sábado, 17 de abril de 2021

Para Toda a Eternidade: Conhecendo o Mundo de Mãos Dadas com a Morte

 


DOUGHTY, Caitlin. Para Toda a Eternidade: Conhecendo o Mundo de Mãos Dadas com a Morte. Rio de Janeiro: DarkSide, 2019. (PDF).

Caitlin Doughty, Bacharel em História na Universidade de Chicago, traz neste livro os modos diversos de como as várias culturas lidam com a morte e tudo que ela enseja – rituais, enterros, cerimônias, símbolos, cremações, luto, lamentos.  Oportuno dizer que a autora trabalha diretamente com os defuntos, pois durante muitos anos, ainda uma garota de vinte e poucos anos, foi funcionária de um crematório na Califórnia, onde diariamente ela torrava corpos e mais corpos, história essa que pode ser vista em seu primeiro livro Confissões do Crematório. Atualmente ela é dona do seu próprio crematório, apesar de ser uma crítica mordaz desse tipo de tratamento dado aos mortos, preferindo que eles sejam enterrados. Ela é uma crítica feroz também da maneira de como o luto é praticado hoje em dia, sempre às pressas, corrido, de poucas horas, sem intimidade e sem tempo para que as famílias enlutadas possam lamentar de modo satisfatório o ente querido que se foi.

“Nos Estados Unidos, onde eu moro, a morte tornou-se um grande negócio desde a virada do século XX. Um século se mostrou ser a quantidade de tempo perfeita para os cidadãos esquecerem como os funerais eram antes: assunto da família e da comunidade. No século XIX, ninguém teria questionado o fato de a filha de Josephine querer preparar o corpo da mãe — seria estranho se ela não fizesse isso. Ninguém teria questionado uma esposa lavando e vestindo o corpo do marido ou um pai carregando o filho para o túmulo em um caixão caseiro. Em pouquíssimo tempo, a indústria funerária norte-americana se tornou mais cara, mais empresarial e mais burocrática do que qualquer outra indústria funerária no planeta. Se pudermos ser chamados de melhores em alguma coisa, seria em manter as famílias em luto separadas dos mortos.” P. 19-20.

O tipo de destino que cada povo dá aos seus mortos, geralmente causa estranhamento. Para uns queimar os mortos é inadmissível. Para outros enterrá-los não é nada respeitoso. Já para outros, a maneira mais correta e benéfica para a natureza é deixá-los para serem comidos pelos animais. O estranhamento diante do ritual alheio vem desde a antiguidade, sendo registrado por aquele que é considerado o pai da História, o grego Heródoto.

“O historiador grego Heródoto, em seus escritos há mais de 2 mil anos, produziu uma das primeiras descrições de uma cultura que se incomodava com os rituais de morte de outra. Na história, o governante do Império Persa convoca um grupo de gregos. Como eles cremam os mortos, o rei se questiona: ‘O que seria preciso para fazer com que [eles] comessem os pais mortos?’. Os gregos hesitam ao ouvir a pergunta e explicam que riqueza nenhuma no mundo seria suficiente para transformá-los em canibais. Em seguida, o rei convoca um grupo da tribo Callatiae, conhecida por comer a carne dos mortos. Ele pergunta: ‘Por que preço estariam dispostos a queimar os pais no fogo?’. Os membros da tribo imploram para que ele não mencione ‘tais horrores!’.” P. 22-23.

Mesmo que tenha crescido vertiginosamente o número de cremações nas últimas décadas, a igreja cristã de um modo geral, tanto em suas vertentes católica e evangélica, tem uma certa aversão a queimar os corpos de seus fiéis. Lembro que no livro Ressurreição, do apologista evangélico Josh McDowell, ele argumenta fortemente contra a cremação, pois esta não se coaduna com a doutrina da ressurreição dos mortos, que em breve acontecerá com a vinda do messias Jesus Cristo, para julgar a todos nós. Desta forma, a sua crença religiosa serve como parâmetro para rechaçar e criticar as outras formas de lidar com os mortos, que não seja o enterro dos mortos. Para ele, nas palavras de nossa escritora, quaisquer outros rituais que não sejam o enterro seriam “rituais de morte selvagens”.

“Como a religião é a fonte de muitos rituais de morte, nós muitas vezes invocamos a crença para desonrar as práticas dos outros. Em 1965, James W. Fraser escreveu em Cremation: Is It Christian? [Cremação: é algo cristão?] (spoiler: não) que cremar era “um ato bárbaro’ e ‘um apoio ao crime’. Para um cristão decente, é ‘repulsivo pensar no corpo de um amigo sendo tratado como um rosbife no forno, com todas as gorduras e tecidos derretendo e escorrendo’. Eu passei a acreditar que os méritos de um costume relacionado à morte não são baseados em matemática (por exemplo, 36,7% um ‘ato bárbaro’), mas em emoções, numa crença na nobreza única da própria cultura da pessoa. Isso quer dizer que consideramos os rituais de morte selvagens apenas quando eles não são como os nossos.” P. 27-28.

Para a autora, os rituais ocidentais de morte não são superiores. Na verdade, são até inferiores aos rituais de outras partes do mundo. O nosso modo é muito voltado para o capital e nada mais.

“[...] é errado alegar que o Ocidente tem rituais de morte superiores aos do restante do mundo. Mais ainda, devido à corporatização e à comercialização dos cuidados funerários, nós ficamos para trás do resto do mundo no que diz respeito a proximidade, intimidade e rituais relacionados à morte.” P. 30.

Quando surgiu a cremação no Ocidente? Apesar da ojeriza da igreja cristã, foi na Itália, terra onde está fincado o Vaticano, que a cremação apareceu. E foi um clérigo cristão que liderou a prática em território americano no século XIX.

“A cremação industrial em fornalhas surgiu na Europa no final do século XIX. Em 1869, um grupo de especialistas médicos se reuniu em Florença, na Itália, para denunciar o enterro como algo não higiênico e defender uma mudança para a cremação. Quase simultaneamente, o movimento pró-cremação saltou o oceano até os Estados Unidos, liderado por reformadores como o absurdamente nomeado reverendo Octavius B. Frothingham, que acreditava que era melhor para um cadáver se transformar em ‘cinzas brancas’ do que em uma ‘massa de podridão’.” P. 40.

Em minha subjetividade, estou com o reverendo aí. Prefiro a cremação, que acaba com tudo em questão de poucas horas, a o enterro que torna o corpo numa “massa de podridão”.

Pensava eu que a cremação não fazia mal algum ao meio ambiente; apenas o enterro é que o contaminava, com a liberação de pesados elementos químicos dos cadáveres sobre a terra, podendo chegar (e muitas vezes chega mesmo, principalmente em cemitérios públicos) ao lençol freático. Entretanto, a cremação tem a sua cota de estragos a natureza.

“Nossas máquinas crematórias ainda parecem os modelos introduzidos nos anos 1870 — monstros de dez toneladas feitos de aço, tijolo e concreto. Consomem milhares de dólares em gás natural por mês, liberando monóxido de carbono, fuligem, dióxido de enxofre e mercúrio altamente tóxico (proveniente das obturações dentárias) na atmosfera.” P. 42.

“Nos países em que a pira de cremação é a norma, como a Índia e o Nepal, as inúmeras cremações anuais queimam mais de 50 milhões de árvores e liberam carbono negro na atmosfera. Depois do dióxido de carbono, o carbono negro é a segunda principal causa das mudanças climáticas provocadas pelo homem.” P. 44.

“[...] obturações de amálgama de mercúrio nos dentes, cuja liberação tóxica no ar é uma das maiores preocupações ambientais em relação à cremação.” P. 133.

E como não poderia ser diferente, o mundo da indústria funerária está interessado unicamente na bufunfa que advém de cada defunto tratado “amorosamente” por eles. Dougthy conta um episódio que ilustra muito bem isso.

“Depois do furacão Katrina, um grupo de monges beneditinos no sul da Louisiana começou a vender caixões de cipreste de baixo custo feitos à mão. O Comitê de Embalsamadores e Diretores Funerários do estado emitiu uma ordem de cessar e desistir, alegando que só funerárias licenciadas pelo comitê podiam vender “mercadoria funerária”. Um juiz federal acabou ficando do lado dos monges e disse que estava claro que a venda dos caixões não representava risco à saúde pública, e que a motivação do comitê era puro protecionismo econômico.” P. 53.

Cuidar dos mortos começa a render muito dinheiro:

“Quando os cuidados funerários se tornaram uma indústria no começo do século XX, houve um abalo sísmico em relação a quem era responsável pelos mortos. Cuidar do cadáver passou de um trabalho visceral e primitivo executado por mulheres a uma ‘profissão’, uma ‘arte’ e até uma ‘ciência’ executada por homens bem pagos. O cadáver, com toda a sujeira física e emocional, foi tirado das mulheres.” P. 134.

E para que o dinheiro continue entrando:

“Um executivo da Service Corporation International, a maior empresa funerária e de cemitérios do país, admitiu recentemente que ‘a indústria foi realmente construída em torno da venda de caixões’. Conforme cada vez menos pessoas veem valor em colocar o corpo preparado da mamãe em um caixão de 7 mil dólares e acabam procurando cremações simples, a indústria precisa encontrar uma nova forma de sobreviver financeiramente, vendendo não um ‘serviço funerário’, mas uma ‘reunião’ em uma ‘sala de experiências multissensoriais’.” P. 212.

Um ritual que ficou bastante conhecido na internet, graças aos vídeos no YouTube, são os mortos de Tana Toraja, na Indonésia. A própria autora esteve lá, para testemunhar como os vivos lidam com os seus parentes que se foram. Lá é comum o defunto ficar meses e até anos dentro de casa, sendo tratado como se estivesse vivo.

“Em Toraja, durante o período entre a morte e o funeral, o corpo fica em casa. Pode não parecer um choque, até eu contar que esse período pode durar de vários meses a vários anos. Durante esse tempo, a família cuida do corpo e o mumifica, leva comida, troca as roupas e fala com o cadáver.

Na primeira vez que Paul visitou Toraja, ele perguntou a Agus se era incomum uma família deixar um parente morto em casa. Agus riu da pergunta. ‘Quando eu era criança, meu avô ficou em casa por sete anos. Meu irmão e eu dormíamos com ele na mesma cama. De manhã, nós vestíamos roupas nele e o colocávamos de pé encostado na parede. À noite, ele voltava para a cama’.” P. 68.

Além da Indonésia, Doughty detalha os rituais fúnebres de vários outros lugares do planeta, tais como: Japão, México, Espanha, Bolívia, entre outros.

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