ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração, 2013. (Versão em PDF).
Esse é sem dúvida o livro mais triste e chocante que já li!
A premiada Jornalista Daniela Arbex traz nesse livro as atrocidades de um hospício, que duraram praticamente todo o século XX. O manicômio de Barbacena, em Minas Gerais. Holocausto Brasileiro foi escolhido, conforme consta no site da autora, como o Melhor Livro-Reportagem do Ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (2013).
A sensibilidade de qualquer pessoa normal é abalada a cada página. É simplesmente inacreditável o que se passou durante décadas nesse “hospital” psiquiátrico, juntamente com o descaso do governo estadual mineiro (federal também), que fez vistas grossas às torturas e assassinatos diários, ocorridos ali.
Arbex disponibiliza várias fotos antigas ao longo do livro. Farei o mesmo neste resumo.
Marlene foi uma funcionária do hospício de Barbacena. No seu primeiro dia de emprego no dito hospital, ela não sabia o que a esperava: o inferno.
“Marlene foi surpreendida pelo odor fétido, vindo do interior do prédio. Nem tinha se refeito de tamanho mal-estar, quando avistou montes de capim espalhados pelo chão. Junto ao mato havia seres humanos esquálidos. Duzentos e oitenta homens, a maioria nu, rastejavam pelo assoalho branco com tozetos pretos em meio à imundície do esgoto aberto que cruzava todo o pavilhão. Marlene sentiu vontade de vomitar. Não encontrava sentido em tudo aquilo, queria gritar, mas a voz desapareceu da garganta”.
“Guiada por um funcionário, viu-se obrigada a entrar. Tentou evitar pisar naqueles seres desfigurados, mas eram tantos, que não havia como desviar. Só teve tempo de pensar que o mundo havia acabado, e não tinha sido avisada. Ainda com os pensamentos descoordenados, avistou num canto da ala um cadáver misturado entre os vivos. Observou quando dois homens de jaleco branco embrulharam o morto num lençol, o décimo sexto naquele dia, embora muitos outros agonizassem. Na tentativa de se aquecerem durante a noite, os pacientes dormiam empilhados, sendo comum que os debaixo fossem encontrados mortos, como naquele dia.” P. 19.
O manicômio Colônia abriu suas portas em 1903, com o apoio da igreja católica. Ainda nos relatos empíricos da Marlene, era comum ela limpar fezes humanas e fezes de ratos nas alas do hospital. Ambos conviviam nos mesmos corredores e espaços. Na verdade os ratos estavam em melhor situação que os pacientes.
É de se imaginar que o perfil dos internos de um hospital psiquiátrico seja de pessoas incapacitadas de pensar normalmente e, que tragam em seu histórico, acessos de loucuras e delírios, criem um mundo imaginário e etc. Mas não era essa a realidade do campo de concentração de Barbacena.
“Assim como ela, a estimativa é que 70% dos atendidos não sofressem de doença mental. Apenas eram diferentes ou ameaçavam a ordem pública. Por isso, o Colônia tornou–se destino de desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras, alcoolistas, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos e todos os tipos de indesejados, inclusive os chamados insanos. A teoria eugenista, que sustentava a ideia de limpeza social, fortalecia o hospital e justificava seus abusos. Livrar a sociedade da escória, desfazendo-se dela, de preferência em local que a vista não pudesse alcançar.” P. 21.
Não havia rigor algum na internação de novas pessoas. Apenas interesses escusos de médicos e familiares. Estes, ávidos em se livrar de seus parentes que tinham saído da linha; que tinham quebrado de alguma forma os protocolos sociais.
“Desde o início do século XX, a falta de critério médico para as internações era rotina no lugar onde se padronizava tudo, inclusive os diagnósticos. Maria de Jesus, brasileira de apenas vinte e três anos, teve o Colônia como destino, em 1911, porque apresentava tristeza como sintoma”. P. 21.
A sociedade machista, hipócrita e nojenta da época, sabia direitinho como calar seus desafetos, que muitas vezes eram mandados para o Colônia, para não atrapalharem a vida dos homens e mulheres de “bem”.
“Muitas ignoradas eram filhas de fazendeiros as quais haviam perdido a virgindade ou adotavam comportamento considerado inadequado para um Brasil, à época, dominado por coronéis e latifundiários. Esposas trocadas por amantes acabavam silenciadas pela internação no Colônia. Havia também prostitutas, a maioria vinda de São João del-Rei, enviadas para o pavilhão feminino Arthur Bernardes após cortarem com gilete os homens com quem haviam se deitado, mas que se recusavam a pagar pelo programa”. P. 25-26.
“Várias requisições de internação eram assinadas por delegados. Antes da construção do Colônia, muitos dos chamados loucos em Minas tinham como destino as cadeias públicas ou as Santas Casas de Misericórdia, onde eram mantidos em anexos. Como a psiquiatria se constituiu no Brasil somente no início do século XIX, a assistência aos alienados ainda era algo incipiente no país, que teve o seu primeiro hospício, o Pedro II, instituído por decreto em 1841. Por isso, apesar de ser um hospital, o Colônia era carente de médicos. Até o final da década de 50, psiquiatras e clínicos ainda eram uma raridade por lá.” P. 26.
Um dos Médicos que trabalhou no Colônia, Ronaldo Simões Coelho, relata:
“A coisa era muito pior do que parece. Havia um total desinteresse pela sorte. Basta dizer que os eletrochoques eram dados indiscriminadamente. Às vezes, a energia elétrica da cidade não era suficiente para aguentar a carga. Muitos morriam, outros sofriam fraturas graves.” P. 31.
Cerca de 60 mil pessoas morreram no Colônia. A maior parte delas foram trazidas a força nos vagões de trem. Seus poucos pertences foram confiscados, suas roupas rasgadas e suas cabeças raspadas. Por tais características é que o título do livro da Arbex é tão apropriado.
Eliana Brum, no prefácio, resume tudo extraordinariamente bem:
“Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros as quais perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos trinta e três eram crianças.” P. 12.
“Homens, mulheres e crianças, às vezes, comiam ratos, bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violados. Nas noites geladas da serra da Mantiqueira, eram atirados ao relento, nus ou cobertos apenas por trapos. Instintivamente faziam um círculo compacto, alternando os que ficavam no lado de fora e no de dentro, na tentativa de sobreviver. Alguns não alcançavam as manhãs.” P. 13.
“Os pacientes do Colônia morriam de frio, de fome, de doença. Morriam também de choque. Em alguns dias, os eletrochoques eram tantos e tão fortes, que a sobrecarga derrubava a rede do município. Nos períodos de maior lotação, dezesseis pessoas morriam a cada dia. Morriam de tudo — e também de invisibilidade. Ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, 1.853 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para dezessete faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos foram decompostos em ácido, no pátio do Colônia, na frente dos pacientes, para que as ossadas pudessem ser comercializadas. Nada se perdia, exceto a vida.” P. 13.
“Pelo menos trinta bebês foram roubados de suas mães. As pacientes conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a barriga para não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os bebês eram tirados de seus braços e doados”. P. 14.
Ainda existem hospitais no Brasil em situações tão grotescas como o Colônia? Arbex responde:
“Em 2004, uma inspeção nacional realizada nos hospitais psiquiátricos brasileiros pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil encontrou condições subumanas em vinte e oito unidades. Considerada uma das maiores vistorias feitas no país, o trabalho alcançou dezesseis estados e revelou que, de norte a sul do país, ainda prevalecem métodos que reproduzem a exclusão, apesar dos avanços conquistados com a aprovação de leis em favor da humanização das instituições de atenção à saúde mental e da consolidação de instrumentos legais comprometidos com os direitos civis dos pacientes psiquiátricos. Nessas unidades foram encontrados celas fortes, instrumentos de contenção e muitos, muitos cadeados, além de registros de mortes por suicídio, afogamento, agressão ou a constatação de que, para muitos óbitos, simplesmente, não houve interesse em definir as causas”. P. 229.
PS: fiz também um resumo de um micro documentário sobre o livro:
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