AMADO, Marcos. A Doutrina da Imutabilidade do Alcorão: Breve Análise Histórico-Textual. 1º Ed. São Paulo: Martureo, 2020.
Uma obra pequena, mas com muitas
informações valiosas, vindas dos estudos da Crítica Textual, que vão de
encontro a doutrina muçulmana de que o seu livro sagrado foi imutável desde o
início. As evidências são cabais: não foi. Como será demonstrado, houve muitas
variantes nos vários manuscritos.
O autor desta obra, Marcos Amado, tem
Especialização em Estudos Islâmicos na All Nations Cristian College, no Reino
Unido. E Estudos Avançados em Religiões e Culturas do Oriente Médio no
Institute of Middle East Studies, no Líbano.
Como é um livro pequeno, porém, recheado de
fatos importantes, colocarei boa parte dele aqui.
“Os cristãos
mostram-se irredutíveis a respeito da inspiração da Bíblia, enquanto os
muçulmanos dirão que, em razão de a Bíblia ter sido corrompida, Deus revelou a
Maomé o Alcorão, um livro que não deve ser visto como objeto de escrutínio de
estudiosos, mas como ‘um objeto de devoção, algo belo, um nexo de poder
espiritual…’.
Esse entendimento
tem levado os muçulmanos, ao longo dos séculos, a desenvolverem uma narrativa
histórica e teológica a respeito da imutabilidade do texto corânico que é
atualmente aceita como a verdade plena por mais de um bilhão de seguidores ao
redor do mundo. Entretanto, essa percepção não está alinhada com o que as
fontes muçulmanas mais antigas, bem como as recentes análises textuais dos
manuscritos do Alcorão, mostram.” P. 11-12.
“À medida que os
companheiros de Maomé se estabeleciam em distintos e importantes centros
geográficos do recém-inaugurado império, surgiram diferentes versões recitadas
e escritas do Alcorão com variantes textuais ‘e toda forma de peculiaridades
dialéticas’. O uso dessas distintas versões estava supostamente causando
conflitos que ameaçavam a estabilidade política do estado.
Em razão disso, por
volta do ano 650, sob as ordens de ‘Uthman, o terceiro califa, foi convocado um
comitê (que incluía Zaid bin Thabit) ao qual foi confiada a tarefa de compilar
‘os materiais do Alcorão em cópias perfeitas’, tendo como base e ponto de
partida os manuscritos que se encontravam sob a posse de Hafsa. Depois de
realizado esse trabalho, ‘Uthman determinou o envio de uma cópia de sua versão
para cada província muçulmana, e ordenou que ‘todos os demais materiais
referentes ao Alcorão, fossem eles fragmentos de manuscritos ou cópias
integrais, deveriam ser queimados’.” P. 14.
“Um grande número
de estudiosos e orientalistas não aceita a narrativa tradicional muçulmana.
Eles têm levantado incontáveis hipóteses a respeito das origens e
desenvolvimentos do texto do Alcorão. Alguns, como John Wansbrough e Patricia
Crone, contrariando a visão tradicional, declaram que a padronização do Alcorão
não ocorreu antes do século 9, ou seja, duzentos anos depois das datas
usualmente aceitas pelos tradicionalistas.
[...]
Puin, um dos
principais estudiosos do Alcorão no século 20, acredita que pelo menos algumas
partes do Alcorão possam ter sido escritas cem anos depois do nascimento do
islamismo.” P. 16-17.
“Ao tempo da morte
de Maomé, a escrita árabe ainda não estava completamente desenvolvida, e a
tradição oral desempenhava, nesta cultura, um papel fundamental na transmissão
do conhecimento. Alguns poucos privilegiados que eram capazes de escrever
faziam isso utilizando palavras formadas apenas por consoantes. Sem o uso de
vogais que auxiliariam na correta vocalização da palavra, era comum que, em
certas ocasiões, não se tivesse certeza sobre o exato significado do termo que
estava sendo usado.
Os textos iniciais
do Alcorão foram escritos sem o uso de vogais e pontos consonantais. As letras
árabes que, em português, seriam equivalentes às letras ‘b’, ‘t’ e ‘n’, por
exemplo, não possuíam nenhuma distinção entre si. Não havia pontuação para
diferenciar essas e outras consoantes que eram representadas de maneira
idêntica. O leitor deveria discernir qual letra seria a correta de acordo com o
contexto da palavra, o seu conhecimento do idioma, bem como a sua familiaridade
com o texto.
Os textos
consonantais das primeiras versões do Alcorão eram chamados rasm. Leehmuis cita
que ‘a recensão Uthma¯nica creditada pela tradição muçulmana ao grupo liderado
por Zayd b. Tha¯bit apenas estabeleceu o rasm do texto, ou seja, a escrita da
estrutura consonantal [...] sem os sinais vocálicos e diacríticos que foram
incorporados em um estágio posterior’.
Para que se entenda
a natureza do problema, é útil demonstrar essa situação com uma palavra simples
da língua portuguesa. Uma palavra como “saber”, por exemplo, escrita sem as
vogais, torna-se ‘sbr’. Um leitor sem o conhecimento prévio do texto poderia
inadvertidamente pensar que a palavra pudesse ser ‘subir’, ‘saibro’, ‘sobre’
etc. Sem as vogais e pontos consonantais, ela pode ser facilmente confundida
com muitas outras.
É fácil notar o
impacto na compreensão de uma sentença. Um texto como ‘Só a Ti adoramos e só de
Ti imploramos ajuda!’, sem as vogais, ficaria ‘S T drms s d, T mplrms jd!’, e
com a dificuldade adicional de não se saber exatamente se um ‘t’ seria um ‘n’,
ou se um ‘n’ seria, na verdade, um ‘b’ ou ainda um ‘t’. É claro que o contexto
da palavra poderia auxiliar o leitor a fazer a interpretação correta, mas, com
certa frequência, uma razoável dúvida ainda poderia permanecer.
Assim, quando o
Alcorão ‘Uthmanico (que era para ter sido aceito pelos muçulmanos como a
‘versão autorizada’) foi finalizado e distribuído, a escrita empregada ainda
estava em formação e ‘continha um nível inerente de ambiguidade. Assim, a
tradição oral passou a ocupar um papel suplementar na transmissão de detalhes
que não podiam ser expressos pela ortografia pouco desenvolvida’.” P.
18-19.
“De acordo com
pesquisadores, as cópias iniciais do Alcorão, elaboradas sob as ordens de
‘Uthman, continham pequenas discrepâncias, mesmo tendo sido elaboradas com o
objetivo de conseguir a uniformidade do texto. Esse material foi enviado para
as principais cidades do Império Árabe. Além disso, ‘nas décadas e séculos que
se sucederam, esse texto padronizado foi lido de forma distinta por diferentes leitores.
Por exemplo, eles geralmente vocalizavam e pontuavam as consoantes de maneiras
variadas [...]’.
Como resultado, os
textos ‘dos primeiros códices originais na forma de um esboço consonantal não
pontuado’ passaram lentamente a coexistir com as versões recitadas ‘etéreas’
que continham palavras consonantais que poderiam ser recitadas (ou vocalizadas)
de diferentes maneiras. Considerando que, por volta do século 7, a taxa de
alfabetização entre os árabes era relativamente baixa, o que realmente tinha primazia
nos corações e mentes dos fiéis era aquilo que eles ouviam, e não o que estava
registrado nos manuscritos.
Por volta do início
do século 8, al-Hajjaj realizou uma importante revisão do rasm canônico, e
acredita-se que a adição dos sinais diacríticos tenha sido uma importante
característica dessa edição.16 Somente durante o século 9 veio a existir uma
‘ortografia e um sistema de vocalização universalmente aceitos do códice
Uthmanico’.
Em razão dessa
universalização tardia da ortografia e vocalização, diferentes códices do
Alcorão emergiram. As diversas formas de recitação do livro (que levava à
vocalização de palavras distintas a partir de um mesmo texto consonantal)
aumentaram de tal forma que, por volta do início do século 10, existiam
cinquenta sistemas diferentes de recitação.
Ibn Mujahid, no ano
934, provavelmente numa tentativa de restringir a aceitação das diferentes
‘versões’ existentes do Alcorão, ‘divulgou sete formas padronizadas de
recitação do texto consonantal atribuído a ‘Uthman’. Ao final, esses modos de
recitação transformaram-se em dez, ‘que se tornaram formas textuais canônicas
por si só, e que desde então passaram por modificações, que levaram à
existência de 80 versões reconhecidas dos dez sistemas de recitação
autorizados...’ no século 10.” P. 19-20.
“Bukhari, o
reverenciado acadêmico muçulmano que, em meados do século 9, reuniu a mais
respeitada coleção de tradições sobre o profeta (Hadith ou Hadíz), menciona
vários eventos peculiares relacionados à formação do Alcorão. Um deles retrata
o anjo Gabriel recitando o Alcorão para Maomé de sete maneiras alternativas. Em
outra ocasião, vê-se o profeta permitindo que seus seguidores recitem o livro
de diferentes formas. Aisha (a esposa mais jovem de Maomé) é descrita como uma
das pessoas que tinham a sua própria cópia do Alcorão. Existe até mesmo o
relato de que havia fiéis recitando as Suras (capítulos) em uma ordem
diferente.
Muslim, considerado
um dos três principais compiladores do Hadith, assumida mente admite que, com o
passar do tempo, algumas das Suras foram sendo esquecidas pelos companheiros.
Outros registros fazem alusão ao esquecimento de Suras que eram
consideravelmente longas, incluindo uma de 150 versos.
Outras tradições
afirmam que uma parte do texto do Alcorão (que pode ou não ter estado em posse
de vários muçulmanos) teria sido comida por um animal ‘e que algumas revelações
legítimas foram excluídas do texto final’. Alguns acadêmicos islâmicos eram da
opinião que uma revelação que autorizava o apedrejamento de adúlteros tenha
sido deixada de fora.” P. 21.
“A crença
predominante entre os muçulmanos, incluindo muitos acadêmicos [muçulmanos?], é
a, de que a versão atual do Alcorão, em árabe, é exatamente aquela revelada a
Maomé. Porém, com base no que vimos acima [nas postagens anteriores], não
deveria ser nenhuma surpresa o fato de os primeiros estudiosos muçulmanos não
reivindicarem que tenha ocorrido uma ‘perfeita transmissão’ do texto; pelo
contrário, eles debatiam abertamente a existência de diferentes códices e
variantes textuais.
Os códices,
conhecidos em árabe como masahif, nasceram com os companheiros do profeta
(primeiros muçulmanos que seguiram Maomé durante sua vida), os quais possuíam
suas próprias compilações do Alcorão. Jeffery, acadêmico australiano que foi
professor de línguas semíticas na Universidade do Cairo, tinha ‘uma coleção de
variantes textuais obtidas a partir de livros como comentários, léxicos,
Qira’at e outras desse tipo de fontes’, menciona mais de 20 desses códices. Ele
tinha um manuscrito do Kitab al-Masahif de Ibn Abi Dawud, o qual, por volta de
1930, encontrava-se na Biblioteca Zahirya, em Damasco. Esse Kitab é um exemplo
de uma categoria de livros escritos nos primeiros séculos da história islâmica
‘que estudava[m] o estado do texto do Alcorão antes da sua canonização no texto
padronizado de ‘Uthman’.
Yusuf Ali, um
teólogo muçulmano e autor de uma das mais conhecidas traduções do Alcorão para
a língua inglesa, reconheceu a existência de variantes textuais nos primórdios
da história da transmissão do texto. Ele menciona em uma das notas de rodapé de
sua tradução que havia diferentes Qiraats, isto é, diferentes leituras ou
recitações do livro. Ele cita especificamente a de Ubai ibn Ka’b, que difere em
muitos, pontos do texto ‘Uthmanico.” P. 22.
Variações e mais variações no texto do
Alcorão
“Antes de o texto
[oficial] ‘Uthmanico ter sido padronizado, o códice de Ubai já era utilizado na
Síria. Acredita-se que a sua compilação tenha desempenhado algum papel na
composição do manuscrito canônico, e parece ter estado “entre aqueles que foram
destruídos por ‘Uthman’. A ordem das
Suras do seu códice diferem significativamente da versão ‘Uthmanica.Milhares de
variantes textuais podem ser encontradas, algumas das quais contendo uma
expressiva quantidade de palavras adicionadas (como as Suras 56.10 e 98.2),
resultando numa significativa diferença entre os escritos. Além disso, essa
versão continha duas Suras adicionais que constituíam orações curtas.
Outro importante
códice dentre os companheiros é o do Ibn Mas’ud. Ele era um dos quatro que
teriam sido reconhecidos pelo profeta como legítimos professores do Alcorão.
Além de ser um dos primeiros que aceitaram a mensagem de Maomé, depois de sua
conversão ele se tornou seu assistente pessoal. Nos primórdios da expansão do
islamismo, ele se estabeleceu em Kufa, uma cidade localizada no atual Iraque,
que servia como apoio para o exército árabe, e era visto como uma autoridade
nas questões do Alcorão, certamente em razão da proximidade que ele tinha com o
profeta. Quando ‘Uthman realizou sua recensão, e o seu códice foi enviado para
Kufa
‘com as ordens de
que todos os demais textos deveriam ser queimados, Ibn Mas’ud se recusou a
entregar a sua cópia, ficando indignado com o fato de que aquele texto,
estabelecido por um jovem arrivista como Zaid b. Thabit, pudesse ter
preferência em relação ao seu, posto que ele já era um muçulmano quando Zaid
ainda se encontrava nas entranhas [in the loins] de um infiel.
As Suras no seu
códice estavam dispostas em uma ordem diferente daquela encontrada no texto de
‘Uthman. Além disso, ele não incluía as Suras 1, 113 e 114, apesar de haver
registros que demonstram que Ibn Mas’ud tinha consciência da existência dessas
Suras em outros Qiraats.
Em comparação ao
texto ‘Uthmanico, milhares de variantes textuais podem ser identificadas no
códice de Mas’ud. Algumas delas representam pequenas diferenças, enquanto
outras, como as encontradas em Suras como 3.50, 12.23, 13.4, 14.32, 25.1,
trazem consideráveis mudanças em seu significado. Keith Small fez uma breve
inspeção no trabalho de Jeffery a respeito do códice de Ibn Mas’ud, e, somente
na Sura 2, ele ‘encontrou 55 variantes de palavras, seis delas envolvendo
frases’.” P. 23-24.
“Apesar de ainda
incipientes, as poucas pesquisas que já foram realizadas pelos críticos
textuais apresentam importantes dissonâncias em relação ao relato muçulmano
tradicional.
Conforme já
mencionado, as variantes podiam ser encontradas não apenas entre os códices dos
companheiros e o códice ‘Uthmanico, mas também entre diferentes manuscritos
pertencentes ao rasm ‘Uthmanico. Em sua pesquisa, que buscava encontrar os
diferentes tipos de variantes textuais na Sura 14.35-41 dentre 19 manuscritos
do Alcorão dos primeiros quatro séculos da era islâmica, e três manuscritos dos
dois últimos séculos, Small encontrou os seguintes tipos de variantes:
• Variantes
ortográficas;
• Erros dos
copistas;
• Variantes de
sinais diacríticos e variantes que afetam a gramática;
• Variantes do
texto consonantal (variantes do rasm);
• Correções físicas
dos manuscritos.
Em relação às
correções físicas, depois de analisar os manuscritos que estava estudando, ele
afirma:
‘Treze correções
foram observadas sobre sete versos do texto em vinte manuscritos. Se essa
proporção fosse estendida para o resto do Alcorão, isso ratificaria a afirmação
de Fedeli de que as correções nos primeiros Alcorões eram muito comuns [...].
Também, a maioria (sete de treze) das correções ocorreram para que o texto
fosse readequado no sentido daquilo que era tradicionalmente considerado como o
texto padrão’.” P. 26.
“Em 1972, homens
que trabalhavam na restauração da Grande Mesquita de Sana’a, no Iêmen,
encontraram, por acaso, no sótão da mesquita, milhares de fragmentos antigos do
Alcorão. Sem ideia da importância da descoberta, eles colocaram os achados de
lado. Somente anos mais tarde o governo iemenita decidiu envolver pesquisadores
alemães em um projeto idealizado para o estudo cuidadoso e detalhado do
material que havia sido encontrado.
À medida que os
fragmentos começaram a ser estudados, verificou-se que eles pareciam datar dos
séculos 7 ou 8, o que correspondia ao início da era islâmica. Caso confirmado,
os Manuscritos de Sana’a, como eles ficaram conhecidos, seriam os mais antigos
manuscritos do Alcorão disponíveis.
Em 1981, o
pesquisador Alemão Gerd-R. Puin foi o primeiro do contexto acadêmico a dar
atenção ao material.57 De acordo com suas descobertas iniciais, a ordem das
Suras nem sempre correspondia ao texto canônico, havia pequenas variações em
relação ao texto ‘Uthmanico, e alguns dos fragmentos estavam registrados em um
estilo bastante antigo da escrita árabe, um forte indicador de que o material
não era um escrito recente.
[...]
Com base nas
descobertas iniciais sobre os manuscritos de Sana’a, Andrew Riping declarou –
‘A história inicial do texto do Alcorão é uma questão mais aberta do que muitos
suspeitavam: o texto era menos estável – e, portanto, tinha menos autoridade –
do que havia sempre sido reivindicado’.
Mas, da perspectiva
acadêmica, provavelmente a descoberta inicial mais empolgante não era algo que,
pelo menos à primeira vista, estivesse ao alcance dos olhos. Verificou-se que
os manuscritos eram palimpsestos, isto é, eram pergaminhos que, em algum
momento da história, possuíam um texto inferior que fora raspado e substituído
por um novo texto.” P. 27-28.
De acordo com o autor do presente livro, as
variantes ocorridas no texto do Alcorão, não afetam de modo dramático a
teologia islâmica. Apesar de tudo, o texto do Alcorão manteve-se bem estável.
Entretanto...
“Como demonstrado nestas páginas, as conclusões teológicas muçulmanas que dizem respeito à eternidade e à imutabilidade do Alcorão não se sustentam se submetidas a uma análise mais atenta. A maioria das evidências indica uma história bastante terrenal do texto, uma narrativa que não está de acordo com a crença de um livro eterno que tenha sido perfeita e milagrosamente transmitido por intermédio dos primeiros seguidores de Maomé.” P. 31.
O livro está disponível para baixar em ebook, neste link: