DOUGHTY, Caitlin. Para Toda a Eternidade:
Conhecendo o Mundo de Mãos Dadas com a Morte. Rio de Janeiro: DarkSide, 2019. (PDF).
Caitlin Doughty, Bacharel em História na
Universidade de Chicago, traz neste livro os modos diversos de como as várias
culturas lidam com a morte e tudo que ela enseja – rituais, enterros, cerimônias,
símbolos, cremações, luto, lamentos. Oportuno
dizer que a autora trabalha diretamente com os defuntos, pois durante muitos
anos, ainda uma garota de vinte e poucos anos, foi funcionária de um crematório
na Califórnia, onde diariamente ela torrava corpos e mais corpos, história essa
que pode ser vista em seu primeiro livro Confissões do Crematório. Atualmente ela
é dona do seu próprio crematório, apesar de ser uma crítica mordaz desse tipo
de tratamento dado aos mortos, preferindo que eles sejam enterrados. Ela é uma
crítica feroz também da maneira de como o luto é praticado hoje em dia, sempre às
pressas, corrido, de poucas horas, sem intimidade e sem tempo para que as
famílias enlutadas possam lamentar de modo satisfatório o ente querido que se
foi.
“Nos Estados
Unidos, onde eu moro, a morte tornou-se um grande negócio desde a virada do
século XX. Um século se mostrou ser a quantidade de tempo perfeita para os
cidadãos esquecerem como os funerais eram antes: assunto da família e da
comunidade. No século XIX, ninguém teria questionado o fato de a filha de
Josephine querer preparar o corpo da mãe — seria estranho se ela não fizesse
isso. Ninguém teria questionado uma esposa lavando e vestindo o corpo do marido
ou um pai carregando o filho para o túmulo em um caixão caseiro. Em pouquíssimo
tempo, a indústria funerária norte-americana se tornou mais cara, mais
empresarial e mais burocrática do que qualquer outra indústria funerária no
planeta. Se pudermos ser chamados de melhores em alguma coisa, seria em manter
as famílias em luto separadas dos mortos.” P. 19-20.
O tipo de destino que cada povo dá aos seus
mortos, geralmente causa estranhamento. Para uns queimar os mortos é inadmissível.
Para outros enterrá-los não é nada respeitoso. Já para outros, a maneira mais
correta e benéfica para a natureza é deixá-los para serem comidos pelos
animais. O estranhamento diante do ritual alheio vem desde a antiguidade, sendo
registrado por aquele que é considerado o pai da História, o grego Heródoto.
“O historiador
grego Heródoto, em seus escritos há mais de 2 mil anos, produziu uma das
primeiras descrições de uma cultura que se incomodava com os rituais de morte
de outra. Na história, o governante do Império Persa convoca um grupo de
gregos. Como eles cremam os mortos, o rei se questiona: ‘O que seria preciso
para fazer com que [eles] comessem os pais mortos?’. Os gregos hesitam ao ouvir
a pergunta e explicam que riqueza nenhuma no mundo seria suficiente para
transformá-los em canibais. Em seguida, o rei convoca um grupo da tribo
Callatiae, conhecida por comer a carne dos mortos. Ele pergunta: ‘Por que preço
estariam dispostos a queimar os pais no fogo?’. Os membros da tribo imploram
para que ele não mencione ‘tais horrores!’.” P. 22-23.
Mesmo que tenha crescido vertiginosamente o
número de cremações nas últimas décadas, a igreja cristã de um modo geral, tanto
em suas vertentes católica e evangélica, tem uma certa aversão a queimar os
corpos de seus fiéis. Lembro que no livro Ressurreição, do apologista
evangélico Josh McDowell, ele argumenta fortemente contra a cremação, pois esta
não se coaduna com a doutrina da ressurreição dos mortos, que em breve
acontecerá com a vinda do messias Jesus Cristo, para julgar a todos nós. Desta forma,
a sua crença religiosa serve como parâmetro para rechaçar e criticar as outras
formas de lidar com os mortos, que não seja o enterro dos mortos. Para ele, nas
palavras de nossa escritora, quaisquer outros rituais que não sejam o enterro
seriam “rituais de morte selvagens”.
“Como a religião é
a fonte de muitos rituais de morte, nós muitas vezes invocamos a crença para
desonrar as práticas dos outros. Em 1965, James W. Fraser escreveu em
Cremation: Is It Christian? [Cremação: é algo cristão?] (spoiler: não) que
cremar era “um ato bárbaro’ e ‘um apoio ao crime’. Para um cristão decente, é ‘repulsivo
pensar no corpo de um amigo sendo tratado como um rosbife no forno, com todas
as gorduras e tecidos derretendo e escorrendo’. Eu passei a acreditar que os méritos
de um costume relacionado à morte não são baseados em matemática (por exemplo,
36,7% um ‘ato bárbaro’), mas em emoções, numa crença na nobreza única da
própria cultura da pessoa. Isso quer dizer que consideramos os rituais de morte
selvagens apenas quando eles não são como os nossos.” P. 27-28.
Para a autora, os rituais ocidentais de
morte não são superiores. Na verdade, são até inferiores aos rituais de outras
partes do mundo. O nosso modo é muito voltado para o capital e nada mais.
“[...] é errado
alegar que o Ocidente tem rituais de morte superiores aos do restante do mundo.
Mais ainda, devido à corporatização e à comercialização dos cuidados funerários,
nós ficamos para trás do resto do mundo no que diz respeito a proximidade, intimidade
e rituais relacionados à morte.” P. 30.
Quando surgiu a cremação no Ocidente? Apesar
da ojeriza da igreja cristã, foi na Itália, terra onde está fincado o Vaticano,
que a cremação apareceu. E foi um clérigo cristão que liderou a prática em
território americano no século XIX.
“A cremação
industrial em fornalhas surgiu na Europa no final do século XIX. Em 1869, um
grupo de especialistas médicos se reuniu em Florença, na Itália, para denunciar
o enterro como algo não higiênico e defender uma mudança para a cremação. Quase
simultaneamente, o movimento pró-cremação saltou o oceano até os Estados
Unidos, liderado por reformadores como o absurdamente nomeado reverendo Octavius
B. Frothingham, que acreditava que era melhor para um cadáver se transformar em
‘cinzas brancas’ do que em uma ‘massa de podridão’.” P. 40.
Em minha subjetividade, estou com o
reverendo aí. Prefiro a cremação, que acaba com tudo em questão de poucas horas,
a o enterro que torna o corpo numa “massa de podridão”.
Pensava eu que a cremação não fazia mal
algum ao meio ambiente; apenas o enterro é que o contaminava, com a liberação
de pesados elementos químicos dos cadáveres sobre a terra, podendo chegar (e
muitas vezes chega mesmo, principalmente em cemitérios públicos) ao lençol freático.
Entretanto, a cremação tem a sua cota de estragos a natureza.
“Nossas máquinas
crematórias ainda parecem os modelos introduzidos nos anos 1870 — monstros de
dez toneladas feitos de aço, tijolo e concreto. Consomem milhares de dólares em
gás natural por mês, liberando monóxido de carbono, fuligem, dióxido de enxofre
e mercúrio altamente tóxico (proveniente das obturações dentárias) na
atmosfera.” P. 42.
“Nos países em que
a pira de cremação é a norma, como a Índia e o Nepal, as inúmeras cremações
anuais queimam mais de 50 milhões de árvores e liberam carbono negro na atmosfera.
Depois do dióxido de carbono, o carbono negro é a segunda principal causa das
mudanças climáticas provocadas pelo homem.” P. 44.
“[...] obturações
de amálgama de mercúrio nos dentes, cuja liberação tóxica no ar é uma das
maiores preocupações ambientais em relação à cremação.” P. 133.
E como não poderia ser diferente, o mundo
da indústria funerária está interessado unicamente na bufunfa que advém de cada
defunto tratado “amorosamente” por eles. Dougthy conta um episódio que ilustra
muito bem isso.
“Depois do furacão Katrina,
um grupo de monges beneditinos no sul da Louisiana começou a vender caixões de
cipreste de baixo custo feitos à mão. O Comitê de Embalsamadores e Diretores
Funerários do estado emitiu uma ordem de cessar e desistir, alegando que só
funerárias licenciadas pelo comitê podiam vender “mercadoria funerária”. Um
juiz federal acabou ficando do lado dos monges e disse que estava claro que a
venda dos caixões não representava risco à saúde pública, e que a motivação do
comitê era puro protecionismo econômico.” P. 53.
Cuidar dos mortos começa a render muito
dinheiro:
“Quando os cuidados
funerários se tornaram uma indústria no começo do século XX, houve um abalo
sísmico em relação a quem era responsável pelos mortos. Cuidar do cadáver
passou de um trabalho visceral e primitivo executado por mulheres a uma ‘profissão’,
uma ‘arte’ e até uma ‘ciência’ executada por homens bem pagos. O cadáver, com
toda a sujeira física e emocional, foi tirado das mulheres.” P. 134.
E para que o dinheiro continue entrando:
“Um executivo da
Service Corporation International, a maior empresa funerária e de cemitérios do
país, admitiu recentemente que ‘a indústria foi realmente construída em torno
da venda de caixões’. Conforme cada vez menos pessoas veem valor em colocar o
corpo preparado da mamãe em um caixão de 7 mil dólares e acabam procurando
cremações simples, a indústria precisa encontrar uma nova forma de sobreviver
financeiramente, vendendo não um ‘serviço funerário’, mas uma ‘reunião’ em uma ‘sala
de experiências multissensoriais’.” P. 212.
Um ritual que ficou bastante conhecido na
internet, graças aos vídeos no YouTube, são os mortos de Tana Toraja, na Indonésia.
A própria autora esteve lá, para testemunhar como os vivos lidam com os seus
parentes que se foram. Lá é comum o defunto ficar meses e até anos dentro de
casa, sendo tratado como se estivesse vivo.
“Em Toraja, durante
o período entre a morte e o funeral, o corpo fica em casa. Pode não parecer um
choque, até eu contar que esse período pode durar de vários meses a vários
anos. Durante esse tempo, a família cuida do corpo e o mumifica, leva comida,
troca as roupas e fala com o cadáver.
Na primeira vez que
Paul visitou Toraja, ele perguntou a Agus se era incomum uma família deixar um
parente morto em casa. Agus riu da pergunta. ‘Quando eu era criança, meu avô
ficou em casa por sete anos. Meu irmão e eu dormíamos com ele na mesma cama. De
manhã, nós vestíamos roupas nele e o colocávamos de pé encostado na parede. À noite,
ele voltava para a cama’.” P. 68.
Além da Indonésia, Doughty detalha os
rituais fúnebres de vários outros lugares do planeta, tais como: Japão, México,
Espanha, Bolívia, entre outros.
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