quarta-feira, 30 de maio de 2018

Confissões do Crematório



DOUGHTY, Caitlin. Confissões do Crematório. Rio de Janeiro: DarkSide, 2016. (PDF).

“Sabemos que a morte nos espera e isso afeta tudo que fazemos, inclusive o impulso de tomar um cuidado caprichado dos nossos mortos”. P. 40.

Caitlin Doughty (Bacharel em História na Universidade de Chicago) quando criança, aos oito anos de idade, viu uma menina cair da escada rolante do shopping e morrer. A partir daí, a morte passou a fazer parte do seu imaginário. Com apenas 23 anos, conseguiu o seu tão sonhado emprego: tornar pessoas mortas em cinzas, num crematório na Califórnia. Neste livro ela conta suas experiências de como é trabalhar torrando corpos e triturando ossos; conta como a cultura do enterro, velório, preparação do corpo, eram feitas no passado do seu país e noutros países e épocas. Conclama o leitor a uma reflexão sobre si - uma reflexão sobre a própria finitude e o vazio que o espera, sobretudo, porque a nossa sociedade atual parece pensar que viverá para sempre. Para ela, precisamos pensar a nossa própria morte. Isso é libertação; é emancipação. Agindo assim, teremos uma boa morte. Resignação.

“Olhar diretamente nos olhos da mortalidade não é fácil. Para evitar isso, nós escolhemos continuar vendados, no escuro em relação às realidades da morte. No entanto, a ignorância não é uma bênção — é só um tipo mais profundo de pavor. Podemos nos esforçar para jogar a morte para escanteio, guardando cadáveres atrás de portas de aço inoxidável e enfiando os doentes e moribundos em quartos de hospital. Escondemos a morte com tanta habilidade que quase daria para acreditar que somos a primeira geração de imortais. Mas não somos. Vamos todos morrer e sabemos disso. Como o grande antropólogo cultural Ernest Becker disse: ‘A ideia da morte, o medo dela, assombra o animal humano como nenhuma outra coisa’. O medo da morte é o motivo de construirmos catedrais, de termos filhos, de declararmos guerras e de vermos vídeos de gatinhos na internet às três da madrugada. A morte guia todos os impulsos criativos e destrutivos que temos como seres humanos. Quanto mais perto chegamos de entendê-la, mais perto chegamos de entender a nós mesmos.” P. 11.

A morte na fundação dos EUA:

“Os Estados Unidos foram construídos sobre a morte. Quando os primeiros colonizadores europeus chegaram, o que eles mais fizeram foi morrer. Se não era de fome, do frio congelante ou em batalhas com os nativos, era a influenza, a difteria, a disenteria ou a varíola que acabava com eles. No final dos primeiros três anos do povoado de Jamestown, na Virginia, 440 dos originais quinhentos colonizadores estavam mortos. Principalmente as crianças — elas morriam o tempo todo. Se você era mãe de cinco filhos, teria sorte se dois vivessem para além dos 10 anos de idade.” P. 27.

Antes era preferível morrer em casa:

“Morrer no ambiente higiênico de um hospital é um conceito relativamente novo. No final do século XIX, morrer em um hospital era um destino reservado a indigentes, as pessoas que não tinham nada nem ninguém. Quando tinha escolha, a pessoa queria morrer em casa na cama, cercada de amigos e familiares. Até o começo do século XX, mais de 85% dos americanos ainda morria em casa.

Os anos 1930 trouxeram o que é conhecido como “medicalização” da morte. A ascensão dos hospitais escondeu as visões, os cheiros e os sons desagradáveis da morte. Enquanto antes um líder religioso podia conduzir um moribundo e guiar a família na dor, agora são os médicos que acompanham os momentos finais de um paciente. A medicina passou a cuidar de questões de vida e morte, não os apelos aos céus. O processo da morte ficou mais higiênico e altamente regulado no hospital. Os profissionais da saúde acharam inadequado para consumo público o que o historiador da morte Philippe Ariès chamou de ‘espetáculo nauseante’ da mortalidade. Virou tabu “entrar em um quarto com cheiro de urina, suor e gangrena, em que os lençóis estão sujos de fezes”. O hospital era um lugar onde os moribundos podiam passar pelas indignidades da morte sem ofender a sensibilidade dos vivos.” P. 31-32.

Ver mortos não faz parte de nosso dia a dia:

“Hoje, não ser obrigado a ver cadáveres é um privilégio do mundo desenvolvido. Em um dia comum em Varanasi, nas margens do Ganges, na Índia, algo entre oitenta e cem altares de cremação ardem. Depois de uma cremação bastante pública (algumas executadas por criancinhas da casta intocável da Índia), os ossos e as cinzas são soltos na água do rio sagrado. As cremações não são baratas — o custo da madeira cara, das mortalhas coloridas e de um cremador profissional somam um valor elevado. As famílias que não têm dinheiro para uma cremação, mas que querem que seus entes queridos mortos vão para o Ganges, colocam o corpo no rio à noite e o deixam lá para que se decomponha. Os visitantes de Varanasi veem cadáveres inchados passarem flutuando ou sendo comidos por cachorros. Há tantos corpos assim no rio que o governo indiano solta milhares de tartarugas carnívoras para engolir os ‘poluentes necróticos’.

O mundo industrializado estabeleceu sistemas para impedir esses encontros desagradáveis com os mortos. Neste exato momento, cadáveres seguem por estradas e rodovias em vans brancas comuns. [...] Corpos atravessam o planeta nos compartimentos de carga de aviões enquanto passageiros de férias viajam em cima. Nós colocamos os mortos embaixo. Não só debaixo da terra, mas também debaixo de tampos de macas falsas de hospital, dentro das barrigas das aeronaves e nas profundezas da nossa mente consciente.” P. 35.

E na Paris do século retrasado...

“No final do século XIX, os cidadãos de Paris iam ao necrotério aos milhares diariamente para ver os corpos de mortos não identificados. Os espectadores faziam fila por horas para entrar enquanto ambulantes vendiam frutas, doces e brinquedos. Quando chegavam no início da fila, eram levados para uma sala de exibição, onde os cadáveres estavam expostos em placas por trás de uma vitrine grande”. P. 38.

Sabemos e refletimos sobre nossa morte:

“O grande triunfo (ou tragédia horrível, dependendo de como você encara) de ser humano é que nosso cérebro evoluiu ao longo de centenas de milhares de anos para compreender nossa mortalidade. Infelizmente, somos criaturas conscientes. Mesmo que passemos o dia encontrando jeitos criativos de negar nossa mortalidade, por mais poderosos, amados e especiais que nos sintamos, sabemos que estamos fadados à morte e à decomposição”. P. 40.

A morte no passado dos EUA:

“A morte nos Estados Unidos começou como uma operação totalmente caseira. Uma pessoa morria na própria cama, cercada pela família e pelos amigos. O cadáver era lavado e coberto com uma mortalha pelo indivíduo mais próximo do homem ou da mulher e exposto por vários dias na casa para um velório, um ritual batizado a partir da palavra do inglês antigo para ‘vigília’. [...] Para impedir a decomposição enquanto o corpo ficava em casa, inovações como panos encharcados de vinagre e cubas de gelo embaixo do cadáver foram desenvolvidas no século XIX. Durante o velório, havia comida para ser consumida, álcool para ser ingerido e uma sensação de libertação da pessoa morta do lugar que ocupava na comunidade. Como Gary Laderman, acadêmico das tradições de morte americanas, enunciou: ‘Apesar de o corpo ter perdido a chama que o animava, as convenções sociais profundas exigiam que ele recebesse o respeito apropriado e cuidados dos vivos’.” P. 48.

No Tibete, os mortos são tratados assim:

“No alto das montanhas do Tibete, onde o chão é rochoso demais para enterros e as árvores são poucas para fornecer madeira para piras crematórias, foi desenvolvido outro método para lidar com os mortos. Um rogyapa profissional, ou fragmentador de corpos, corta a carne do cadáver e mói os ossos que sobram com farinha de cevada e manteiga de iaque. O corpo é colocado em uma pedra alta e plana para ser comido por abutres. As aves se aproximam e carregam o corpo em direções diferentes pelo céu. É uma forma generosa de se livrar do corpo, com a carne que sobrou alimentando outros animais.” P. 51.

A evolução histórica da Medicina em relação aos defuntos:

“O uso de cadáveres para avanços na ciência se desenvolveu muito ao longo dos últimos quatrocentos anos. No século XVI, a medicina era praticada com uma compreensão medíocre de como o corpo humano realmente funcionava. Textos médicos erravam em tudo, desde como o sangue corria pelo corpo até a localização de órgãos vitais e ao que fazia as doenças se desenvolverem (respostas aceitáveis: desequilíbrios nos quatro ‘humores’ do corpo — muco, sangue, bile preta e bile amarela). O artista da Renascença Andreas Vesalius, incomodado porque os estudantes de medicina estavam aprendendo a anatomia humana dissecando cachorros, pegava escondido cadáveres de criminosos nas forcas. Apenas nos séculos XVIII e XIX as escolas de treinamento cirúrgico passaram a oferecer consistentemente dissecações anatômicas humanas para ensino e pesquisa. A demanda de cadáveres era tanta que os professores passaram a roubar túmulos recentes para pegar os corpos. Ou, no caso de William Burke e William Hare na Escócia do século XIX, assassinar pessoas vivas (dezesseis no total) e vender os corpos para serem dissecados por um professor de anatomia.” P. 71.
Os mortos no medievo:

“No final da Idade Média, a ‘danse macabre’, ou dança dos mortos, era um assunto popular na arte. As pinturas exibiam corpos em decomposição com sorrisos enormes, que voltam para pegar os vivos, alheios a tudo. Os corpos exultantes, anônimos pela putrefação, acenam e batem os pés enquanto puxam papas e pobres, reis e ferreiros em sua dança animada. As imagens lembravam os espectadores que a morte era certa: ninguém escapa. O anonimato aguarda.” P. 74.

O nosso fim e daqueles que amamos se aproxima:

“O mitologista Joseph Campbell nos diz sabiamente para desprezar o final feliz, ‘pois o mundo que conhecemos, que vimos, só oferece um final: a morte, a desintegração, o desmembramento e a crucificação do nosso coração com o fim daqueles que amamos’.” P. 77.

A artificialidade da indústria da morte:

“Se deixados em paz, os corpos humanos apodrecem, se decompõem, se desintegram e afundam gloriosamente na terra, de onde vieram. Usar o embalsamamento e os caixões pesados de proteção para impedir esse processo é uma tentativa desesperada de adiar o inevitável e demonstra nosso pavor óbvio da decomposição. A indústria da morte faz caixões e embalsamamentos com a justificativa de ajudar nossos corpos a parecerem ‘naturais’, mas nossos costumes relacionados à morte são tão naturais quanto treinar criaturas majestosas como os ursos e os elefantes para dançarem com roupinhas fofas ou erguer réplicas da Torre Eiffel e dos canais de Veneza no meio do árido deserto norte-americano.” P. 85.

A futilidade da tecnologia frente a morte:

“Os cadáveres mantêm os vivos presos à realidade. Eu tinha vivido toda a minha existência até começar a trabalhar na Westwind (crematório na Califórnia) relativamente distante de mortos. Agora, eu tinha acesso a montes deles, empilhados no freezer do crematório. Eles me obrigavam a encarar minha própria morte e a morte dos meus entes queridos. Por mais que a tecnologia possa ter se tornado nossa mestra, precisamos apenas de um cadáver humano para puxar a âncora do barco e nos levar de volta para o conhecimento firme de que somos animais glorificados que comem, cagam e estão fadados a morrer. Não somos nada mais do que futuros cadáveres.” P. 89.

Os mortos e as bactérias:

“Embora seja verdade que cadáveres criem imagens e cheiros ofensivos, um corpo humano morto oferece bem pouca ameaça a um vivo; as bactérias envolvidas na decomposição não são as mesmas que causam doenças. [...]vivo. É mais perigoso para a sua saúde andar de avião do que estar no mesmo aposento que um corpo morto”. P. 91-92.

Os sentimentos que o cadáver evocam em nós:

“Um cadáver não precisa que você se lembre dele. Na verdade, não precisa de mais nada — fica mais do que satisfeito de ficar ali, deitado, apodrecendo. É você que precisa do cadáver. Ao olhar para o corpo, você entende que a pessoa se foi, que não é mais uma participante ativa do jogo da vida. Ao olhar para o corpo, você se vê nele e sabe que também vai morrer. O contato visual é uma chamada à autopercepção. É o começo da sabedoria.” P. 92.

A ironia macabra de vermos o nosso próprio velório quando estamos bem idosos:

“O segmento que cresce mais rápido na população americana está acima dos 85 anos, o que eu chamaria de os agressivamente idosos. Se você chegar a essa idade, além de ter uma boa chance de estar vivendo com algum tipo de demência ou doença terminal, as estatísticas mostram que você tem 50% de chances de acabar em uma casa de repouso, o que gera a pergunta se uma boa vida é medida em qualidade ou quantidade. [...] Em 1899, apenas 4% da população americana tinha mais de 65 anos, e nem se pensava em chegar a 85. Agora, inúmeros indivíduos sabem que a morte está vindo durante meses ou anos de deterioração. A medicina nos deu a ‘oportunidade’ (imprecisamente definida) de estar no nosso próprio velório.” P. 115.

A morte é quem dá sentido as nossas vidas:

“A morte pode parecer destruir o sentido das nossas vidas, mas na verdade ela é a fonte da nossa criatividade. Como disse Kafka: ‘O sentido da vida é que ela termina’. A morte é o motor que nos mantém em movimento, que nos dá motivação para realizar, aprender, amar e criar. Os filósofos proclamam isso há milhares de anos com a mesma veemência com que insistimos em ignorar o aviso geração após geração. Isaac estava fazendo doutorado, explorando os limites da ciência e fazendo música por causa da inspiração que a morte oferecia. Se ele vivesse para sempre, era provável que acabasse se tornando chato, desanimado e desmotivado, privado da riqueza da vida pela rotina maçante. As grandes conquistas da humanidade nasceram dos prazos impostos pela morte.” P. 117-118.

O sonho da imortalidade:

“Mesmo sabendo que podem ter uma morte lenta e sofrida, muitas pessoas ainda desejam ficar vivas a qualquer custo. Larry Ellison, o terceiro homem mais rico dos Estados Unidos, doou milhões de dólares para pesquisas dedicadas à extensão da vida, porque, segundo ele: 'A morte me deixa com muita raiva. Não faz sentido para mim'. Ellison transformou a morte na sua inimiga e acredita que devíamos expandir nosso arsenal de tecnologia médica para acabar com ela de uma vez por todas. Não é surpresa que o grupo de pessoas que tentam tão freneticamente aumentar nosso tempo de vida seja formado basicamente por homens ricos e brancos. Homens que viveram vidas de privilégio sistemático e acreditam que esta deva se estender para sempre.” P. 117.

E mais uma vez, reflitamos sobre o nosso inescapável fim:

“Nunca é cedo demais para começar a pensar na própria morte e na morte das pessoas que você ama. Não quero dizer pensar na morte em ciclos obsessivos, com medo do seu marido ter sofrido um acidente horrível de carro ou do seu avião pegar fogo e despencar do céu. Mas uma interação racional, que termina com você percebendo que vai sobreviver ao pior, seja lá qual for o pior. Aceitar a morte não quer dizer que você não vai ficar arrasado quando alguém que você ama morrer. Quer dizer que você vai ser capaz de se concentrar na sua dor, sem o peso de questões existenciais maiores como 'Por que as pessoas morrem?' e 'Por que isso está acontecendo comigo?'. A morte não está acontecendo com você. Está acontecendo com todo mundo. Uma cultura que nega a morte é uma barreira para alcançar uma boa morte. Superar nossos medos e conceitos equivocados e loucos sobre esse assunto não vai ser tarefa fácil, mas não devemos esquecer a rapidez com que outros preconceitos culturais — o racismo, o sexismo, a homofobia — começaram a desmoronar no passado recente. Está mais do que na hora da morte ter seu momento da verdade.” P. 118-119.

domingo, 27 de maio de 2018

De Frente Para o Sol: Como Superar o Terror da Morte



YALOM, Irvin D. De Frente Para o Sol: Como Superar o Terror da Morte. Rio de Janeiro: Agir, 2008. (PDF).

Irvin D. Yalon (Ph.D em Medicina na Universidade de Boston, EUA) trabalha neste livro o terror primitivo da morte, que acomete a todos nós. Seu objetivo é que passemos do terror a "angústia cotidiana controlável". P. 142. Esse é o preço que pagamos pela nossa autoconsciência. A autoconsciência de que iremos para o buraco, para o não-ser, para a não existência consciente, para o nada, enfim, para o FIM.

Yalom, um Psiquiatra competente, Professor na prestigiada Universidade de Stanford, e com uma larga experiência nos estudos mais avançados de Psicoterapia, revela os meandros, que todo ser humano sente perante o próprio sim - a angústia da mortalidade. Ela é inerente a todos nós. Ele como ateu que é, acredita que o fim definitivo vem com o nosso último suspiro, sem possibilidade de uma vida após a vida terrena. Sua abordagem terapêutica é baseada em suas ideias materialistas, apesar delas não terem o objetivo de solapar a fé daqueles pacientes com fortes crenças religiosas.

Yalom se vale da sabedoria não apenas dos grandes Psicólogos, mas também, de toda uma tradição filosófica, principalmente das ideias de Epicuro (341-270 a.c.) e de Nietzsche (1844-1900). Ele lamenta em várias ocasiões, que de um modo geral, os Psicoterapeutas não atentam bem, e até mesmo ignoram quase que por completo, o terror da morte advinda de seus pacientes, não trabalhando esse sentimento com eles. Um dos motivos, ele acredita que se deve ao próprio medo da mortalidade, que naturalmente o Psicoterapeuta compartilha também.

Quem não teme a morte? Eu temo demais.

“Nossa existência é sempre obscurecida pelo conhecimento de que vamos crescer, nos desenvolver e, inevitavelmente, nos degradar e morrer. [...] todos tememos a morte - cada um de nós, homem, mulher ou criança. Para alguns o medo da morte se manifesta apenas indiretamente, como uma inquietação generalizada ou disfarçado de um sintoma psicológico secundário; outros indivíduos sofrem um fluxo explícito e consciente de angústia em relação à morte; e em algumas pessoas esse medo emerge na forma de um terror que anula qualquer felicidade e realização.” P. 10.

Para Yalom, o caminho inevitável da nossa inexistência é o cerne das crenças religiosas:

“A angústia da morte é a mãe de todas as religiões, as quais, de algum modo, procuram mitigar a agonia da nossa finitude. Deus, segundo a formulação de todas as culturas, não apenas suaviza a dor da mortalidade através de uma visão de vida eterna, como também alivia um isolamento temível oferecendo uma presença eterna e providenciando um projeto claro para que a vida seja significativa.” P. 12.

O que Yalom diz abaixo, é a mais pura verdade. Eu penso nela diariamente.

“A morte [...] nos chama. Ela nos chama o tempo todo; está sempre conosco, arranhando uma porta íntima, sussurrando suavemente, quase inaudível, sob a superfície da consciência. Escondida e disfarçada, transbordando por meio de uma variedade de sintomas, ela é a fonte de muitos de nossos estresses, conflitos e preocupações.” P. 13-14.

Ainda não cheguei, e espero nunca chegar ao nível de terror da morte, descrita a seguir:

“Para [muitas] pessoas, a angústia [da morte] é mais gritante, indisciplinada, tendendo a irromper às três da manhã, deixando-as ofegantes perante o espectro da morte. Elas se afligem com o pensamento de que também estarão mortas em breve, bem como todos a seu redor.” P. 15.

A inevitabilidade da morte vem sendo filosoficamente pensada desde eras antigas. Há toda uma robusta tradição de pensadores que vem refletindo acuradamente sobre ela. A lembrança da morte é a nossa salvação. Eis alguns desses pensadores:

“[Pensadores antigos] desde o surgimento da palavra escrita —, vêm nos lembrando da interdependência da vida e da morte. Os estoicos (por exemplo, Crísipo, Zeno, Cícero e Marco Aurélio) nos ensinaram que aprender a viver bem é aprender a morrer bem, e que, reciprocamente, aprender a morrer bem é aprender a viver bem. Cícero disse que ‘filosofar é se preparar para a morte’. Santo Agostinho escreveu que ‘é apenas perante a morte que o caráter de um homem nasce’. Muitos monges medievais mantinham uma caveira humana em suas celas para concentrar os pensamentos na mortalidade e para servir de lição à condução da vida. Montaigne sugeriu que a mesa de trabalho de um escritor deve oferecer uma boa visão do cemitério para estimular o pensamento. Assim, e de muitas outras maneiras, grandes professores ao longo do tempo nos lembraram que, apesar de a concretude da morte nos destruir, o conceito da morte nos salva.” P. 25.

Epicuro é um dos nortes filosóficos de Yalom, para reflexão sobre a morte:

“Epicuro acreditava que o real objetivo da filosofia é aliviar o sofrimento humano. E qual é a raiz do sofrimento humano? O pensador não tinha dúvida quanto à resposta para a pergunta: o nosso medo onipresente da morte. [...] É parte da genialidade de Epicuro ter antecipado a visão contemporânea do inconsciente: ele enfatizava que preocupações com a morte não são conscientes para a maior parte das pessoas, mas que devem ser inferidas por meio de manifestações disfarçadas, como por exemplo uma religiosidade excessiva, um acúmulo obsessivo de riquezas e um desejo cego de poder e honrarias, todas oferecendo uma versão simulada da imortalidade.” P. 47.

Tudo é transitório, passageiro...

“Muitas pessoas relatam que raramente pensam sobre a própria morte, mas que são obcecadas pela ideia - e pelo terror - da transitoriedade. Todo momento agradável é corroído pelo pensamento em segundo plano de que tudo que se experimenta agora é efêmero e vai acabar dentro de pouco tempo. Uma caminhada agradável com um amigo é prejudicada pela ideia de que tudo está fadado a desaparecer – o amigo vai morrer, a floresta vai ser lentamente transformada pelo desenvolvimento urbano. Qual o sentido de qualquer coisa, se tudo vai se transformar em poeira?” P. 52-53.

E o que faz a angústia da morte ser mais intensa?

“A solidão aumenta muito a angústia da morte. Muitas vezes, nossa cultura forma uma cortina de silêncio e de isolamento em torno dos falecidos. Na presença dos que estão morrendo, amigos e familiares muitas vezes se distanciam por não saber o que dizer. Temem incomodar a pessoa que está agonizando. E também evitam se aproximar demais por medo de confrontar a própria morte. Até mesmo os deuses gregos fugiam com medo quando o momento da morte humana se aproximava.” P. 67.

A nossa ciência de que vamos desaparecer vai ficando cada vez mais forte, à medida que envelhecemos. Eu com 32 anos, sinto fortemente isso.

“[...] o isolamento existencial é menos comum no início da vida; ele é sentido mais evidentemente quando se é mais velho e se está mais próximo da morte. Nesses momentos, nos tornamos cientes de que o nosso mundo vai desaparecer e também de que ninguém poderá nos acompanhar integralmente em nossa triste jornada para a morte. Como um velho canto religioso nos lembra: ‘É preciso atravessar aquele vale solitário por conta própria’.” P. 68.

Precisamos compartilhar com pessoas queridas, a nossa sensação de medo de que um dia não estaremos mais aqui.

“Amigos precisam lembrar aos outros (e a si próprios) de que também sentem medo da morte. [...] Essa participação não implica um alto risco: ela apenas explicita o que é implícito. Afinal, somos todos criaturas com medo do pensamento de ‘eu não existo mais’. Todos enfrentamos a sensação de pequenez e insignificância quando comparados ao infinito tamanho do universo [...]. Cada um de nós não é mais que uma partícula, um grão de areia, na vastidão do cosmo. Como disse Pascal no século XVII, ‘o silêncio eterno de espaços infinitos me assusta’.” P. 72-73.

Para terminar:

“Acredito que devemos confrontar a morte como fazermos com outros medos. Devemos contemplar nosso fim último, familiarizar-nos com ele, dissecá-lo e analisá-lo, raciocinar com ele e descartar aterrorizadoras distorções infantis sobre a morte. Não vamos concluir que a morte é dolorosa demais para ser suportada, que a ideia vai nos destruir, que a transitoriedade deve ser negada, pois a verdade tornaria a vida sem sentido. Essa negação sempre cobra um preço – o encolhimento da nossa vida interior, o embaçamento da visão, o achatamento da racionalidade”. P. 142.

terça-feira, 22 de maio de 2018

Em Defesa do Preconceito



DALRYMPLE, Theodore. Em Defesa do Preconceito. São Paulo: É Realizações, 2015. (PDF).

“O amor pela verdade, embora exista, é geralmente mais fraco do que o amor pelo poder”. P. 24.

Theodore Dalrymple é um Psiquiatra que tem uma substancial literatura que trata de temas culturais contemporâneos. O título desse livro é polêmico e pode gerar preconceito antes que o leiamos. A ideia que ele passa do que seja o preconceito é diferente do que vemos nos dicionários, apesar dele no início já trazer a definição padrão, no Dicionário de Oxford.

Para mim, preconceito é termos juízos injustificados sobre algo ou alguém, mas que podem estar corretos, apesar de não podermos no momento do julgamento, legitimá-los mediante bons argumentos baseados em evidências. Como bem falou Hao Wang, Ph.D em Filosofia na Universidade de Harvard:

"É claro que um preconceito não é necessariamente falso. E, sim, uma crença fortemente aceita e não garantida pelas evidências disponíveis, sendo a intensidade da convicção desproporcional em relação às evidências que a sustentam". P. 102.

BROCKMAN, John; MATSON, Katinka (Orgs). As Coisas São Assim: Pequeno Repertório Científico do Mundo que nos Cerca. São Paulo: Cia das Letras, 1997. (PDF).

Mas parece-me que o Dalrymple vê todo julgamento moral como preconceituoso, com a diferença de que uns são bons e outros são maus preconceitos. Para o autor todos os juízos valorativos são incapazes de serem justificados crítica e racionalmente. Contraditoriamente, ele escreveu um livro para mostrar a razoabilidade do que ele defende. Se tudo são preconceitos que não podem ser fundamentados com argumentos coerentes, como ele pode argumentar a favor do que defende, como sendo um bom preconceito? Ao que ele pode apelar, para mostrar a superioridade do que escreve, se não à argumentos que ele julga passados pelo crivo da coerência, consistência, validez e dados empíricos? Claro que ele acredita que a sua apologia é racional e coerente, e se ela é assim, ela já não é mais um preconceito de sua parte, mas um conceito bem formado.

Dalrymple trabalha mal, a ideia de preconceito. Em contrapartida, ele é um ótimo opositor do relativismo pós-moderno. E parte substancial de seu livro dedica-se a refutar as ideias e legado do Filósofo do século XIX, John Stuart Mill, a quem ele credita grande parte dos preconceitos danosos do nosso tempo.

Analisemos apenas um exemplo de sua confusão entre preconceito e conceito/ideia bem fundamentada:

“Derrubar determinado preconceito não significa destruir o preconceito enquanto tal. Na verdade, implica inculcar outro preconceito. O preconceito que afirma ser errado criar um filho fora do casamento foi substituído por outro que diz que não há absolutamente nada de errado com isso”. P. 32.

Há um equívoco aí. A pessoa que diz não ser errado criar um filho fora do matrimônio, pode apresentar evidências, tais como pesquisas históricas, antropológicas, sociológicas, psicológicas, dados, estudos de caso, e tantas outras provas circunstanciais que mostram que é totalmente razoável criar uma criança na ausência de um pai ou de uma mãe, e que isso não prejudicará a educação e desenvolvimento emocional dela. Neste caso, não seria mais um preconceito substituindo outro, mas, sim, um conceito bem fundamentado nas ciências disponíveis, mostrando, que quem defende a criação de filhos fora do casamento não está sendo preconceituoso. De modo semelhante, o que diz ser errado criar, poderá apresentar suas evidências avaliadas criticamente, e, assim, não será mais um (mau ou bom) preconceito, mas uma ideia firmada e alicerçada. Ele mesmo escreve:

“Ao surgirem diferenças irreconciliáveis, muitas das discussões sobre questões substantivas são hoje em dia encerradas da seguinte forma: ‘Bem, a minha opinião é tão válida quanto a sua’. Pouco importa se entre os debatedores existe alguém que fez um estudo profundo sobre a questão, tem mais evidências à disposição e construiu uma moldura lógica para articulá-las, e se as pessoas que reivindicam igual ‘validade’ para as suas opiniões sobre a questão nunca tenham antes pensado no assunto e se apresentam como totalmente ignorantes diante de tudo aquilo que é mais relevante". P. 50.

Se é dessa forma como está escrito acima, não é mais uma briga entre o mau preconceito e o bom preconceito. É a luta do preconceito contra o conceito bem pensado, avaliado e escrutinado pelas evidências. Dalrymple confunde alhos com bugalhos. O título de seu livro se presta a causar uma polêmica desnecessária. 

Ainda neste tema de filhos fora do casamento, ele conta que certas adolescentes (de 13 anos de idade) de Londres, substituíram o preconceito de não ter filhos ainda jovens, pelo preconceito de que é bom ser mãe precocemente na adolescência. Dalrymple vê ambas as visões como preconceituosas, com a distinção é claro de que o preconceito dessas adolescentes de serem mães jovens, é um mau preconceito que substituiu um bom preconceito. Mas pode-se mostrar a essas adolescentes, que ser mãe muito jovem não é legal, dando vários motivos e provas de que mães adolescentes perdem muitas oportunidades de estudo, perda de juventude, de que terão dificuldades em encontrar um bom emprego e etc. Mais uma vez repito: Neste caso, não seria preconceito algum, mas uma visão aprovada pelos inúmeros exemplos de mães jovens que foram prejudicadas por terem filhos tão cedo em suas vidas. Um conceito ancorado em boas provas. 

Ao longo do livro vários exemplos são dados sobre os preconceitos (que ele acha) ruins, que diga-se de passagem, são os que estão substituindo os milenares e centenários preconceitos (que ele acredita que a maioria deles são os bons preconceitos).

“Em geral é muito mais fácil substituir um bom preconceito por um ruim, do que o contrário, e talvez isso ocorra (falo aqui como alguém desprovido de crenças religiosas) porque o coração do homem se inclina mais ao mal do que ao bem, mais à gula do que à moderação, ao ódio do que ao amor, à preguiça e não à indústria, ao orgulho em vez da modéstia, e assim por diante.” P. 79.

Ele diz que banir as velhas proibições, resultarão em novas proibições.

“À medida que proibições morais tradicionais, inibições e antigas considerações são destruídas pela crítica corrosiva da verborreia filosófica, novas proibições imediatamente aparecerão para preencher o vácuo gerado.” P. 59.

“Uma filosofia que se destine a destruir a influência do costume, da tradição, da autoridade e do preconceito de fato destrói costumes particulares, como também tradições, autoridades e preconceitos específicos, mas apenas para substituí-los por outros. Tanto nesse aspecto da existência humana como em todos os outros, o novo poderá ser melhor que o antigo, mas também poderá ser pior”. P. 62.

Dalrymple dá umas boas cacetadas no relativismo, o que muito me agrada.  

“[...] é muito fácil exagerar ou superestimar a natureza provisória do conhecimento científico. Quando um biólogo eminente que conheço encontra alguém que diz a ele que, afinal de contas, a ciência trabalha apenas com hipóteses, ele costuma responder: 'Mas o sangue de fato circula'. Não mais esperamos que se façam experimentos cujo intuito seria provar a não circulação do sangue, da mesma forma que não esperamos que um matemático apareça com a hipótese de que dois mais dois não somariam quatro”. P. 47.

Mas o pessoal de humanas continua teimando, teimando e teimando - relativizando a ciência quando lhes é conveniente. Idolatram as verborragias de Foulcault e cia.

Ao contrário do que dizem os pós-modernos, o conhecimento verdadeiro pode ser buscado e alcançado.

“Depreende-se como uma das grandes conquistas de nossa civilização o fato de, num grau sem paralelo em outros lugares, ela ter criado os meios institucionais através dos quais o conhecimento genuíno pode ser buscado e disseminado, e por ter examinado simultânea e continuamente a força das evidências sobre as quais esse conhecimento se baseia. Essas instituições operam na medida em que são livres, é claro, embora não livres de preconceito ou de ideias preconcebidas, pois isso seria impossível, mas livres para examinar esses preconceitos e ideias preconcebidas à luz das novas evidências, modificando ou rejeitando os antigos modelos à medida que isso se torna intelectualmente necessário. Todavia, essa liberdade não pressupõe necessariamente o seu mau uso: o sábio questiona apenas aquelas coisas que merecem questionamento.” P. 47.

Algumas verdades também são ditas sobre o socialismo:

“Recentes tentativas de se promover a plena igualdade, tanto econômica quanto social, não foram completamente felizes, todavia. De fato, essas tentativas tiveram como resultado as piores atrocidades da história da humanidade. A mais radical entre elas foi a do Khmer Vermelho no Camboja, e o Sendero Luminoso no Peru cometeria atrocidades semelhantes, embora em escala muito maior caso não tivesse sido derrotado. É uma questão em aberto saber se, por trás do anseio por igualdade, esconde-se o anseio por poder. Tudo o que pode ser dito é que sempre que o anseio se expressa de maneira intransigente, os horrores mais atrozes advirão.” P. 75-76.

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Sobre a Tirania: Vinte Lições do Século XX Para o Presente



SNYDER, Timothy. Sobre a Tirania: Vinte Lições do Século XX Para o Presente. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. (PDF).

“A história tem o poder de familiarizar e também de advertir”. P. 06.

Timothy Snyder (Professor de História na Universidade de Yale), temendo o avanço de forças antidemocráticas em seu país (EUA), escreveu este livro, para alertar seus leitores contra a tirania política, que sempre está à espreita, sorrateiramente pronta a tomar conta das instituições sociais, políticas e econômicas. Como diz Snyder: “A não história não se repete, mas ensina”. P. 06. Ele faz uso dos três exemplos clássicos do século XXI (comunismo, fascismo e nazismo), conclamando a todos a detectarem certas características destes regimes tirânicos, totalitários e desumanos, que estão aí, sendo apologeticamente defendidos por muitos indivíduos, partidos políticos, instituições paramilitares e etc. Devemos contestar, refutar e lutar contra ideias e conceitos que firam o processo democrático, pois as carcaças moribundas da tríade diabólica do século passado ainda querem causar mais destruição.

"A história europeia do século XX nos mostra que as sociedades podem ruir, que as democracias podem entrar em colapso, que a ética pode ser aniquilada e que os homens comuns podem se ver diante de valas comuns com armas nas mãos". P. 07.

A URSS querendo pôr os seus planos em funcionamento, jogou a população camponesa mais pobre contra a que tinha mais terras, resultando na plena submissão e destruição de ambas.

"Na União Soviética governada por Ióssif Stálin, fazendeiros prósperos eram representados em cartazes de propaganda como porcos — uma desumanização que, num ambiente rural, sugere claramente o assassinato. Era o começo da década de 1930, quando o Estado soviético procurava dominar o campo e arrancar da zona rural o capital necessário para uma rápida industrialização. Os camponeses que eram donos de mais terras ou animais que outros foram os primeiros a perder o que tinham. Um vizinho retratado como um porco é uma pessoa de cuja terra você pode se apossar. No entanto, aqueles que obedeciam à lógica simbólica também se tornaram vítimas. Depois de fazer com que os camponeses mais pobres se voltassem contra os mais ricos, o poder soviético apoderou-se da terra de todos para criar novas fazendas coletivas. Uma vez completada, a coletivização levou grande parte do campesinato soviético a passar fome. Entre 1930 e 1933, milhões de pessoas na Ucrânia soviética, no Cazaquistão soviético e na Rússia soviética morreram de maneira horrível e humilhante. Antes que o processo de coletivização chegasse ao fim, os cidadãos soviéticos se alimentavam de cadáveres." P. 17.

Na oitava lição dada por Snyder, devemos nos destacar, e não sermos passivos diante do mal que se aproxima. Churchill é o seu exemplo:

“Adolf Hitler não demonstrava nenhuma animosidade especial em relação à Grã-Bretanha ou ao seu império, e na verdade imaginava uma divisão do mundo em esferas de interesses. Esperava que Churchill aceitasse uma composição depois da queda da França. Não foi o que Churchill fez. Ele disse aos franceses: ‘não importa o que vocês fizerem, vamos lutar sempre e para sempre’. [...] Na verdade, foi o próprio primeiro-ministro que ajudou os britânicos a se definirem como um povo altivo que resistiria com tranquilidade ao mal. Outros políticos teriam buscado o apoio da opinião pública britânica para pôr fim à guerra. Em vez disso, Churchill resistiu, inspirou e venceu.” P. 26.

Leiamos mais livros (bons), nos cerquemos de boas informações e conhecimento, nos afastemos das frivolidades da TV e a da internet.

“Há mais de meio século, os romances clássicos sobre o totalitarismo advertiram quanto à dominação das telas, à supressão dos livros, ao estreitamento do vocabulário e às dificuldades subsequentes de pensar. [...] Olhar para telas talvez possa ser inevitável, mas o mundo bidimensional faz pouco sentido, a menos que possamos recorrer a um arsenal mental formado em outro lugar. Quando repetimos as mesmas palavras e frases que aparecem nos meios de comunicação diários, aceitamos a ausência de um quadro referencial maior. Dispor desse quadro referencial exige mais conceitos, e ter mais conceitos exige leitura. Por isso, afaste as telas de sua vida e cerque-se de livros”. P. 30.

Sempre é um alento ler Historiadores não mancomunados com o relativismo pós-moderno:

"Abandonar os fatos é abandonar a liberdade. Se nada for verdadeiro, ninguém poderá criticar o poder, porque não haverá uma base para fazê-lo. Se nada for verdadeiro, tudo é espetáculo. A carteira mais recheada garante a pirotecnia mais ofuscante." P. 32.

“'O que é a verdade, afinal?' Às vezes as pessoas fazem essa pergunta porque não querem fazer nada. Aderindo ao cinismo genérico nos sentimos descolados e alternativos, mesmo quando afundamos com nossos concidadãos num atoleiro de indiferença. É a sua capacidade de discernir fatos que faz de você um indivíduo, da mesma forma que é a nossa confiança coletiva num conhecimento comum que faz de nós uma sociedade." P. 36.

Nesses tempos de tanta tensão política por todos lados, não é difícil vermos pessoas cegas pela ideologia que professam, e por políticos e figuras públicas que endeusam. É um antigo defeito humano, que Snyder exemplifica bem:

“Renunciar à diferença entre o que se quer ouvir e o que de fato é verdadeiro é uma maneira de se submeter à tirania. Essa recusa à realidade pode parecer natural e agradável, mas o resultado é o seu fim como indivíduo — e, assim, o colapso de qualquer sistema político que dependa do individualismo. [...] Doze anos mais tarde, após todas as atrocidades e no fim de uma guerra que a Alemanha tinha claramente perdido, um soldado amputado disse a Klemperer [Professor alemão] que Hitler ‘nunca disse uma só mentira. Eu acredito em Hitler’. [...] Depois que a verdade se [torna] oracular, em vez de factual, as evidências [são] irrelevantes. No fim da guerra, um trabalhador declarou a Klemperer que ‘compreender é inútil, é preciso ter fé. Eu acredito no Führer’.” P. 33.

Ah, o nosso mundo facebookiano...

“Na eleição presidencial de 2016, o mundo bidimensional da internet foi mais importante que o mundo tridimensional do contato humano. Pessoas que iam de porta em porta para fazer pesquisas de opinião ou angariar votos eram recebidas por cidadãos americanos espantados, que se davam conta de que teriam de falar de política com um ser humano de carne e osso, em vez de ver suas opiniões validadas por postagens no Facebook. No mundo bidimensional da internet, surgiram novas coletividades, invisíveis à luz do dia — tribos com diferentes visões do mundo, entregues a manipulações. (E, sim, há uma conspiração que se pode encontrar on-line: a conspiração para mantê-lo conectado, à procura de conspirações). P. 36.