PRIORE, Mary Del. Do Outro Lado: A História do Sobrenatural e do
Espiritismo. 1 ed. - São Paulo: Planeta, 2014. (PDF).
A Historiadora Mary Del Priore (Ph.D em História na USP) sabe como
ninguém trazer a baila assuntos que fogem da história tradicional, que
geralmente se resumem a tratar de assuntos ligados a política e economia. Até
mesmo para quem é formado em História e apaixonado pelo passado, sente-se
frustrado em pegar em livros (acadêmicos) que só tratarão do que os bandidos
(políticos) fizeram em décadas e séculos atrás. Mary percebendo que bons livros
de História podem ser escritos saindo dessa mesmice historiográfica, sempre
escreve sobre temas interessantes sobre a história do nosso país. E quer assunto
mais intrigante e que chame mais a atenção, do que um que fale sobre o
sobrenatural?
"O
que há do 'outro lado'? Esta não é uma pergunta feita apenas por historiadores.
E, sim, pela sociedade. Religiosos, filósofos, antropólogos, médicos,
pesquisadores de várias áreas, além de cidadãos comuns, querem saber. Passa-se
por um túnel frio e escuro para mergulhar em águas quentes e iluminadas?
Voa-se, de forma invisível, sobre o próprio corpo? Seres de luz vêm nos buscar?
Nada se sabe, embora se acumulem depoimentos daqueles que voltaram do além.
Mesmo com o cérebro aparentemente estacionário, eles foram capazes de ter
visões. Os cientistas chamam o fenômeno de EQM: experiência de quase-morte ou
near-death experience, termo cunhado pelo psiquiatra norte-americano Raymond
Moody depois de ter estudado mais de cem casos." P. 09.
Se o Brasil é o país mais católico do mundo, ele é o país mais espírita
também. Seja mediante as religiões afros, nas suas várias manifestações, como o
candomblé, umbanda, jurema, tambor de mina e etc. - seja através do chamado
alto espiritismo, tendo como principal eixo os ensinos do francês Alan Kardec,
o organizador da doutrina espírita.
Mary fez uma exaustiva pesquisa nos jornais e revistas do século XIX,
livros de Kardec e livros, revelando o boom do espiritismo nos EUA, com as
irmãs Fox, passando pela Europa, e chegando as terras brasileiras.
“[...]
não há sociedade ou cultura na qual esteja ausente a preocupação dos vivos com
os mortos, e da participação dos mortos na vida dos vivos. [...] A necessidade
de religião - capaz de, na medida do possível, harmonizar o racional e o
irracional – continua, de forma consciente ou subliminar, essencial ao
equilíbrio humano.” P.
12.
O livro fala sobre o frisson das mesas volantes, do magnetismo, do
sonambulismo, do curandeirismo... A reação da igreja católica que condenava
todas essas manifestações, atribuindo ao diabo essas práticas que iam de
encontro ao que ela ensinava e acreditava. Os jornais também denunciavam o novo
movimento religioso, acusando-o de charlatanismo, enganador das massas pobres e
ignorantes. As várias classes sociais, que a sua maneira aderiam as práticas
espíritas, ora atrás de cura para as suas doenças, ora para saber o seu futuro,
ou se comunicar com entes queridos.
No período medieval, a própria igreja ajudou a sedimentar o interesse e
o medo dos espíritos, com histórias absurdas, algo que não é novidade no
catolicismo.
“Na Idade
Média, fantasmas e almas do outro mundo começaram a registrar sua existência.
Cronistas da Igreja não hesitavam em comentar que os cadáveres saíam de sua
sepultura, passeavam à vontade e, depois, voltavam aos túmulos que abriam com
as próprias mãos. Montavam a milhares os testemunhos de tais fatos. Ao competir
com os santos, defuntos ganhavam outra característica: a de fazer milagres,
sobretudo por quem rezasse por eles. Além do mais, manifestavam-se aos vivos de
diversas formas: por meio de sonhos e visões, na forma de fantasmas ou de
mortos-vivos.” P. 23.
O grande codificador/organizador da doutrina espírita, foi o conhecido
Alan Kardec.
“Em O
Livro dos Espíritos, Kardec conta que sua conversão [crença na comunicação com
os mortos] foi gradual. Levou dois anos. Não foi uma conversão súbita e
emocional, mas sim pensada, refletida, ponderada; uma conclusão rigorosa a
partir de um conjunto de 'princípios incontestáveis'. Para ele, o mundo
espiritual era o prolongamento da vida concreta. E até mais importante, porque
eterno. E passível de ser estudado cientificamente”. P. 34.
A doutrina espírita logo em seu início já adiantava que poderia haver
erros ou má conduta dos espíritos contatados. Uma boa estratégia para sempre
manter a religião espírita num patamar de veracidade. Se houve erro: a culpa é
da interpretação do médium ou do espírito pilantra que quis enganar. Nunca será
da própria estrutura de doutrinária e de crenças do espiritismo. Uma maneira
esperta de continuar enganando.
“Como
outras religiões, o espiritismo que chegava ao Brasil se apresentava como uma
revelação, tal como a que tiveram Moisés ou Jesus Cristo. Ela não emanaria de
Deus, mas de espíritos falíveis, por vezes trapaceiros, que, embora mortos,
estavam perto dos vivos. Donde, para o destinatário da revelação, a necessidade
de verificar e discutir tais mensagens.
Como
Kardec mesmo dizia, o risco de erro e mistificação não seria jamais eliminado.
Ele não tomava tais mensagens por verdades. Cada espírito poderia ensinar
alguma coisa aos homens. Mas nenhum ensinaria tudo. Cabia ao interessado formar
um conjunto de informações com a ajuda de documentos, ligando uns aos outros.
Daí a importância da interpretação ‘científica e moral’, fundamental no
kardecismo.” P. 39.
Como era um novo movimento espiritual que estava dando as caras, o
espiritismo de Kardec naturalmente entraria em conflito com a igreja católica.
Kardec tinha plena consciência disto e foi cauteloso quanto a essa delicada
questão.
"De
início, Kardec evitou se chocar com a Igreja. Não queria atrair a fúria de uma
instituição que era um pilar político. Além disso, num país de cultura
católica, seria suicídio exigir que os católicos escolhessem entre suas crenças
e o espiritismo. Mas, a partir de 1864, quando suas obras foram colocadas no
Index de leituras proibidas pelo Santo Ofício da Inquisição, tornou-se quase
impossível conciliar catolicismo e espiritismo". P. 42.
O espiritismo nega ensinamentos centrais do cristianismo, e Kardec
sabia dessas diferenças.
“Um dos
pontos favoritos das teses de Kardec era a negação do inferno e de seus
castigos eternos. Segundo ele, ninguém poderia acreditar numa tal ideia,
incompatível com a da existência de um Deus, sinônimo de amor. O único critério
de salvação não devia ser o medo, mas a retidão de princípios e a caridade.
Fora dessa última não haveria salvação”. P. 42.
O catolicismo não aprovava e nem aprova a comunicação com os mortos,
porém, isso é bem contraditório, visto que o fiel católico é orientado a rezar
pedindo ajuda a Maria ou a um panteão de santos mediadores, ou seja, pessoas que
já morreram. O que é a reza/oração, se não uma espécie de comunicação/diálogo
entre quem pede (humano vivo) e entre quem o escuta e responde (Deus, Maria,
santos), respondendo com um sim ou um ano, a prece do fiel?
“A
Igreja, como já vimos, também movia sua guerra contra a doutrina [espírita].
Desde 1864, ela colocou no Index de livros proibidos as obras espíritas e
perseguia a necromancia, ou seja, a comunicação com os mortos, a qual
considerava maldita. A ordem era: que os padres respondessem às manifestações
de espíritos com a arma tradicional, os exorcismos. Do ponto de vista do Santo
Ofício, os espíritos eram assimilados a demônios, e os que os invocavam, a
adeptos de Satã.” P. 94.
Toda religião é filha de seu tempo, portanto, por mais que o kardecismo
pregasse a prática da caridade e do amor, o racismo estava incluso em suas
práticas espirituais, tanto na Europa quando no Brasil. Em terras brasileiras,
o espiritismo negro/africano já existia há séculos. Os seguidores de Kardec não
queriam ser associados a eles.
"No
final dos anos 1880, com os grupos kardecistas mais organizados, a preocupação
era não confundir espíritas e curandeiros. Havia discriminação. Afinal, os
espíritos de índios e negros eram considerados pelos kardecistas ‘involuídos’ e
‘carentes’. Kardec, na verdade, nada escreveu a esse respeito. Porém, ao se
referir a ‘povos bárbaros e antropófagos’, diferenciando-os dos civilizados, e
ao considerar a escravidão um fator cármico, ele os convidava a evoluir
espiritualmente." P. 72.
Pensou errado aqueles que decretaram o avanço ininterrupto da razão
materialista rumo a uma sociedade sem religião e sem superstição. A França, um
dos berços das Luzes estava afundada e crendices de todos os tipos.
“Em 1800,
Napoleão quis conhecer o estado de 'superstição' na França, e em cada
localidade representantes foram encarregados de anotar comportamentos
'irracionais'. A enquete revelou que, em todas as classes sociais, nas cidades
ou no campo, crendices estavam bem vivas: magia, feitiçaria, lobisomens,
curandeiros, possessão, evocação de espíritos… A França parecia tomada pelo
sobrenatural. A crença em presságios e na adivinhação parecia mais forte do que
o sentimento religioso”. P. 76.
A ironia da coisa é que o século XIX era a continuação do período das
luzes (iluminismo), que apregoava que a razão e a ciência preencheriam todas as
lacunas da existência. Mas aí vem o espiritismo e o sobrenatural e mostram que
não seria assim não. A crença nos espíritos ganhava novo fôlego, e não
recrudesceria com o avanço da medicina e ciências em geral. E assim tem sido
desde então. Adentramos o século XXI, com a fé no além, nos espíritos, na
comunicação com os mortos...