terça-feira, 27 de abril de 2021

O Islã Prescreve o Apedrejamento Para Adúlteros? (1° Parte)

A religião do islã é frequentemente acusada de apoiar o apedrejamento por adultério. Se isso for verdade, seria mais uma prova cabal de que esse sistema religioso não é e nunca foi da paz, como se propaga tão fortemente por aí. Se essa religião preconiza em seus ensinos que pessoas que fazem sexo fora dos padrões estabelecidos por ela, devem e têm que ser mortas por tal “pecado”, ela será apenas mais um sistema totalitário e assassino, mostrando mais uma vez a sua face intrinsecamente violenta e em total desacordo com os valores mais elevados de tolerância, diversidade, paz e dignidade humana.

Mas então, o adultério é ou não é um crime que mereça pena capital na sharia islâmica? Há respaldo escriturístico no alcorão?

A revista Aventuras na História na matéria A Verdadeira Posição do Islamismo em Relação a Cruel Prática de Apedrejamentos, nega que o islã e sobretudo o alcorão exijam o apedrejamento para adúlteros. A revista pode ser acessada neste link:

Aventuras na História afirma:

“A pena de morte por apedrejamento para praticantes do adultério público (ou seja, com testemunhas e de conhecimento social) não consta no Corão, e tampouco é destinado apenas para as mulheres.”

É preciso dizer logo de cara, que essa revista não é nada confiável. É vergonhoso o quanto ela dissimula a realidade para defender uma religião tão intolerante e, que para piorar, esse mesmo sistema religioso não seria nada condescendente com boa parte do conteúdo que ela veicula, por não estar coadunado com a sharia (lei) islâmica. Ah, mas independentemente de qualquer coisa, a revista está compromissada com a verdade dos fatos, alguém pode afirmar. No entanto, infelizmente, não está.

A afirmação de que o Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, não prescreve/ordena o apedrejamento aos adúlteros, é verdadeira. Entretanto, essa não é toda história. A revista quer passar para os seus leitores a ideia de que no islã não existe essas práticas retrogradas e cruéis para os filhos rebeldes da religião. Porém, o que a matéria convenientemente deixa passar, é que o Alcorão na surata 24.2 diz que os adúlteros devem ser açoitados.

“À adúltera e ao adúltero açoitai a cada um deles com cem açoites. E que não vos tome compaixão alguma por eles, no cumprimento do juízo de Allah, se credes em Allah e no Derradeiro Dia. E que um grupo de crentes testemunhe o castigo de ambos.” P. 372.

100 açoites para cada um! Tem como afirmar diante de uma prática tão bárbara, que essa é a religião da paz? Mas a revista Aventuras na História passou longe de mencionar esse texto.

Quanto ao apedrejamento, olha que curioso o que o autor dessa tradução citada, o muçulmano Helmi NASR, professor de Estudos Árabes na USP, escreveu na nota de rodapé, sobre o verso dos açoites:

“Trata-se do adultério cometido entre pessoas não comprometidas pelo casamento, já que, o adultério cometido após este, é punido com apedrejamento.” P. 372.

Ou seja, ele não nega que existe a punição por apedrejamento no islã. Ele não é voz isolada nisso, muito pelo contrário, fala pela comunidade muçulmana majoritária. Voz isolada e vendida a dissimulação é essa revista.

Tradução do Sentido Nobre do Alcorão. 2ª Edição. Dr. Helmi NASR, Professor de Estudos Árabes e Islâmicos na Universidade de São Paulo.

A tradução do texto corânico publicado pelo Centro Cultural Beneficente Árabe Islâmico de Foz do Iguaçu, diz assim:

“Quanto à adúltera e ao adúltero, vergastai-os com cem vergastadas, cada um; que a vossa compaixão não vos demova de cumprir a lei de Deus, se realmente credes em Deus e no Dia do Juízo Final. Que uma parte dos fiéis testemunhe o castigo.” P. 299.

Olha outra coisa bem curiosa. Em nota explicativa, os muçulmanos desse centro islâmico dizem:

“A punição deve ser pública, para que seja dissuasiva.” P. 808.

Em miúdos, muçulmanos adúlteros devem apanhar em público, para que a sua humilhação sirva de exemplo para que os outros não caiam nesse grave pecado, e também sejam publicamente humilhados e dilacerados pelos açoites. Essa é a religião da paz e da tolerância, diz a mídia. 

Para comentar outro verso corânico, eles usam a surata 24.2 como texto prova de que ao adúltero cabe os 100 açoites, sem piedade alguma. E falam também no apedrejamento.

“A punição, nesta vida, para a falta de castidade de uma mulher casa é muito severa: para adultério, açoitamento em público de cem açoites, segundo o versículo 2 da 24ª Surata; ou para impudícia, a prisão (ver o versículo 15 da 4ª Surata); ou o apedrejamento até à morte, para o adultério, de acordo com certos precedentes estabelecidos no Direito Canônico.” P. 874.

O alcorão na surata 4.15 assim versa:

“Quanto àquelas, dentre vossas mulheres, que tenham incorrido em adultério, apelai para quatro testemunhas, dentre os vossos e, se estas o confirmarem, confinai-as em suas casas, até que lhes chegue a morte ou que Deus lhes trace um novo destino.” P. 82

Nota explicativa que o centro islâmico fornece para ele:

“A maioria dos jurisprudentes compreende que isto se refere ao adultério ou à fornicação; tal caso, eles consideram que a punição foi alterada para cem açoites, de acordo com o versículo 2 da 24ª Surata.” P. 608.

De acordo com os intérpretes muçulmanos, a punição para a surata acima foi ab-rogada, dando lugar aos 100 açoites! Quanta “afetuosidade” alá tem pelos seus! Ele “amorosamente” trocou o confinamento das mulheres em suas casas até a morte, pelas 100 “míseras” vergastadas (açoites) sem compaixão.

Pergunto: Que parte tem o islã com a paz e os direitos humanos?

Na tradução de Challita Mansour, o verso 24.2 está assim:

“A adúltera e o adúltero, castigai cada um deles com cem açoites; e não tenhais pena deles na religião de Deus se credes em Deus e no último dia.  E que um grupo de crentes assista ao castigo.” P. 184.

“Não tenhais pena deles” – Essa é a religião da misericórdia?

Portanto, diante das provas mostradas, por mais que o alcorão não ensine explicitamente o apedrejamento, ele deixa claro o açoitamento, uma prática bárbara e cruel por si mesma, que qualquer pessoa racional, de prontidão rejeitará veementemente, classificando o islã como incompatível com os ideais de empatia, alteridade, tolerância, liberdade e etc. 

Todavia, não paramos por aqui. A religião islâmica não está somente ancorada no seu livro sagrado. Ela também está alicerçada na tradição, nos hadiths, que são as narrativas do que Maomé fez e ensinou. A coleção canônica de hadiths mais confiável é a de Bukhari, e ela diz claramente o que Maomé fez com aqueles pegos em adultério: O apedrejamento.

Al-Bukhari - Volume 2, Livro 23, Número 413:

“Narrado 'Abdullah bin' Umar: O judeu trouxe ao Profeta um homem e uma mulher dentre eles que cometeram (adultério) relação sexual ilegal. Ele ordenou que os dois fossem apedrejados (até a morte), perto do local de oferecer as orações fúnebres ao lado da mesquita." P. 304.

Al-Bukhari - Volume 3, Livro 34, Número 421:

“Narrou 'Aisha: Sad bin Abi Waqqas e 'Abu bin Zam'a brigaram por causa de um menino. Sad disse: ‘Ó Deus do Apóstolo! Este menino é filho do meu irmão ('Utba bin Abi Waqqas) que recebeu uma promessa minha de que eu aceitaria ele como se fosse seu filho (ilegal). Olhe para ele e veja com quem ele se parece. ‘'Abu bin Zam'a disse: ‘Ó Apóstolo de Alá ! Este é meu irmão e nasceu na cama de meu pai de sua escrava.’ O Apóstolo de Alá lançou um olhar para o menino e encontrou uma semelhança definitiva com 'Utba e então disse: ‘O menino é para você, ó 'Abu bin Zam'a. A criança vai até o dono da cama e o adúltero só ganha as pedras (desespero, ou seja, ser apedrejado até a morte). Então o Profeta disse: ‘Ó Sauda bint Zama! Proteja-se de este menino.’ Então, Sauda nunca mais o viu.” P. 498.

Al-Bukhari - Volume 3, Livro 49, Número 860:

“Narrou Abu Huraira e Zaid bin Khalid Al-Juhani: Um beduíno veio e disse: ‘Ó Apóstolo de Allah! Julgue entre nós de acordo com as Leis de Allah.’ O oponente dele levantou-se e disse: ‘Ele está certo. Julgue entre nós de acordo com as Leis de Alá.’ O beduíno disse, ‘Meu filho era um trabalhador braçal que trabalhava para este homem, e ele cometeu relações sexuais ilegais com sua esposa. As pessoas me disseram que meu filho deveria ser apedrejado até a morte; então, em vez disso, paguei um resgate de cem ovelhas e uma escrava para salvar meu filho. Então eu perguntei aos estudiosos eruditos que disseram: ‘Seu filho tem que receber cem chicotadas e tem que ser exilado por um ano.’ O Profeta disse: ‘Sem dúvida vou julgar entre vocês de acordo com as Leis de Alá. A escrava e as ovelhas devem voltar para você, e seu filho receberá cem chibatadas e um ano de exílio.’ Ele então se dirigiu a alguém: ‘Ó Unais! vá até a esposa deste (homem) e apedreje-a até a morte.’ Então, Unais foi e apedrejou até a morte.” P. 616.

Al-Bukhari - Volume 4, Livro 56, Número 829:

“Narrado 'Abdullah bin' Umar: Os judeus foram até o Apóstolo de Alá e disseram-lhe que um homem e uma mulher dentre eles cometeu relações sexuais ilegais. O Apóstolo de Alá disse a eles: ‘O que você encontra na Torá (Antigo Testamento) sobre a punição legal de Ar-Rajm (apedrejamento)? ‘Eles responderam: (Mas) nós anunciamos seu crime e açoitá-los’. Abdullah bin Salam disse: ‘Você está mentindo; Torá contém a ordem de Rajm. ‘Eles trouxeram e abriram a Torá e um deles consolou sua mão no Versículo de Rajm e leu os versículos anteriores e posteriores. Abdullah bin Salam disse a ele: ‘Levante a mão’. Quando ele levantou a mão, o versículo de Rajm estava escrito lá. Eles disseram: ‘Muhammad disse a verdade; a Torá tem o versículo de Rajm. O Profeta então deu a ordem de que ambos deveriam ser apedrejados até a morte. ('Abdullah bin' Umar disse: ‘Eu vi o homem inclinado sobre a mulher para abrigá-la das pedras’.” P. 847.

Sahih Bukhari - Translator: M. Muhsin Khan - 1st edition. Edited by: Mika'il al-Almany. Created: 2009-10-02 17:41:54. Last modified: 2009-10-11 23:46:24 Version: 0910112346244624-21.

https://d1.islamhouse.com/data/en/ih_books/single/en_Sahih_Al-Bukhari.pdf

Como aporte a negação do apedrejamento, Aventuras na História afirma que a maioria dos países muçulmanos não o pratica, então, conclui "brilhantemente" que as pedradas nos pecadores sexuais não é um ensinamento do islã.

“Uma prova de que essa não é uma prática inerente ao Islã é o fato de que, dos mais de cinquenta países muçulmanos no mundo, apenas sete ainda possuem essa pena retrógrada.”

O apedrejamento é parte das correções válidas para o muçulmano até hoje. Se ele não é largamente praticado, isso é outra história. Maomé e os seus discípulos praticaram, e não existe indicativo algum de que Maomé o proibiu posteriormente. O fato de uma maioria religiosa não praticar alguns dos ditames de sua religião hoje em dia, não quer dizer que eles foram revogados, proibidos, ou substituídos. Na realidade, acontece exatamente o contrário na maioria das vezes: os fiéis é que deixam de lado os ensinos de sua religião. Um exemplo bem patente é o sexo fora do casamento entre os cristãos. Isso diz algo sobre a proibição do sexo antes do matrimônio não ser mais válida? Absolutamente que não. Apenas os cristãos de um modo geral desobedecem a esse mandamento. De maneira similar, se os muçulmanos não praticam o apedrejamento como antes, é porque estão em desarmonia com os ensinos de sua religião.

Acrescento ainda que se o critério usado pela revista de que o apedrejamento “não é inerente ao islã” pelo fato de a maioria dos países muçulmanos não o praticar, então a revista pelos mesmos critérios que adota, deve admitir de prontidão que os crimes contra as mulheres que são inferiorizadas, sem liberdades, assassinadas; e de perseguição aos cristãos e outros religiosos; fora tantas outras atitudes contra os direitos humanos são parte inerente do islã, visto que são práticas rotineiras nas sociedades islâmicas. Duvido que ela admita isso. E infelizmente é triste saber que todos esses componentes de fato são parte dos ensinamentos do islã.

E são apenas sete países que praticam o apedrejamento, como diz a revista? Não.

“Nos últimos tempos, o apedrejamento tem sido uma punição legal ou costumeira no Irã, Emirados Árabes Unidos, Iraque, Qatar, Mauritânia, Arábia Saudita, Somália, Sudão, Iêmen, norte da Nigéria, Afeganistão, Brunei e partes tribais do Paquistão, incluindo o noroeste de Kurram Valley e a região noroeste de Khwezai-Baezai.”

O apedrejamento é apenas uma das punições que existe no islã. Como já foi demonstrado, as chicotadas fazem parte do time também. Fora a pena de morte para os apóstatas, e tantas outras mais.

Uma outra prova que Aventuras na História lança para sua defesa do islã é esta:

“A maioria do clero islâmico mundial repudia o apedrejamento hoje em dia.”

Mesmo que isso fosse verdadeiro, não anularia os mandamentos da religião que estão muito bem fundamentados na vida de Maomé e na teologia islâmica histórica. E duvido muito que esses clérigos islâmicos estejam falando a verdade. Líderes islâmicos são notórios em dizer X ao público de fora, para aplacar a opinião pública, mas entre os seus, dizerem exatamente o oposto. A Taquyia, mentira sagrada para propagação do islã, é largamente difundida entre eles. Mentem, omitem e dissimulam!  

Segundo a revista, quem lê o alcorão e encontra apoio para o apedrejamento, na realidade está impondo os seus desejos nefastos ao texto, visto que ele não ensina isso.

“Quando o Corão ou a Bíblia legitimam tal prática, é resultado do ímpeto daquele que lê, e culpar a religião isoladamente é um recurso pueril.”

Diante de toda a refutação exposada, o único “recurso pueril” vem dessa revista, que deve ser lida com muita cautela, pois não tem compromisso com a verdade, ao contrário do que diz a sua matéria. O comprometimento dela é com a estupidez do politicamente correto, que nada mais é que ideologia, sem respaldo nos fatos. 

Essa revista além de mentirosa, é incompetente, pois no final de sua matéria, entre as indicações de livros sobre o islamismo, ela indica a obra Entenda o Islã, da Christine Schirrmacher, uma expert em islã, que mostra de cabo a rabo nesse livro, o quanto o islã é opressivo e violento, sobretudo com as mulheres. 

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Manifesto do Partido Comunista



ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. 2ª Ed. Portugal, Lisboa: Avante, 1997. (PDF).

“Anda um espectro pela Europa — o espectro do Comunismo.” 

Karl Marx desperta paixões! Desperta amor! Desperta ódio!

Muitos desejam que ele esteja no lugar mais quente do inferno. Motivo? Suas ideias que serviram de inspiração para os governos comunistas/socialistas do século XX, que redundaram no mais pleno fiasco, tendo a URSS o seu maior exemplo de fracasso, e, o pior, a morte de milhões e milhões de pessoas. Fora a total falta de liberdade de expressão, impressa, ideias, religião e locomoção. Os que odeiam Marx podem ainda citar os atuais governos comunistas da Coreia do Norte e Cuba, sobretudo o primeiro, onde reina o caos, a fome, os assassinatos e toda sorte de malefícios aos seus cidadãos.

Na contramão, não são poucos os que idolatram o velhinho de barba do século XIX. Professores nas cátedras de humanas, estão aos montes, para celebrar Marx e o seu “materialismo histórico”, que dizem ser o maior empreendimento intelectual para entender e dar sentido a todos os processos históricos, que estão assentados na infraestrutura econômica, de onde emerge a superestrutura (filosofia, religião, ideias). Uns ainda sonham com o utópico paraíso comunista, em que a sociedade como um todo, estará plenamente assentada na igualdade social, inexistindo as antigas relações de opressores (burguesia) e oprimidos (proletários).  

Karl Marx (1818-18830 foi um autor prolífico. Sua obra é vasta e complexa, onde poucos se atrevem a ler o seu mais monumental livro – O Capital. Nesses dois times de detratores e fãs, poucos foram aqueles que leram pelo menos metade de seus escritos, sobretudo O Capital, que não é uma obra fácil e atraente de ler, além de ser muito extensa, com mais de duas mil e quinhentas páginas! Quem é o maluco para se aventurar? Eu que não me arrisco. Prefiro ler o Manifesto do Partido Comunista e outras obras que comentam, interpretam, desvelam o pensamento de Marx e de seu companheiro intelectual Friedrich Engels (1820-1895), seja criticando, ou elogiando, ou tentando ser neutra. Muitos críticos e entusiastas de Marx, nem isso fazem. Ficam nos pequenos vídeos de cinco, dez, quinze minutos...

Em todo caso, aqui estamos no Manifesto. Este opúsculo foi lançado em 1848. Teve ainda no século XIX, diversas traduções e reedições nos vários países europeus e na América do Norte, sendo um sucesso entre os movimentos proletários, germinando as ideias que viriam a configurar o arcabouço intelectual do comunismo e, de como ele suplantaria o capitalismo burguês, dando lugar a sociedade sem classes, mais justa e igualitária.

O Manifesto começa com um ar triunfal:

“Anda um espectro pela Europa — o espectro do Comunismo. Todos os poderes da velha Europa se aliaram para uma santa caçada a este espectro, o papa e o tsar, Metternich e Guizot, radicais franceses e polícias alemães. [...] O comunismo já é reconhecido por todos os poderes europeus como um poder. Já é tempo de os comunistas exporem abertamente perante o mundo inteiro o seu modo de ver, os seus objectivos, as suas tendências, e de contraporem à lenda * do espectro do comunismo um Manifesto do próprio partido.” P. 28.

Marx e Engels dizem que a burguesia rompeu com todos os laços medievais, destruindo todas as relações então existentes. Aquele ambiente bucólico da Idade Média tinha se desfeito sem pudor. O valor de troca, o comércio, desbancaram sem piedade os laços que prendiam o homem do campo aos seus senhores naturais. A burguesia causou um racha sem volta e inexorável nas formas de viver e ver o mundo. As relações de produção foram irredutivelmente modificadas, dando lugar ao novo social, e, com ele, a um novo antagonismo entre as classes dos opressores e oprimidos. Os enganos vindos da religião e a política agora eram abertos, sem subterfúgios. O que era sagrado a burguesia dessacralizou. Tudo era movido por dinheiro e pelo dinheiro.

“Numa palavra, no lugar da exploração encoberta com ilusões políticas e religiosas, pôs a exploração seca, directa, despudorada, aberta.

A burguesia despiu da sua aparência sagrada todas as atividades até aqui veneráveis e consideradas com pia reverência. Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados pagos por ela.

A burguesia arrancou à relação familiar o seu comovente véu sentimental e reduziu-a a uma pura relação de dinheiro.” P. 32.

Com o boom da revolução industrial, a ascensão cada vez mais evidente da burguesia e a desenfreada produção cada vez mais gigantes de produtos, estes tinham ser vendidos, escoados, postos à disposição de compradores, não apenas na Europa, mas em cada recanto do planeta.

“A necessidade de um escoamento sempre mais extenso para os seus produtos persegue a burguesia por todo o globo terrestre. Tem de se implantar em toda a parte, instalar-se em toda a parte, estabelecer contactos em toda a parte.” P. 32-33.

“As relações burguesas tornaram-se demasiado estreitas para conterem a riqueza por elas gerada. — E como triunfa a burguesia das crises? Por um lado, pela aniquilação forçada de uma massa de forças produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais profunda de antigos mercados.” P. 35.

Como o sistema capitalista aí está, mais forte do que nunca, esse escoamento continua numa proporção jamais imaginada por Marx e Engels. Com a era dos eletrônicos, somos constantemente “obrigados” a trocar de celulares, televisores, notebooks, tablets e outras parafernálias digitais, todos os anos. Isso sem falar em carros, roupas... As empresas para sobreviverem, precisam estar dissimulando a todo momento, novas necessidades para vender e não ficarem para trás e falirem. Isto é uma bola de neve, pois se falirem, muitos ficarão sem empregos. Portanto, para que tudo funcione “direitinho” é preciso colocar no mercado produtos atraentes que escoem o mais rápido possível. Estamos presos em uma teia inescapável. Sem o consumo exagerado, o mundo vai à bancarrota. É salutar para o empresariado, convencer as pessoas de que elas precisam de seus produtos inovadores, para que daí possam ser gente de verdade, descoladas, alinhadas com a moda, com o que o mundo tem de melhor. Essa psicologia barata tem dado certo. É aquele velho clichê de que na sociedade capitalista, as pessoas serão vistas pelo que tem, e não pelo que são.

A dupla dinâmica escreve:

“Para o lugar das velhas necessidades, satisfeitas por artigos do país, entram [necessidades] novas que exigem para a sua satisfação os produtos dos países e dos climas mais longínquos. Para o lugar da velha auto-suficiência e do velho isolamento locais e nacionais, entram um intercâmbio omnilateral, uma dependência das nações umas das outras. E tal como na produção material, assim também na produção espiritual. Os artigos espirituais das nações singulares tornam-se bem comum. A unilateralidade e estreiteza nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis, e das muitas literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura mundial.

A burguesia, pelo rápido melhoramento de todos os instrumentos de produção, pelas comunicações infinitamente facilitadas, arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para a civilização. Os preços baratos das suas mercadorias são a artilharia pesada com que deita por terra todas as muralhas da China, com que força à capitulação o mais obstinado ódio dos bárbaros ao estrangeiro. Compele todas as nações a apropriarem o modo de produção da burguesia, se não quiserem arruinar-se; compele-as a introduzirem no seu seio a chamada civilização, i. é, a tornarem-se burguesas. Numa palavra, ela cria para si um mundo à sua própria imagem.” P. 33.

Quando eles falam da China, não tem como não lembrar do que as potências capitalistas fizeram a ela no século XIX, com as Guerras do Ópio (1839-1842, 1856-1860) que forçaram a China a abrir cinco de seus portos para a Inglaterra e outros países, e a entregar a ilha de Hong Kong aos britânicos. Era o “livre comércio” sendo imposto na base do cacete. Não bastando, ainda teve a Guerra dos Boxers, em que a Inglaterra, Rússia, França, Japão, Estados Unidos e Alemanha, invadiram a China obrigando o país a reconhecer de uma vez por todas, as concessões de que gozavam as potencias imperialistas. A ironia macabra disso tudo, é que atualmente a China está tomando conta de tudo, chegando em breve a ser a maior economia e potência mundial, comprando ações, universidades, países, impondo sua ética política, subjugando vários setores do mundo ocidental e não ocidental. O Ocidente está pagando pelos pecados de outrora?

Com a burguesia tomando conta de todos os setores de produção e venda, além dos proletários das fábricas, ela tinha os seus contestadores entre os pequenos comerciantes, camponeses... Mas Marx e Engels chegam a prever que apesar de ainda de serem reacionários, finalmente serão absorvidos na grande massa de proletários, rumo a sociedade comunista.  

“Os estados médios [Mittelstände] — o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o artesão, o camponês —, todos eles combatem a burguesia para assegurar, face ao declínio, a sua existência como estados médios. Não são, pois, revolucionários, mas conservadores. Mais ainda, são reaccionários, procuram fazer andar para trás a roda da história. Se são revolucionários, são-no apenas à luz da sua iminente passagem para o proletariado, e assim não defendem os seus interesses presentes, mas os futuros, e assim abandonam a sua posição própria para se colocarem na do proletariado.” P. 39.

A dupla Batman e Robbin afirma que o modo de pensar do proletariado é totalmente distinto dos pensamentos, ética, moral e justiça dos opressores da classe dominante. A destruição da superestrutura em todas as suas facetas burguesas deve ser colocada abaixo, para que dela surja a nova sociedade. É uma ruptura total com as verdades ditas eternas legadas pela burguesia e pelas sociedades anteriores, onde sempre foi regra a opressão de uma parte por outra. Primeiro começa-se a luta proletária em seus respectivos países, para depois irromper-se pelo mundo. Para isto acontecer, a violência é um caminho legítimo.

“As leis, a moral, a religião são para ele outros tantos preconceitos burgueses, atrás dos quais se escondem outros tantos interesses burgueses. [...] Os proletários nada têm de seu a assegurar, têm sim de destruir todas as seguranças privadas e asseguramentos privados. [...] O proletariado, a camada mais baixa da sociedade actual, não pode elevar-se, não pode endireitar-se, sem fazer ir pelos ares toda a superestrutura [Überbau] das camadas que formam a sociedade oficial. [...] Ao traçarmos as fases mais gerais do desenvolvimento do proletariado, seguimos de perto a guerra civil mais ou menos oculta no seio da sociedade existente até ao ponto em que rebenta numa revolução aberta e o proletariado, pelo derrube violento da burguesia, funda a sua dominação.” P. 40.

“À medida que é suprimida a exploração de um indivíduo por outro, é suprimida a exploração de uma nação por outra. [...] Será preciso uma inteligência profunda para compreender que com as relações de vida dos homens, com as suas ligações sociais, com a sua existência social, mudam também as suas representações, intuições e conceitos, numa palavra, [muda] também a sua consciência?” P. 48.

“A revolução comunista é a ruptura mais radical com as relações de propriedade legadas; não admira que no curso do seu desenvolvimento se rompa da maneira mais radical com as ideias legadas.” P. 49.

“Para o lugar da velha sociedade burguesa com as suas classes e oposições de classes entra uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos.” P. 51.

Neste aspecto é que recaem muitas críticas a Marx, devido aos seus desejos(?) de solapar tudo que tinha sido construído até então pela civilização ocidental: seus valores que regulam a civilização. “Derrube violento da burguesia” – Não era difícil um proletário pensar assim, diante das agruras que sofria nas fábricas insalubres em que trabalhava que nem um animal, por horas a fio, para ganhar um salário miserável, que dava apenas para mal se alimentar e enriquecer os seus patrões. Eu não teria piedade alguma. 

O declínio da burguesa e poder nas mãos do proletário chegaria muito em breve. Essa é uma das “profecias” de Marx que mais causa riso em seus críticos, pois como sabemos, ela não se confirmou.

“Torna-se com isto evidente que a burguesia é incapaz de continuar a ser por muito mais tempo a classe dominante da sociedade e a impor à sociedade como lei reguladora as condições de vida da sua classe. Ela é incapaz de dominar porque é incapaz de assegurar ao seu escravo a própria existência no seio da escravidão, porque é obrigada a deixá-lo afundar-se numa situação em que tem de ser ela a alimentá-lo, em vez de ser alimentada por ele. A sociedade não pode mais viver sob ela [ou seja, sob a dominação da burguesia], i. é, a vida desta já não é compatível com a sociedade.

A condição essencial para a existência e para a dominação da classe burguesa é a acumulação da riqueza nas mãos de privados, a formação e multiplicação do capital; a condição do capital é o trabalho assalariado. O trabalho assalariado repousa exclusivamente na concorrência entre os operários. O progresso da indústria, de que a burguesia é portadora, involuntária e sem resistência, coloca no lugar do isolamento dos operários pela concorrência a sua união revolucionária pela associação. Com o desenvolvimento da grande indústria é retirada debaixo dos pés da burguesia a própria base sobre que ela produz e se apropria dos produtos. Ela produz, antes do mais, o seu  próprio coveiro. O seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.” P. 41.

Em uma das citações anteriores, Marx/Engels falam sobre o proletariado “destruir todas as seguranças privadas e asseguramentos privados.” O que eles queriam dizer com isso? Muito se fala que Marx era contra a propriedade privada, e queria a sua total abolição. O Manifesto explica o que ele quis dizer com isso.

“Neste sentido, os comunistas podem condensar a sua teoria numa única expressão: supressão [Aufhebung] da propriedade privada.

Têm-nos censurado, a nós, comunistas, de que quereríamos abolir a propriedade adquirida pessoalmente, fruto do trabalho próprio — a propriedade que formaria a base de toda a liberdade, actividade e autonomia pessoais.

Propriedade fruto do trabalho, conseguida, ganha pelo próprio! Falais da propriedade pequeno-burguesa, pequeno-camponesa, que precedeu a propriedade burguesa? Não precisamos de a abolir, o desenvolvimento da indústria aboliu-a e abole-a diariamente.” P. 43.

Marx/Engels continuam:

“Mas será que o trabalho assalariado, o trabalho do proletário, lhe cria propriedade? De modo nenhum. Cria o capital, i. é, a propriedade que explora o trabalho assalariado, que só pode multiplicar-se na condição de gerar novo trabalho assalariado para de novo o explorar. A propriedade, na sua figura hodierna, move-se na oposição de capital e trabalho assalariado.” P. 44.

...

“Horrorizais-vos por querermos suprimir a propriedade privada. Mas na vossa sociedade existente, a propriedade privada está suprimida para nove décimos dos seus membros; ela existe precisamente pelo facto de não existir para nove décimos. Censurais-nos, portanto, por querermos suprimir uma propriedade que pressupõe como condição necessária que a imensa maioria da sociedade não possua propriedade.

Numa palavra, censurais-nos por querermos suprimir a vossa propriedade. Certamente, é isso mesmo que queremos.

[...]

Concedeis, por conseguinte, que por pessoa não entendeis mais ninguém a não ser o burguês, o proprietário burguês. E esta pessoa tem certamente de ser suprimida.

O comunismo não tira a ninguém o poder de se apropriar de produtos sociais; tira apenas o poder de, por esta apropriação, subjugar a si trabalho alheio.

Tem-se objectado que com a supressão da propriedade privada cessaria toda a actividade e alastraria uma preguiça geral.

De acordo com isso, a sociedade burguesa teria há muito de ter perecido de inércia; pois os que nela trabalham não ganham, e os que nela ganham não trabalham. Toda esta objecção vai dar à tautologia de que deixa de haver trabalho assalariado assim que deixar de haver capital.” P. 45.

Sabe aquela história de “família burguesa opressora”? Pois é, ela tem que ser abolida. Qual a qualificação e o porquê de Marx/Engels nesta abolição?

“Supressão da família! Até os mais radicais se indignam com este propósito infame dos comunistas.

Sobre que assenta a família actual, a família burguesa? Sobre o capital, sobre o proveito privado. Completamente desenvolvida ela só existe para a burguesia; mas ela encontra o seu complemento na ausência forçada da família para os proletários e na prostituição pública.

A família dos burgueses elimina-se naturalmente com o eliminar deste seu complemento, e ambos desaparecem com o desaparecer do capital.

Censurais-nos por querermos suprimir a exploração das crianças pelos pais? Confessamos este crime.

Mas, dizeis vós, nós suprimimos as relações mais íntimas ao pormos no lugar da educação doméstica a social.” P. 46.

Marx/Engels passeiam rapidamente pelo socialismo utópico que precedeu o pensamento comunista propriamente dito, sendo os seus maiores representantes Saint-Simon, Fourier, Owen e outros mais, que pregavam uma revolução desprovida de conteúdo, sem terem desenvolvido as armas teóricas e organizativas para enfrentar a classe burguesa, não pensando num movimento político revolucionário onde a classe oprimida toma as rédeas da história.

“A forma não desenvolvida da luta de classes assim como a sua própria situação de vida implicam, porém, que eles creiam estar muito acima daquela oposição de classes. Querem melhorar a situação de vida de todos os membros da sociedade, mesmo dos mais bem colocados. Por isso apelam continuamente à sociedade toda sem diferença, e de preferência à classe dominante.

É só preciso entender o seu sistema para reconhecer nele o melhor plano possível para a melhor sociedade possível. Rejeitam, por isso, toda a acção política, nomeadamente toda a acção revolucionária, querem atingir o seu objectivo por via pacífica e procuram, com pequenos experimentos naturalmente condenados ao fracasso, abrir pela força do exemplo o caminho ao novo evangelho social.” P. 61.

Por último, a previsão de Marx/Engels era de que a grande revolução proletária aconteceria em breve na Alemanha.

“Para a Alemanha dirigem os comunistas a sua atenção principal, porque a Alemanha está em vésperas de uma revolução burguesa e porque leva a cabo este revolucionamento em condições de maior progresso da civilização europeia em geral e com um proletariado muito mais desenvolvido do que a Inglaterra no século XVII e a França no século XVIII, porque a revolução burguesa alemã só pode ser, portanto, o prelúdio imediato de uma revolução proletária.” P. 64.

Como sabemos, isso não aconteceu.

sábado, 24 de abril de 2021

Marx em 90 Minutos


STRATHERN, Paul. Marx em 90 Minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. (PDF). 

O presente livreto arranha algumas coisinhas sobre Marx e seu pensamento. Eu particularmente, gosto muito desta série 90 Minutos. Os chatos de plantão, os “sabidões”, os “fodões”, não apreciam. Acham que poucas páginas não podem sintetizar a complexidade da vida e obra de um Marx, Darwin, Kant e os demais. Mas aprende-se muito mais lendo esses livrinhos introdutórios, do que assistindo as aulas desses pedantes.

 Paul Strathern, Professor de Filosofia e Matemática na Universidade de Kingston, Londres, de cara já escreve:

“Marx propôs o comunismo como a resposta [para obtenção de direitos iguais]. A experiência do século XX nos ensinou em termos nada incertos que essa resposta não funciona. Ainda assim, várias das críticas mais argutas que Marx fez ao capitalismo permanecem sem resposta. As questões de justiça social que ele suscitou — urgentes e cruciais na época — continuam pertinentes.” P. 05.

Marx nasceu em 1818. Logo cedo, quando tinha 17 anos, ele deixou os seus estudos secundários. Porém, aprendeu 24 línguas. Ele assistiu de perto, toda a situação precária em que os trabalhadores ingleses viviam nas mãos dos burgueses, que os exploravam com jornadas diárias de trabalho extenuantes, em troca de salários baixíssimos, fora a exploração de crianças e mulheres. Tal situação de calamidade não podia continuar. O que fazer então?

“Quando a produção e a comercialização de bens são inteiramente motivadas pelo lucro, a justiça social e até as necessidades humanas básicas são desprezadas. Um mundo econômico como esse, que encontra sua razão de ser exclusivamente no lucro, resulta em relações sociais grotescamente distorcidas que afetam toda a atividade humana.” P. 18.

Diante das agruras sofridas pela classe de milhões de trabalhadores nas fábricas insalubres da Inglaterra e outros lugares, fruto da Revolução Industrial iniciada no século XVIII, como Marx orquestrou o seu pensamento, para girar a roda da história em 360° em favor da maioria, os proletários? De modo pacífico, através do diálogo com a burguesia (a diminuta classe de pessoas que detinha praticamente toda a riqueza gerada)? Esta, depois de um bom papo com os trabalhadores, cederia aos seus privilégios?

“[...] ele acreditava que a revolução era a resposta, e logo se tornou um dos novos comunistas. Mas como a revolução poderia ocorrer? Primeiro, um programa intelectual completo devia ser elaborado. E, se a política devia mudar, o mesmo devia acontecer com a economia. Marx iniciou um intenso estudo do fundador da economia, o escocês Adam Smith, e de seu sucessor, o inglês David Ricardo. Ao mesmo tempo começou a elaborar um arcabouço filosófico para seu pensamento, na forma de sua própria epistemologia. Quais são as bases para nosso conhecimento do mundo? Como sabemos o que sabemos, e como sabemos se isso é verdadeiro? [...] ele desejava basear todo o conhecimento em premissas estritamente científicas.” P. 09-10.

Qual era então a epistemologia de Marx?

“Para Marx, nosso conhecimento tem origem em nossa experiência — nossas sensações e percepções — do mundo material. Mas o materialismo de Marx diferia significativamente do de seus predecessores. Estes tendiam a considerar a sensação e a percepção em termos passivos. A luz atinge nossos olhos, nós sentimos o calor, ouvimos um som. Nossa percepção de tais coisas não as altera de maneira nenhuma: são coisas que nos afetam. Para Marx, por outro lado, essa percepção era uma interação entre nós, o sujeito, e o objeto material. Esse objeto (o mundo à nossa volta) é transformado no processo de ser conhecido. Nossa percepção não descobre a verdade do mundo, apenas sua aparência. Portanto, também nosso conhecimento não pode ser a verdade. Ele consiste, isto sim, em métodos práticos pelos quais podemos manipular o mundo natural e adquirir controle sobre ele. Nosso conhecimento do mundo não é passivo, ele tem um propósito. É um processo de duas vias — ativo e reativo - em conformidade com a dialética.

A síntese de conhecimento científico que assim adquirimos permite-nos impor padrões de ordem aos funcionamentos da natureza, manipulá-los e antecipá-los. Esse processo não alcança a verdade como esta é usualmente concebida. ‘Saber se é possível atribuir verdade objetiva ao pensamento humano nada tem a ver com teoria, é uma questão puramente prática. A verdade é a realidade e o poder do pensamento, que só podem ser demonstrados na prática.’ Isso leva Marx à sua famosa conclusão: ‘Antes os filósofos apenas interpretavam o mundo; ... a questão, porém, é transformá-lo.’

Esta afirmação deu margem a muitas interpretações. Tomada como uma atitude filosófica, pareceria invalidar inteiramente seu autor como filósofo — pois defende o abandono da filosofia em favor da ação política. Sua famosa observação fica portanto aberta a todas as objeções filosóficas apresentadas contra ela. Contudo, se for vista à luz da epistemologia de Marx — um processo interativo —, ela tem de fato valor filosófico. Ele está defendendo uma idéia profunda. Verdade absoluta é algo que simplesmente não existe. Aprendemos como o mundo funciona para usá-lo, para viver nele. Infelizmente, mesmo no contexto original da sua afirmação Marx parecia querer dizer as duas coisas.” P. 10.

Tudo isso aí, soa como o mais puro relativismo. A coisa é simples de entender: Marx queria trocar a verdade da burguesia, pela verdade do proletariado comunista. A verdade para ele, não existe metafisicamente, como bem explica Antônio Carlos Mazzeo (Doutor em História Econômica pela USP):

“[Para Marx] todas as ‘verdades’ [...] são históricas. Valem pro momento. Elas não valem nem pro passado e nem pro futuro. Você explica a realidade, a partir dela mesma”.

Algumas páginas a frente, Strathern relata um caso que evidencia que a verdade para Marx, era apenas um meio manipulativo para se alcançar um fim.

“Quando a Revolta dos Sipaios foi deflagrada na Índia, seu editor pediu-lhe que previsse o resultado, e ele [Marx] escreveu a Engels: ‘É possível que eu faça papel de burro. Mas nesse caso sempre dá para escapar com um pouquinho de dialética. Formulei minha proposição, é claro, de modo a estar certo em qualquer caso'. (Assim começou uma tradição marxista que sobreviveria ao colapso tanto do Império Britânico quanto do Soviético.)” P. 16.

A obra mais lida e conhecida de Marx, é o Manifesto do Partido Comunista, que teve como coautor, seu amigo Friedrich Engels. Neste pequeno livro, Marx defendeu:

“[...] o imposto de renda progressivo, a abolição do trabalho infantil e a educação gratuita para todas as crianças, que hoje aceitamos como norma. Outras, como a abolição da propriedade privada e o estabelecimento de um monopólio estatal sobre os bancos, as comunicações, os transportes e todas as formas de produção, foram tentadas.” P. 13.

O pai do comunismo cientifico tinha saúde frágil e não era nenhum santo.

“Marx começou a sofrer de penosos furúnculos, uma maldição de proporções bíblicas que continuou a arruinar sua débil estrutura até o fim de seus dias. Outros na família, entretanto, não tinham a mesma resistência, e mais dois de seus filhos morreram na infância. Como se tudo isso não fosse ruim o suficiente, Marx ainda teve um caso com a criada da família, Lenchen Demuth, e engravidou-a.” P. 15.

Duas de suas filhas, infelizmente, tiraram a própria vida.

“A filha mais velha de Marx, Laura, se suicidaria junto com o marido anarquista com quem vivia na pobreza em Paris. A favorita dele, Tussy, escolheu o mesmo caminho após ser rejeitada por seu amante mulherengo, que chegou a lhe fornecer o ácido prússico que ela tomou, tendo uma morte dolorosíssima.” P. 15.

Strathern desvela sobre a pobreza de Marx, sua relação com o trabalho, com Engels e com o dinheiro deste, gastos e etc.

“Segundo todos os relatos, a pura irresponsabilidade era o principal fator da persistente pobreza de Marx. Engels continuou a enviar-lhe dinheiro regularmente, e Marx foi até admitido como correspondente em Londres do New York Daily Tribune, na época o jornal de maior circulação do mundo. Foi contratado para escrever dois comentários por semana sobre as notícias da Grã-Bretanha e do Império, que muitas vezes eram redigidos às pressas por Engels, para que o prazo não estourasse.

[...]

Embora Marx estivesse tendo um rendimento regular, sua correspondência com Engels incluía freqüentes pedidos desesperados de mais dinheiro, sob a alegação da chegada iminente de oficiais de justiça, da falta de comida em casa e que tais. Ele era completamente aberto na discussão de suas idéias políticas com Engels, e essa intimidade se estendia à sua vida pessoal — indo mesmo além de suas emergências financeiras para incluir detalhes como a erupção de um furúnculo em seu pênis ou o comentário de que resolvera relaxar e ficar em casa porque empenhara seu único par de calças para poder comprar charutos. Karl Marx ou Groucho Marx? Às vezes é difícil dizer. Para citar algumas estatísticas econômicas relevantes — como Marx tanto gostava de fazer em suas obras —, ele ganhava 150 libras por ano de Engels, além de duas libras por cada um de seus artigos bissemanais para o Tribune. Mesmo em suas marés mais baixas, seu rendimento anual nunca foi inferior a 200 libras, enquanto um escrevente ganhava nessa época 75 libras. As despesas de Marx eram modestas: seu aluguel anual na Dean Street era de apenas 22 libras, e Lenchen devia receber 20 libras (se é que algum dia foi paga). De alguma forma as 178 libras restantes do rendimento de Marx simplesmente evaporavam no ar anuviado de tabaco enquanto ele, de cueca, tomava banho de sol à janela.” P. 16.

Nada de trabalhar usando a força física.

“Marx se recusava terminantemente a se rebaixar a qualquer trabalho braçal, preferindo escrever extensamente sobre tal atividade. Isso levou sua mãe a comentar, exasperada: ‘É uma pena que o pequeno Karl não produza algum capital, em vez de só escrever sobre ele’.” P. 16.

“Apesar de sua relutância em prover materialmente a família, Marx foi sempre um páter-famílias muito querido, a quem todos chamavam pelo apelido de ‘Mouro’.” P. 16.

As predições de Marx sobre a derrocada iminente do capitalismo, fracassaram.

“Como a história mostrou, no entanto, o erro estava muito mais nas pessoas que operavam o sistema, e na liberdade que lhes era concedida, do que no sistema em si. O poder desenfreado sempre foi uma receita de exploração e hipocrisia. O sistema capitalista em si tem apenas parte da culpa. O capitalismo parece ser como a democracia de Churchill: ‘A pior forma de governo, exceto todas as outras que foram tentadas’.” P. 21.

“O que Marx não compreendeu foi que as contradições internas do capitalismo teriam um grande papel estimulando sua evolução, e não destruindo-o. Marx não foi o único a compreender mal o capitalismo. Nenhum dos grandes pensadores de sua época — de Mill a Nietzsche — suspeitou nem de leve que o capitalismo iria proliferar da maneira como o fez.” P. 22.

Entretanto...

“A propriedade privada, o dinheiro, o estímulo do lucro e a alienação parecem ser fundamentais em nosso atual estágio de evolução. Nós os usamos — assim como eles nos usam. A alienação transforma-se em individualidade exacerbada. Por outro lado, a análise de Marx se estende muito além dos primeiros tempos da sociedade vitoriana a que foi aplicada. Suas descrições do culto ao dinheiro, de nossa atitude em relação à propriedade privada, do consumismo e da busca do lucro pelo lucro são todas pertinentes à era de enxugamento de empresas, crises monetárias provocadas, disparada nos preços das ações de empresas de tecnologia com base em valores irreais, e companhias cujos ativos consistem em tudo exceto nas pessoas que nela trabalham.” P. 19.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Viver Em Paz Para Morrer Em Paz


CORTELLA, Mario Sergio. Viver Em Paz Para Morrer Em Paz. 1. ed. – São Paulo: Planeta, 2017. (PDF).

“Afinal, viver em paz não é viver sem problema, sem encrenca, sem dificuldade. Viver em paz é viver com a certeza de que não está vivendo de forma morna!” P. 08.

Mario Sérgio Cortella, Doutor em Educação na PUC-SP, é um carinha que ainda gosto. É um daqueles intelectuais midiáticos, que muitas vezes fala o óbvio, e o populacho, no qual estou incluído, acha o máximo. Ele tem o seu valor, enquanto intelectual público. Se as pessoas estão comprando os seus livros e, o mais importante, lendo-os, já é um começo, para um país tão avesso a leitura e ao estudo que nem o nosso Brasil. 

Cortella traz boas diretrizes neste livro. Vamos recortar algumas delas.

Sobre a dicotomia Ter vs Ser.

“Existe uma obsessão consumista, uma ideia de que eu sou aquilo que eu tenho, e não é verdade. Eu sou aquilo que eu faço, relaciono, convivo com outros. Afinal de contas, o que vale na vida é ser importante. Não necessariamente ser famoso. [...] Millôr Fernandes, estupendo carioca nascido no Méier, dizia que ‘o importante é ter sem que o ter te tenha’. Isto é, não seja possuído por aquilo que você possui. Ou, não seja propriedade” P. 08-09.

O maior prazer do ser humano.

“O maior prazer do ser humano, não importa a idade, é falar de si mesmo. Outro grande prazer é ensinar, pois é uma afirmação de valor, do seu próprio valor.” P. 15.

A dúvida é a força motriz da inovação.

“Convicção absoluta é loucura plena. Quem não tem dúvida faz sempre do mesmo modo. Quem tem dúvida se inova, se reinventa.” P. 16.

Não aprendemos com os erros.

“Percalços são inevitáveis. Toda vida é composta por erros e acertos, por dores e delícias. A maioria das pessoas acredita piamente que aprende com os erros. Cautela com isso. Na minha opinião, aprendemos é com a correção dos erros; se aprendêssemos com os erros, o melhor método pedagógico seria errar bastante.” P. 18.

Chame as pessoas pelo que elas gostam.

“Se você chama alguém do jeito que ela gosta, está criando uma ponte. Se a chama como acha que deve chamar, pode estar criando uma barreira.” P. 19.

Aí está um tema que gera muita polêmica, diante dos transgêneros. A pessoa nasce biologicamente homem, mas diz que pensa como uma mulher, e, assim quer ser tratada como do sexo feminino. Hoje fala-se muito em mulheres trans. Independente de qualquer coisa, continuam sendo homens. "Ah, mas assim, você não está criando pontes com essas pessoas, está criando barreiras", dizem. No entanto, eu não quero criar ponte alguma com elas. A não ser que essa ponte seja conveniente pra mim. Tipo, algo que envolva emprego, por exemplo. Muitos pensam do mesmo jeito que eu, porém, dissimulam para evitar dores de cabeça desnecessárias, perdas de emprego, de promoções e etc. Dissimulamos quando é preciso.     

Mais pensamentos do barbudo.

“Aqui é preciso lembrar que um adversário fraco te enfraquece, um concorrente burro te emburrece. E um adversário forte, fortalece.” P. 22-23.

Basicamente todas áreas do conhecimento quer responder apenas uma pergunta.

“De maneira geral, a ciência, a arte, a filosofia e a religião são quatro caminhos que têm por trás uma mesma questão: ‘Por que algo – nós, o mundo, o universo – existe?’. Ou: ‘Por que existimos em vez de não existirmos?’. Reconheça que é um tema que desperta paixões, assim como o futebol e a política…” P. 24.

A razão é fugaz.

“Compreender é ser capaz de entender as razões, mesmo sabendo que razões são sempre provisórias. Quando você tem consciência da fugacidade das razões, mata qualquer indício de fanatismo e se torna uma pessoa mais acolhedora, apta a receber o outro como a um igual.” P. 26.

Não se é feliz a todo tempo.

“A felicidade contínua é uma impossibilidade, uma vez que as pessoas vivem em meio a outras pessoas e a atribulações. Mas, se a felicidade pudesse ser um estado contínuo, nós não a perceberíamos, assim como não percebemos nossa respiração, exceto na carência, quando o ar nos falta.” P. 28.

O desespero de querer ser visto, notado, aplaudido.

“No século XVII, Blaise Pascal disse, ao olhar para o céu, uma frase que gosto demais: ‘O silêncio desses espaços infinitos me apavora’. Talvez o maior pavor moderno hoje seja o silêncio – não apenas o silêncio como a ausência de ruído, mas o silenciar sobre mim. Por isso, a obsessão por comunicação, uma comunicação regida pela celeridade, pela celebridade, uma comunicação do ‘cá estou’, do ‘fale comigo’ seja como e onde for, pelo celular, por SMS, no Facebook, no Twitter.

Se não retornam, eu entro em depressão. Tendo em vista o tamanho da rede de comunicação na internet, criar um blog muitas vezes equivale a jogar uma garrafa no oceano, com a esperança do náufrago de que, algum dia, alguém encontre a garrafa.

É o grito dos desesperados.” P. 37.

As crianças, adolescentes e jovens, são os que mais sofrem com isso. Cresceram na era da internet para todos, onde parte gigante das interações sociais acontecem na tela dos celulares e computadores. Se elas não têm os likes e elogios esperados, se frustram. Suas mentes ainda estão em formação a caminho da maturidade. O pior que isto não está restrito a essas faixas etárias. Muitos adultos formados, pais de famílias, com empregos estabelecidos, também entraram na onda e estão se frustrando. Linhas a frente, Cortella sintetiza bem.

“O homem moderno se desespera em ser quase, em quase ser – quase conhecido, quase famoso, quase feliz. O “quase” leva ao desespero. O homem quer escapar da penumbra da caverna e chegar ao sol, à exposição da luz.” P. 37.

Ainda nesse tema, Cortella tira um retrato fiel da atual sociedade:

“Na sociedade da exposição e do espetáculo, ver e ser visto é fundamental. O velho ditado “diz-me com quem andas e te direi quem és” ressurge com força. Estar em boa companhia qualifica o acompanhante – até por isso, as pessoas gostam de ir a bares e outros lugares da moda, onde vão artistas e celebridades. Estar cercado de estrelas, de pessoas que brilham, tira o anônimo das sombras, diminui seu pavor da penumbra.” P. 38.

Nesta era de muita carência, queremos nos sentir importantes a todo custo.

“Por isso, tantas garotas pagam agências e fotógrafos para fazer um book. Se uma mãe já não tem idade para desfilar nas passarelas, tenta a todo custo que sua filha tenha a exposição que ela não teve. Se alguém foi viajar, faz questão de postar as fotos que tira num blog ou numa comunidade virtual.” P. 46.

Mas nossa excessiva exposição pode (e tem) um efeito contrário daquilo que queríamos.

“Numa época em que todo mundo tem as mesmas condições e a mesma facilidade de se expor, seja no Facebook, no Twitter, o excesso de exposição devolve as pessoas ao anonimato.” P. 47.

Tempos estranhos, bizarros...

“Hoje, a diferenciação está ligada à exposição hiperbólica, ao exagero pleno, ao grotesco. Nos nossos tempos, o grotesco se tornou altamente sedutor. São as mulheres com bundas do tamanho de melancias, seios explodindo de silicone, lábios inflados como uma boia de sinalização. São os homens com músculos estourando, com cabelos hiperproduzidos, com a vaidade desvairada de uma diva ou com uma violência desmedida a troco de nada.” P. 47.

Sabe aquele clichê que “a felicidade está nas pequenas coisas da vida”? É isso mesmo.  

“[...] muita gente não compreende que felicidade não é um estado ou uma condição de permanência, algo que só poderia ser obtido no nirvana ou qualquer outro lugar onde a paixão inexista. A felicidade é uma ocorrência eventual, um instante, um episódio, e é exatamente pelo seu caráter passageiro que ela deve ser valorizada. Assim, a felicidade pode existir por causa de um desejo por algo ou alguém, mas também pela ausência de algo ou alguém. Desse modo, a felicidade pode estar em episódios breves, como um gole numa taça de vinho, ou em um gole na cerveja ou em um suco.” P. 57.

Ficamos por aqui.