SANDEL,
Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2015.
Livro bom?
Bom não. Excelente.
Michael
Sandel (Ph.D em Filosofia Política na Universidade de Oxford) presenteia os
seus leitores com as principais controvérsias éticas, políticas e sociais, que
versam a vida moderna. O seu curso de Filosofia é simplesmente o mais procurado
na Universidade de Harvard, devido a sua acurácia e facilidade em expor teorias
político-filosóficas complexas, numa linguagem acessível a todos. Tudo é problematizado, e o autor tenta de
todas as formas ser imparcial em suas análises, sempre colocando o leitor a par
das objeções e fraquezas das visões apresentadas. Sandel mostra-se favorável a
certas visões de mundo. A visão aristotélica do que seja a “vida boa” é um
exemplo. As cotas raciais também são palatáveis, segundo Sandel.
"A vida em
sociedades democráticas é cheia de divergências entre o certo e o errado, entre
justiça e injustiça. Algumas pessoas defendem o direito ao aborto, outras o
consideram um crime. Algumas acreditam que a justiça requer que o rico seja
taxado para ajudar o pobre, enquanto outras acham que não é justo cobrar taxas
sobre o dinheiro recebido por alguém como resultado do próprio esforço. Algumas
defendem o sistema de cotas na admissão ao ensino superior como uma forma de remediar erros do passado, enquanto outras consideram esse
sistema uma forma injusta de discriminação invertida contra as pessoas que
merecem ser admitidas pelos próprios méritos. Algumas rejeitam a tortura de
suspeitos de terrorismo por a considerarem um ato moralmente abominável e
indigno de uma sociedade livre, enquanto outras a defendem como um recurso
extremo para evitar futuros ataques." P. 31.
Esses e mais uma dezena de temas explosivos vão
sendo um a um comentados e escrutinados por Sandel. Por vezes ele dá o seu
parecer. Mas nos primeiros temas levantados, ele apenas explica o que os diferentes
teóricos têm a dizer.
Sobre a crise financeira de 2008, Sandel conta
uma história de embrulhar o estômago de qualquer um:
“Em outubro de 2008, o presidente George W. Bush pediu 700
bilhões de dólares ao Congresso para socorrer os maiores bancos e instituições
financeiras do país. A muitos não pareceu justo que Wall Street tivesse
usufruído de enormes lucros nos bons tempos e agora, quando a situação estava
ruim, pedisse aos contribuintes que assumissem a conta. Mas parecia não haver
alternativa. Os bancos e as financeiras tinham crescido tanto e estavam de tal
forma envolvidos com cada aspecto da economia que
seu colapso poderia provocar a quebra de todo o sistema financeiro. Eles eram ‘grandes
demais para falir’.
[...]
Vieram então as benesses. Pouco depois que o dinheiro do
socorro financeiro (bailout) começou a circular, novas informações revelaram
que algumas das companhias, agora com o auxílio de recursos públicos, estavam
agraciando seus executivos com milhões de dólares em bônus. O caso mais
ultrajante envolveu o American International Group (AIG), um gigante dentre as
companhias de seguros levado à ruína pelos investimentos de risco feitos por
sua unidade de produtos financeiros. Apesar de ter sido resgatada com vultosas
injeções de fundos governamentais (totalizando 173 bilhões de dólares), a
companhia pagou 165 milhões de dólares em bônus a executivos da própria divisão
que havia precipitado a crise; 73 funcionários receberam bônus de 1 milhão de
dólares ou mais.” P. 18, 19.
Outra de dá
nojo é como o conhecido Economista Milton Friedman concebe a liberdade
individual:
"[De acordo
Friedman], o governo também viola a liberdade individual quando cria leis
contra a discriminação no mercado de trabalho. Se os empregadores quiserem
discriminar com base em raça, religião ou qualquer outro fator, o Estado não
tem o direito de impedir que eles ajam assim. Na opinião de Friedman, 'tal
legislação envolve claramente a interferência na liberdade dos indivíduos de
assinar contratos voluntários entre si'." P. 69.
O que me assusta de verdade é saber que existem pessoas, que pensam
exatamente igual, ou semelhante a ele.
Sandel explicita a teoria moral de Kant, que não é um Filósofo fácil de
ser entender. O Imperativo Categórico é um dos pilares da Filosofia Moral.
Aquela historinha de que as pessoas devem ser tratadas como um fim e não como um meio. Os seres humanos, como seres sencientes, capazes de
perceberem a si mesmos e o mundo ao redor, merecem ser tratados fins em si mesmos. Kant era
diametralmente oposto ao Utilitarismo de Jeremy Benthan e John Stuart Mill,
Filósofos que também foram trabalhados por Sandel. Mas para Kant o aumento da
felicidade da maioria não é a finalidade da moral, idéia defendida pelos
utilitaristas.
“[...] tentar tomar como base para os princípios morais os
desejos que porventura tivermos, é uma maneira errada de abordar a moral. Só
porque uma coisa proporciona prazer a muitas pessoas, isso não significa que
possa ser considerada correta. O simples fato de a maioria, por maior que seja,
concordar com uma determinada lei, ainda que com convicção, não faz com que ela
seja uma lei justa.” P. 119.
De acordo com Sandel, Kant negava que a Ciência
teria qualquer prerrogativa de dizer algo de substancial sobre a nossa
capacidade como agentes livres, visto que ela lida com o mundo natural, e na
com as abstrações filosóficas, tais como a livre agência humana.
“[...] a ciência pode investigar a natureza e indagar sobre o
mundo empírico, mas não pode responder a questões morais ou negar o
livre-arbítrio, porque a moralidade e a liberdade não são conceitos empíricos.
Não podemos provar que elas existem, mas também não podemos explicar nossa vida
moral sem partir do pressuposto de que elas existem.” P. 140.
O Imperativo Categórico é muito bonitinho e bem
concatenado, conforme vai sendo explicado, mas se mostra um verdadeiro absurdo,
quando não podemos nem mentir para um assassino, sob a pecha de sempre falarmos
a verdade. Para Kant, não podemos mentir em hipótese alguma. Não importa as
consequências ruins que dizer a verdade possa gerar.
“Kant é muito rigoroso quanto à mentira. Em Fundamentação, a
mentira é o principal exemplo do comportamento imoral. Mas suponhamos que uma
amiga esteja escondido em sua casa e um assassino bata à sua porta procurando
por ela. Não seria certo mentir para o assassino? Kant diz que não. O dever de
dizer a verdade deve prevalecer, independentemente das consequências.” P. 143.
Difícil de engolir essa. Sandel até tenta amenizar
o lado de Kant, nas páginas seguintes, mas ele não é bem sucedido. As
artimanhas kantianas não são convincentes. Há maneiras de enganar o ladrão,
falsificando a informação, sem cair em erro moral. Depende da definição que
temos do que seja uma “mentira”. Temos a obrigação de dizer a verdade a um
assassino? Não, não temos. Pensando assim, vejo que no exemplo citado, podemos
dizer ao assassino, que a nossa amiga definitivamente não está em nossa casa, sem
incorrermos num erro moral.
Sandel cita um caso, que definitivamente não se
configura como um valor moral:
“[...] há alguns anos, a Universidade de Maryland tentou
combater um problema generalizado de cola e pediu aos alunos que assinassem
termos de compromisso comprometendo-se a não colar. Como incentivo, aqueles que
assinaram o termo receberam um cupom de desconto de 10% a 25% para utilizar no
comércio local. Não se sabe quantos alunos prometeram não colar de olho no
desconto na pizzaria. Mas a maioria de nós concordaria que a honestidade
comprada não tem valor moral.” P. 124.
Um dos Filósofos amplamente trabalhados é John
Rawls, apesar dele ser um liberal, sua teoria da justiça, difere do conceito em
voga de meritocracia. Para ele, se temos essa ou aquela qualidade, não é porque
a conquistamos com nossos esforços, destreza e habilidades. Foi sorte.
"Como [Rawls] nos lembra, 'ninguém merece ter maior
capacidade natural ou ocupar um ponto de partida privilegiado na sociedade'.
Tampouco é mérito nosso o fato de vivermos em uma sociedade que por acaso
valorize nossas qualidades particulares. Isso é fruto da nossa sorte, e não da
nossa virtude." P. 191.
Surpreendentemente, Sandel não acha que devemos
deixar nossas crenças morais e baseadas em nossas religiões particulares fora
da arena pública e política. Isso é um anátema para muitos secularistas, ávidos
pelo laicismo nas discussões políticas. Sandel mostra que a coisa não é tão simples
assim.
"Pedir aos cidadãos democráticos que abandonem suas
convicções morais e religiosas ao entrar na esfera pública pode parecer uma
forma de garantir a tolerância e o respeito mútuo. Na prática, entretanto, pode
acontecer justamente o contrário. Decidir sobre importantes questões públicas
fingindo uma neutralidade que não pode ser alcançada é uma receita para o
retrocesso e o ressentimento. Uma política sem um comprometimento moral
substancial resulta em uma vida cívica pobre. É também um convite aberto a
moralismos limitados e intolerantes. Os fundamentalistas ocupam rapidamente os
espaços que os liberais têm receio de explorar." P. 254.
Sandel cita uma fala do Barack Obama (Presidente
dos EUA 2009-2017) sobre esse tema:
"Os secularistas estão errados quando pedem aos crentes
que deixem sua religião para trás antes de entrar na vida pública. Frederick
Douglass, Abraham Lincoln, William Jennings Bryan, Dorothy Day, Martin Luther
King — na verdade, a maioria dos grandes reformistas da história dos Estados
Unidos — não somente eram movidos pela fé como frequentemente usavam a
linguagem da religião para defender suas causas. Assim, dizer que homens e
mulheres não deveriam levar sua 'moral pessoal'
para os debates sobre políticas públicas é um absurdo. Nossa lei é, por
definição, uma codificação da moralidade, grande parte dela fundamentada na
tradição judaico-cristã." P. 265.
Sandel levanta várias perguntas, questionamentos,
indagações; fornece várias respostas, e vários contrapontos a elas. Acho que
ficam mais dúvidas do que certezas, diante do que ele expõe. Mas isso é bom. Direciona-nos
a questionar e pesquisar mais a fundo as ideias que acreditamos e defendemos,
seja para abandoná-la ou aprimorá-la.
Justiça: o que é fazer a coisa certa é um livro espetacular.
O que citei ou falei nessas linhas não faz
justiça a riqueza que ele traz em
suas páginas. Merece até ser lido uma segunda vez, para que eu tenha uma percepção
mais apurada da complexidade dos assuntos abordados por ele, que excedem em
muito o que foi dito aqui.