comunismo concebe um outro universo e vincula a ele sua moral. É por isso que ele recusa não só os preceitos, mas também seu fundamento, o mundo natural. Dizíamos que a moral comunista baseia-se na natureza e na história; é falso. Baseia-se numa supernatureza que não existe e numa História sem verdade.” P. 26.

Besançon não faz vista grossa a realidade cruel que foi o socialismo da URSS:

“O humano e o humanitário não têm nem direito nem futuro. As classes não se reconciliam, elas desaparecem. A sociedade não se torna homogênea, ela é destruída em sua autonomia e em sua dinâmica própria. Não é o proletariado que faz a guerra ao capitalismo, é a seita ideológica que fala e age em seu nome.” P. 27.

Dos dois regimes, comunismo e nazismo, qual a ideologia mais abjeta?

“Não é possível decidir qual o mais demoníaco: destruir uma pseudo-raça, inclusive a “superior”, porque elas são todas poluídas; ou destruir uma pseudoclasse e, depois, sucessivamente, as outras, todas contaminadas pelo espírito do capitalismo”. P. 27.

“Por ter estudado um e outro, conhecendo também os auges em intensidade no crime do nazismo (a câmara de gás) e em extensão do comunismo (mais de 60 milhões de mortos), o gênero de perversão das almas e dos espíritos operado por um e por outro, creio que não se pode entrar nessa discussão perigosa, que é preciso ser respondida simples e firmemente: sim, igualmente criminosos.” P. 69.

Mas noutro aspecto, Besançon reconhece que o comunismo é mais degradante que o nazismo, visto que mesmo diante de milhões de mortos em suas costas, ainda assim, os comunistas de carteirinha não têm arrependimento algum por tudo que aconteceu no regime. Eles apenas lamentam que o comunismo infelizmente não deu certo. Caso tivesse tido o sucesso almejado por Lênin e associados, essas mortes teriam valido a pena, pois um novo mundo com um futuro brilhante e sem divisão de classes, teria sido criado. Lamentavelmente esse foi o pensamento de um dos maiores Historiadores do século passado, Eric hobsbawm. Isso só mostra o quanto uma ideologia maléfica pode contaminar a mente de uma pessoa, sendo ela intelectual ou não.

O dogmatismo cego prejudica a capacidade de raciocinar não apenas dos religiosos fanáticos, mas de muitos intelectuais e acadêmicos. Infelizmente esse foi o caso desse Historiador. Para ele, tudo vale, até a morte de milhões de pessoas, contanto que sua ideologia política seja estabelecida.
 

“O comunismo é mais perverso que o nazismo porque ele não pede ao homem que atue conscientemente como um criminoso, mas, ao contrário, se serve do espírito de justiça e de bondade que se estendeu por toda a terra para difundir em toda a terra o mal. Cada experiência comunista é recomeçada na inocência.”P. 32.

Mais algumas facetas do que foi o comunismo:

“Todo governo comunista fecha as fronteiras, esse é um de seus primeiros atos. Os nazistas, até 1939, autorizavam as partidas, a troco de resgate. A “pureza” da Alemanha ganhava com isso. Mas jamais os comunistas. Eles têm necessidade do fechamento absoluto das fronteiras para proteger o segredo de suas matanças, de seu fracasso; mas, sobretudo, porque o país supostamente se tornou uma vasta escola em que todos devem receber a educação que extirpará o espírito do capitalismo e filtrará, em seu lugar, o espírito socialista.

O segundo passo é controlar a informação. A população não deve saber o que se passa fora do campo socialista. Ela não deve tampouco saber o que se passa dentro. Ela não deve conhecer seu passado. Ela não deve conhecer seu presente: somente seu futuro radioso.

O terceiro é substituir a realidade por uma pseudo-realidade. Todo um corpo especializado no falso produz falsos jornalistas, falsos historiadores, uma falsa literatura, uma falsa arte que finge refletir fotograficamente uma realidade fictícia. Uma falsa economia produz estatísticas imaginárias. Acontece às vezes que as necessidades da cenografia chegam à adoção de medidas de estilo nazista. Assim, na URSS, os mutilados de guerra e do trabalho eram afastados da vista do público, transportados para asilos longínquos onde eles não chamavam mais atenção”. P. 29-30.

E por questão de honestidade, devo reconhecer que a igreja católica, instituição por qual não tenho quase nenhum apreço, salvou milhares de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, livrando-os do holocausto (Shoah). Não teria porque duvidar das palavras do Besançon.

“Profundamente atacada nesse ponto, a Igreja católica fez valer seus argumentos. O padre Blet, S. j., historiador cuja competência é notória e reconhecida por seus pares, reuniu-os recentemente em uma obra documentada sobre os arquivos do Vaticano: de todos os corpos constituídos subjugados pelo nazismo, afirma ele, a Igreja foi o que salvou mais judeus. O padre Blet avalia seu número em 800 mil. A encíclica Mit Brennender Sorge (março de 1937) condena expressamente o racismo e as diversas idolatrias da raça, do sangue, da nação. O silêncio de que é acusado Pio XII pode ser explicado pela prudência e pela preocupação por uma eficácia máxima; por exemplo, para não suscitar reações nazistas ainda mais mortíferas, como tinha acontecido nos Países Baixos quando os bispos tinham elevado a voz em protesto; salvar um circuito eclesiástico e um esquema diplomático que permitiria agir  debilmente na Alemanha, com base na concordata, e mais fortemente nos países satélites mas que não tinham ainda sido ocupados, como a Hungria ou a Eslováquia; não enfraquecer sistematicamente a Alemanha face à ameaça soviética, que o Papa considerava, com razão, como mais perigosa ainda a longo prazo para a humanidade inteira que o nazismo. Ele se explica também pela dificuldade de crer em algumas informações que filtraram do grande segredo nazista, porque elas eram (assim como para os dirigentes ocidentais da Grande Aliança) incríveis”. P. 63.

No entanto, três páginas a frente nos é dito:

“A Igreja faz recair essa responsabilidade principalmente sobre seu ensino. Um documento romano de 1988 reconhece que o tom antijudaico de sua tradição mais antiga preparou O terreno para um anti-semitismo racista, que seria estranho à Igreja”. P. 66.

A Infelicidade do Século é um livro profundo e que felizmente não alivia o lado do socialismo comunista, como muitos fazem. Besançon traz informações e explicações pertinentes sobre os dois regimes que mergulharam o século XX num lamaçal de sangue inocente.

É com tristeza e pesar, que não foram apenas esses dois regimes que fizeram o século passado se afogar em mortes. Não podemos esquecer os milhões de assassinatos na África e noutros lugares, ocasionados por governos corruptos e ávidos pelo poder a qualquer custo.

Pra fechar, cito mais um lamento de Besançon pelo fato do comunismo ter sido eximido de suas atrocidades:

“O que nos leva a um problema: como é possível que hoje, isto é, em 1997, a memória histórica os trate desigualmente a ponto de parecer ter esquecido o comunismo? Sobre o fato dessa desigualdade não é necessário nos estendermos. Desde 1989, a oposição polonesa, com o primado da Igreja à cabeça, recomendava o esquecimento e o perdão. Na maioria dos países que saíam do comunismo, não se falou sequer em castigar os responsáveis que haviam matado, privado de liberdade, arruinado, embrutecido as pessoas, durante duas ou três gerações. Salvo na Alemanha Oriental e na República Tcheca, os comunistas foram autorizados a permanecer no jogo político, o que lhes permitiu retomar aqui e ali o poder. Na Rússia e em outras repúblicas, o pessoal diplomático e policial continuou nos seus postos. No Ocidente, esta anistia foi julgada favoravelmente”. P. 69-70.

quinta-feira, 2 de março de 2017

Política para não ser idiota


CORTELLA, Mário Sérgio; RIBEIRO, Renato Janine. Política para não ser idiota. São Paulo: 7 Mares, 2010. (Versão em PDF).

Mais um livro em forma de diálogo, agora com o Mário Cortella (Doutor em Educação na PUC-SP) e o Renato Ribeiro (Doutor em Filosofia pela USP). O tema, como o título já diz, é a Política.

Em sua primeira fala, Cortella esclarece o que entende por “idiota” no contexto de sua conversa com o Ribeiro:

Esse termo aparece em comentários indignados, cada vez mais frequentes no Brasil, como ‘política é coisa de idiota’. O que podemos constatar é que acabou se invertendo o conceito original de idiota, pois a expressão idiótes, em grego, significa aquele que só vive a vida privada, que recusa a política, que diz não à política. No cotidiano, o que se fez foi um sequestro semântico, uma inversão do que seria o sentido original de idiota”. P. 07.

Ribeiro complementa:

“[o] preocupante – é o desinteresse pela política, que você apontou. Quer dizer, ao mesmo tempo em que meia humanidade está se beneficiando de avanços democráticos, boa parte das pessoas está enojada pela descoberta ou pelo avanço da corrupção (aliás, é discutível se ela realmente aumentou ou apenas se tornou mais visível)”. P. 07.

Mas Ribeiro mostra-se muito otimista, apesar ainda dos vários problemas existentes, com a atual situação política:

“[...] estamos vivendo o período de maior liberdade de toda a história. Nunca antes, na história deste mundo, houve tanta liberdade política e pessoal. Metade da humanidade se expressa, se organiza, vota, tem a orientação sexual de seu agrado. Logo, dessa perspectiva, a política se expandiu muito. Tanto é assim que atualmente há certa convergência de conceituação entre política e democracia. Quando os teóricos definem uma ou outra, dizem que as duas passam pela fala, pela conversa, pelo diálogo. Elas se opõem às ditaduras porque nestas não há liberdade de expressão. Daqui a um tempo é possível que predomine a ideia de que não há política que não seja democrática, e então talvez não se ouça mais falar em política stalinista, em política ditatorial etc. Talvez se ache que uma ‘política ditatorial’ é uma contradição... Esse é o aspecto positivo do mundo contemporâneo”. P. 07.

Os autores, provavelmente não estejam nada satisfeitos com o atual momento político pelo qual passa o Brasil, com todo esse burburinho em torno da saída de Dilma. Esse diálogo foi travado em 2010.

Avançando no diálogo, Ribeiro trata da obrigatoriedade do voto:

”Aproveitando que mencionei o tema das eleições, acho que poderíamos debater a questão do voto obrigatório. Durante muito tempo o defendi; com sérias ressalvas, mas defendi. Meu principal argumento era que, numa democracia, em que o poder é do povo, cada cidadão tem o dever de participar da construção da coisa pública. Voto não é artigo de consumo, que você compra ou não. O voto constitui a sociedade política. Mas me incomodavam os aspectos práticos da obrigatoriedade, como apresentar o comprovante de que você votou para retirar o passaporte; imagine que tive de ir uma ou duas vezes justificar minha abstenção no cartório eleitoral, o que me pareceu ridículo...” P. 29.

E por que ele mudou de perspectiva em relação a isso?

“Contudo, agora começo a ver pelo menos um aspecto positivo no voto facultativo. Hoje, os votos são uma reserva de mercado. Antes mesmo de escolher, sabemos que teremos de votar. Então vários fornecedores aparecem na TV, por sinal em horário pago por nós, dizendo: “Vote em mim, vote em mim”. Não precisam nos convencer a comprar a mercadoria; só precisam nos convencer a comprar a deles e não a outra. Já se o voto fosse facultativo, cada partido, além de nos convencer de que ele é melhor que os outros, teria de nos convencer também de que vale a pena votar. Provavelmente não chegaríamos a uma abstenção de 30% como em vários países europeus, nem de quase 50% como nos Estados Unidos, mas os partidos iriam se comprometer com a coisa política. Hoje, o partido tem apenas de conquistar a vaga – que já está lá. Se eles tiverem que convencer o povo de que votar é importante, terão de militar em favor da política, e não só da política deles. Terão de mostrar que a política significa alguma coisa. Hoje, quem faz esse tipo de campanha é a Justiça Eleitoral, quando deveriam ser os partidos, os candidatos. Hoje, quem explica ou elogia a democracia é o TSE e não os partidos...” P. 29.

Cortella mais uma vez retoma o que seria o “idiota”:

“A política de ação, não só a política do cotidiano – no condomínio, na escola, na família, no bairro, na ONG, no sindicato –, mas a política como atividade e vida pública, não necessariamente partidária, exige participação. Não fazê-la é algo que, a meu ver, indica alienação”. P. 31.

É reiterada diversas vezes ao longo do livro a responsabilidade que nós, cidadãos brasileiros, temos em relação ao Estado. Ninguém deve se eximir de construir um Estado mais eficiente, ético e mais justo. Mas a nossa mentalidade ainda não atentou devidamente para esse engajamento político. Não vemos o Estado como imanente, mas como um ser estranho e distante de nós.

Cortella desabafa:

“Acho que a política, tal como está, é resultado de nossos atos, conscientes ou não. Visto que se faz política mesmo quando não se sabe que se está fazendo, numa sociedade de diferenças e confrontos, a neutralidade é ficar do lado do vencedor. É claro que numa disputa dentro de uma escola, por exemplo, entre um menino de 15 anos e outro de cinco, aquele que declara: “Estou neutro, não vou me meter”, já se meteu. A omissão – a chamada neutralidade – significa apoiar aquele que obviamente vencerá. Penso que nossa sociedade tem bem acentuada essa marca: é uma falta de responsabilização, como se a coisa pública e o aparelho de Estado fossem externos a nós.

Por isso me referi anteriormente à transcendência, pois é como se o Estado fosse metafísico, transcendente. Às vezes ele é nosso céu, às vezes é nosso inferno; ora ele é nosso salvador, ora nosso demônio; é o Estado providente e o Estado punitivo. Mas a maioria da população prefere crer que não tem nada a ver com ele porque, quando surgimos, ele já existia – embora, no dia a dia, vá se construindo esse Estado pela eleição e por tantas práticas que adotamos ou rechaçamos.” P. 30.

Cortella traz um fato que eu desconhecia: a igreja católica foi quem liderou a luta pelo voto feminino no Brasil. 

“[...] a luta pelo voto feminino no Brasil foi encabeçada pela Igreja Católica. Claro, ela não era neutra na história, pois nunca se é, mas, como boa parte do eleitorado feminino era católica e ficava fora da possibilidade de eleição, buscou-se alterar esse cenário. Em 1932, em razão da Revolução de 30 em que os liberais estavam no poder, a Igreja Católica conseguiu que o voto feminino fosse aprovado no Brasil, o que era uma maneira de ganhar mais presença – como efetivamente ganhou posteriormente.” P. 30.

Ribeiro esclarece o que deveria ser o debate político:

“Considero mais importante, no Brasil, hoje, que as pessoas aprendam que a posição de seu adversário também é legítima, que aprendam a entender o que ele disse, em vez de contestar o que apenas imaginam que ele falou. Nosso debate é pobre, porque se faz caricatura do adversário. Não é à toa que ainda há quem chame o adversário, na política, de inimigo! Inimigo, só na guerra. Pior que isso, ainda não se entranhou em nós a convicção de que dois lados podem ter alguma razão e de que a política é o enfrentamento de posições opostas mas legítimas. É nesse conflito que cada uma delas pode se aprimorar.” P. 41.

Os experts em política das redes sociais, fóruns e sites, precisam aprender a ver o outro com mais respeito. O que vemos em tudo que é postagem ou notícia, são ofensas, espantalhos, caricaturas, xingamentos, palavrões, difamações e etc. Vale à pena participar desses debates tão “edificantes”? Dificilmente se lê as ideias opostas na própria fonte, mas sim, em fontes que distorcem o que foi dito originalmente. Isso é evidente em todos os lados da discussão; entre aqueles que se auto-intitulam de direita ou de esquerda.