RICHELLE,
Matthieu. A Bíblia e a Arqueologia. São
Paulo: Vida Nova, 2017.
A Bíblia é
um livro religioso alicerçado na história. Pelo menos, numa leitura normal e
simples do texto, fica muito fácil ver assim. Ela menciona cidades, reis,
costumes, impérios... Egito, Babilônia, Pérsia, Assíria... Seriam suas aventuras
registradas naquilo que chamamos de Antigo Testamento factualmente fundamentadas
na história? A Ciência da Arqueologia pode nos fornecer conhecimentos
complementares sobre o texto bíblico? Os Arqueólogos têm algo a dizer sobre a
veracidade ou inveracidade histórica sobre os vários eventos que aparecem nas
páginas do texto sagrado? A Arqueologia confirma ou nega a Bíblia? Seria
correto incorrermos nessa bifurcação? Ou o trabalho arqueológico é muito mais
complexo do que essa formulação simplista de ou A ou B?
Matthieu
Richelle, Ph.D em Ciências Históricas e Filológicas na EPHE-Sorbonne, assevera
que a Arqueologia não funciona nos limites desse maniqueísmo. As ferramentas de
pesquisa dos Arqueólogos para decifrar os artefatos das antigas civilizações,
podem ajudar na compressão do texto bíblico. Mas como é dito, a natureza dos
achados é muito fragmentária. Os pesquisadores só têm acesso a uma porção
ínfima dos artefatos. E eles ainda precisam ser datados, decrifrados e
interpretados. Eis um desafio hercúleo para os estudiosos. Não é nada fácil construir um conhecimento
razoavelmente crível sobre os povos antigos. Deduções, induções, especulações, subjetividades,
pressupostos metafísicos e metodológicos, estão a todo o momento no trabalho
dos especialistas.
“Por mais empolgante que seja a
descoberta de novos textos, seria ilusão pensar que é possível lê-los com
facilidade. Nos casos das inscrições com caracteres cuneiformes, os
especialistas podem encontrar até seiscentos sinais, cada um podendo ainda
representar várias sílabas e ideais distintas. Mesmo os textos conservados em
escrita alfabética (entre vinte e trinta sinais em geral) podem mostrar-se
muito difíceis de decifrar. A tinta pode ter desaparecido em boa parte dele ou
ter se misturado com manchas escuras. Os traços de textos cursivos, escritos
rapidamente para registrar informações ou mensagens do cotidiano, não são mais
fáceis de ler do que uma prescrição médica e exigem um olho bem treinado! Às
vezes, é preciso utilizar um programa de tratamento de fotos no computador,
modificar o contraste e as cores, para revelar a silhueta de uma letra.” P. 76.
Por essas e
outras, deve-se ter muita cautela quando a mídia divulga uma descoberta muito
importante e, que revolucionará o conhecimento naquela área. Em não poucas
ocasiões há sensacionalismo em jogo.
“Por vezes, a mídia difunde
prematuramente uma análise que em seguida se mostra errônea”. P. 79.
As próprias
hipóteses feitas pelos Arqueólogos com frequência mostram-se falhas e
inadequadas. Esquadrinhar o passado nunca foi fácil.
“Arqueólogos, portanto, propõem
regularmente interpretações sedutoras, mas basta esperar alguns meses ou alguns
anos para que apareçam outras análises, mais sóbrias e frequentemente mais
justas.” P. 90.
A
metodologia empregada está sempre mudando, evoluindo – isso contribui para que
visões antes estabelecidas possam ser solapadas ou modificadas por novos
paradigmas e olhares sobre as escavações.
“[...] os métodos progridem
constantemente e, quando os arqueólogos, releem os relatórios de escavações
realizadas há décadas, constatam que os protocolos de seus predecessores estão
longe de satisfazer aos parâmetros científicos atuais. Ora, uma escavação é um
ato de destruição, e não é possível voltar no tempo. Às vezes, os dados não
registrados corretamente ou eram mal interpretados”. P. 97-98.
Depois de
nos guiar pelas dificuldades intrínsecas do labor arqueológico, Richelle
conclui:
“Diante de todos esses limites, a
esperança que muitos têm na arqueologia às vezes se mostra ilusória. De tempos
em tempos, mesclam-se a ela a má fé ou a ignorância. [...] Nesse tipo de
situação, uma dose de subjetividade inevitavelmente entra em jogo na
interpretação, segundo os pressupostos de cada um.”
“Por ora, é preciso concluir que,
por mais impressionante que seja a luz lançada pelas descobertas materiais
sobre a Bíblia, os limites da pesquisa arqueológica não são menos consideráveis.
Isso não deve diminuir o fascínio que a disciplina legitimamente suscita, mas,
sim, instigar o desejo de esclarecer essa paixão por meio de uma atitude
prudente, o que tornará a pesquisa mais científica.” P. 99, 100.
Estando
cientes do caminho nada fácil que os especialistas têm que trilhar - em que pé
estão às escavações concernentes aos relatos históricos da Bíblia? A ciência
arqueológica confirma ou nega as histórias bíblicas, ou seria melhor abordar a
questão de outra maneira, sem entrarmos nessa dicotomia?
“[...] Por um lado, se é normal que
aqueles que atribuem importância à veracidade da Bíblia se alegrem com
descobertas que a confirmem (e há muitas), não existe nenhuma razão para crer
que os sítios sejam ‘reservatórios de confirmações, como se os vestígios
existissem para conservar lembranças dos relatos bíblicos. [...] É, pois,
totalmente ilusório pensar que se pode ‘provar a Bíblia’, por meio das
descobertas feitas nas escavações, e é possível ser enganado em vão. Não
somente nada garante que os vestígios e as inscrições que forneceriam uma
confirmação de cada fato ou eventos bíblicos tenham sido preservados pelo
tempo, mas também é bem evidente que jamais será possível verificar cada
elemento dos relatos bíblicos, a começar pelos diálogos de seus personagens!” P. 106, 107.
Nos
capítulos finais, o autor dá uma atenção especial às teses levantadas pelo
respeitado Arqueólogo Israel Finkelstein (Professor da Universidade de Tel
Aviv), em seu livro A Bíblia Desenterrada, que em português, a editora que não
foi nenhum pouquinho besta, traduziu por A Bíblia Não Tinha Razão, um
contraponto claro ao livro E a Bíblia Tinha Razão, do Jornalista Werner Keller,
lançado ainda na década de 1970. Em seu livro, Finkelstein reduz a Bíblia a uma
coletânea de livros que têm pouca relevância do ponto de vista histórico. Li o
tal livro há uns dez anos ou mais. Richelle vem nos dizer que as ideias
levantadas por ele, têm pouca aceitação entre os seus pares. A grande massa dos Arqueólogos e outros estudiosos não apoiam as conclusões do Finkelstein. E muitos
deles não são cristãos e nem judeus ortodoxos, que em teoria, estariam ávidos
por confirmar as histórias do Antigo Testamento.
“[...] praticamente todos os
arqueólogos, experientes e novatos, que trabalham com a Idade do ferro, rejeitaram sua redatação como algo infundado”. P. 134. –
Ziony Zevit, Ph.D na Universidade de Berkeley, na Califórnia, e ex-Professor da
Universidade Hebraica de Jerusalém.
“Essa obra [A Bíblia Desenterrada],
geralmente bem traduzida e de leitura agradável, visa a um público amplo, sobre
o qual exerce a sedução de ser apresentada como ‘provada’ pela arqueologia. O
especialista, porém, não se sente muito à vontade diante de tanta certeza, por
um lado porque conhece os debates atuais acerca de certos dados da arqueologia
material – em particular acerca da arqueologia dos séculos 9 e 10 – e, por
outro, porque se espanta com tomadas de posição categóricas por parte de
arqueólogos no domínio da crítica literária e da história da redação de textos.” P. 135. - André Lemaire, Historiador, Epigrafista e Diretor da
Escola Prática de Altos Estudos, na França.
Alguns especialistas
são citados, para corroborar a historicidade da Bíblia:
“Temos um nível regular de boas correlações, com base em fatos, desde aproximadamente 2000 a.C. (com raízes mais antigas) até 4000 a.C. Do ponto de vista da confiabilidade geral, [...] o Antigo Testamento se sai muitíssimo bem, desde que seus escritos e escritores sejam tratados de maneira justa e imparcial, de acordo com dados independentes, disponíveis a todos.” P. 122. – Kenneth Kitchen, Egiptólogo e Professor da Universidade de Liverpool.
“Temos um nível regular de boas correlações, com base em fatos, desde aproximadamente 2000 a.C. (com raízes mais antigas) até 4000 a.C. Do ponto de vista da confiabilidade geral, [...] o Antigo Testamento se sai muitíssimo bem, desde que seus escritos e escritores sejam tratados de maneira justa e imparcial, de acordo com dados independentes, disponíveis a todos.” P. 122. – Kenneth Kitchen, Egiptólogo e Professor da Universidade de Liverpool.
“Não existe no momento nenhum caso
em que uma inscrição extrabíblica tenha demonstrado que o relato bíblico de
algum evento do começo do primeiro milênio antes de nossa era seja
completamente falso.” P. 127. -
Eric H. Cline, Arqueólogo, Ph.D em História Antiga na Universidade da
Pensilvânia.
“Cada vez que uma inscrição
menciona um rei de Israel ou de Judá, ela concorda com o texto bíblico; as
inscrições que têm alguma relação com o texto bíblico não fornecem nenhum caso
de contradição. [...] Afirmamos que nenhuma descoberta arqueológica se opõe de
modo indiscutível a uma afirmação do Antigo Testamento.” P. 127. – Alan Milard, Professor na Escola de Arqueologia da
Universidade de Liverpool.
Afirmações
contundentes!
Em termos
gerais, Richelle afirma que a Bíblia está em uma boa situação segundo a maioria
dos Arqueólogos. Mas ele reitera várias vezes para os mais entusiasmados que
tenham cuidado. A Arqueologia não prova a Bíblia! Mostra apenas que muitas de
suas histórias são factuais. O labirinto do minotauro realmente existe, mas
isso não quer dizer que um minotauro real tocava o terror aos infelizes que
porventura, caíssem naquele lugar.
Tudo depende
de como olhamos o Antigo Testamento. Olhamos para ele como livro inspirado pelo
divino e inerrante? Se sim, então é impossível pensar na possibilidade de que
ele contenha algumas incongruências históricas. Não seria justo, adequado e,
até seria um pecado, vê-lo como impreciso em seus registros, segundo a visão
dos crédulos.
A visão que
temos dele é de um livro sujeito a todo tipo de erro, como qualquer outra
literatura? Se a resposta é positiva, não tem porque pensarmos que a Arqueologia
sempre o confirmará. O Arqueólogo pode ir a campo, aberto a todas as
possibilidades – seja admitindo que o texto está se provando factível; ou
considerando o texto impreciso, segundo o que as escavações revelam. Prefiro
esta segunda opção.
Citando uma
segunda vez essa fala do Richelle:
“Arqueólogos, portanto, propõem
regularmente interpretações sedutoras, mas basta esperar alguns meses ou alguns
anos para que apareçam outras análises, mais sóbrias e frequentemente mais
justas.” P. 90.
Isso vale
para todos: crentes e descrentes.