KARNAL, Leandro. O Dilema do Porco Espinho. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018.
“[...] somos animais sociais e a ausência de convivência com outros seres humanos é extremamente penosa. Ela provoca depressão, aumenta a agressividade, facilita o aparecimento de doenças e pode levar ao suicídio.” P. 117. – Fernando Reinach, membro da Academia Brasileira de Ciências.
Estamos nos
aproximando dos 8 bilhões de pessoas vivendo e convivendo neste planeta. A nova
configuração é regida pela comunicação ultrarrápida e instantânea; não
precisamos mais esperar para nos comunicar com as pessoas. Tudo acontece num
toque simples e rápido em nossos pequenos computadores de mão. Entretanto,
parece que esta é a era onde a solidão galgou patamares assustadores. Nunca nos
sentimos tão sós! Nunca precisamos tomar tantos remédios para depressão, para
ansiedade e para termos uma simples noite de sono. Somos a geração dos
distúrbios psicológicos, apesar de todo o aparato tecnológico disponível tão
facilmente em nossas mãos. As redes sociais estariam na causa de nossas perturbações
mentais ou elas apenas revelam a nossa miserabilidade psicológicas? Ou melhor, seria
uma simbiose?
Leandro Karnal,
historiador conhecido, tem uma habilidade ímpar em lidar com essas questões
contemporâneas. Em O Dilema do Porco-Espinho, ele traz insights sobre a solidão
que teima em não sair de nosso dia a dia, mesmo que estejamos rodeados de
pessoas e de exposições nossas e dos outros nos meios internéticos.
A solidão é algo
tão presente e patente, que “o governo da
primeira-ministra britânica Theresa May criou o chamado Ministério da Solidão. Um
número alarmante de 9 milhões de britânicos parece reclamar de frequente ou
total solidão. O que estaria acontecendo no mundo para que o combate à solidão
virasse uma política de Estado?” P. 7.
A explosão
demográfica é um fato, no entanto, ela veio acompanhada de um “esvaziamento de laços pessoais e significativos. Vizinhos
que trocam cumprimentos formais nas áreas comuns, mas sabem que não podem contar
com ninguém. Pessoas que não criam vínculos afetivos e/ou familiares expressivos
que tornem a existência mais interessante.” P. 8.
No campo do
afeto amoroso...
“Se considerarmos que um amor correspondido seria o perfeito
oposto da solidão, entenderemos que quase toda a arte e literatura gira entre
os dois polos: estar só ou estar acompanhado. Fugir ou buscar o isolamento, encontrar
ou perder o amor é o eixo definidor da própria cultura humana. O poeta Rainer
Maria Rilke definiu que o amor era apenas duas solidões protegendo-se uma à
outra. Quase podemos ver a ligeira ironia contida na afirmação: amor é solidão
compartilhada.” P. 10.
Uma das práticas
mais eficazes para mitigar a solidão, é a leitura. Bom, para quem gosta de ler,
né? Algo tão raro entre os brasileiros.
“De todos os antídotos contra a solidão, a leitura é um dos
mais criativos. Aqui estamos, eu sozinho ao escrever e você sozinho ou sozinha
ao ler. Aqui, duas solidões se encontram, trocam ideias, pensam e, efeito
fascinante, transmutam o estar só em pensar e compartilhar. Só na solidão você
é você e só na solidão eu sou eu. Na leitura solitária, somos dois autênticos
viajantes isolados que, por um breve instante, aceitam conversar com um
estranho fortuito.” P.11.
O primeiro livro
da Bíblia tem algo a dizer sobre a solidão.
“Como toda narrativa fundacional, o Gênesis toca nas
estruturas antigas da nossa percepção. Estar só seria estar pela metade,
desejante de complemento. Estar acompanhado é a plenitude do ser e seu destino
arquetípico. A tradição judaico-bíblica desconfia do isolamento. O eremita, o
habitante místico de zonas desoladas e desérticas, seria alguém do futuro, do
mundo cristão que passaria a desconfiar de certos aspectos da vida a dois. Celibatários
não constituem parte importante da tradição judaica.” P. 13.
O chavão
triunfalista que já vem de uns bons anos é: “Seja Feliz!” Você pode e tem a
obrigação de ser feliz todos os dias, todos momentos, todas as horas!
“Como deveríamos ser profundamente felizes, todo desvio do
caminho áureo da realização é um defeito a ser corrigido. Estar sozinho é
impensável. Há manuais para buscar o par ideal. Existem testes e questionários
em quase todas as revistas. A riqueza, o amor, a realização profissional e a
própria estética pessoal passam a ser vistas como parte de uma meta possível e desejável.
Todos podem alcançar se forem focados e resilientes. Ninguém precisa ficar
sozinho.” P. 20.
Gozando de mais
liberdade do que nunca, mesmo assim, as mulheres não escapam da pressão
exercida.
“Porém, mesmo a mulher livre e empoderada deve dizer
constantemente que está feliz mesmo não sendo mãe, assim como as mães devem
estar muito felizes com a maternidade. O novo imperativo não é case, tenha
filhos e siga uma carreira estável. O imperativo absoluto é ‘seja feliz’ e, se
não for, ao menos pareça nas fotos de redes sociais. A solidão aparentemente
pesa mais em um mundo onde a felicidade é cláusula pétrea. A era da plena
liberdade de escolha e intensa realização é a era da farmacopeia contra a
tristeza. Nunca sorrimos tanto nas redes e nunca consumimos tantos remédios
para dormir, para ser viril ou para acordar.” P. 20.
Falando agora
sobre os celulares e redes sociais...
“O que notamos entre tantos sorrisos e vidas plenas das
redes? Vivemos uma perigosa epidemia de suicídio entre jovens. A depressão está
se tornando um mal mais forte na nossa era. Já indiquei o crescimento assombroso
da farmacopeia contra a tristeza. O que pode explicar esse paradoxo?” P.
28.
“Talvez não seja a solidão que nos cause horror, mas a falta
de controle sobre estar só ou acompanhado. O celular respondeu de forma
extraordinária a essa demanda, criando a companhia real-ficcional do mundo.
Todo o sucesso do aparelho está no jogo de permitir palco e camarim ao mesmo
tempo. Nenhuma escrita sobre a solidão poderá ignorar o celular, a muleta suprema
que criamos para ter o suficiente isolamento do mundo aliado ao contato com
quem e quando desejarmos. [...] Então, parece que a chave de tudo não é solidão
ou companhia, porém controle.” P. 31.
O Facebook, Instagram,
Tik Tok...
“As redes sociais podem reunir multidões e ter potencial
agregador e mobilizador, mas sua função revelou-se muito mais simplória: serve,
antes de mais nada, para reafirmar o self, criar a ilusão da companhia, o vício
da curtida. [...] Vivemos, perfeitamente felizes, em ilhas que cabem em nossas
mãos. [...] regulo quem me faz companhia, administro meu silêncio e posso reger
quais imagens quero criar para tornar real meu roteiro imagético para o
público.” P. 32.
As redes também
nos expõem ao contraditório. O que pode ser bom.
“Conviver com a diferença e administrar o atrito inevitável é
um ato de maturidade. Ser contrariado, questionado, posto em suspeição,
rejeitado, desde que não sejam as únicas experiências que conheça, criam
resiliência, moldam personalidade, caráter. O filtro bolha impede tudo isso.” P.
35.
Retomando a
pergunta inicial deste resumo:
“Se os diagnósticos de que a internet como potencial pode
retirar-nos da solidão ou de que, como ato, nos isola são igualmente reais,
resta ainda uma pergunta sem resposta: o que veio primeiro, o ovo ou a galinha?
Usamos as redes sociais para suprir um vazio, uma sensação de solidão anterior
à existência delas ou as redes criaram e alimentam esse sentimento, que pode
levar à compulsão e ao vício?” P. 35-36.
As redes e o seu
poder de excluir, gerando tristezas, frustrações, sentimentos de
inferioridades...
“Também há nas redes sociais aquele que não exclui, mas é
excluído, o que posta, mas ninguém dá like, o que não está na foto. O
sentimento de exclusão porque não estava no evento ou festa que todo mundo
postou ou porque se deixa ludibriar pela exposição massiva da vida de colegas
nas redes sociais, sempre uma idealização, pode alimentar inveja, ferir o
Narciso e machucar a vaidade: acabo remoendo, em minha triste e segura solidão,
a crença distorcida de que a grama do vizinho é sempre mais verde, de que meu
colega de trabalho é mais bem-sucedido ou de que meu amigo de infância, que não
vejo há décadas, é mais feliz do que eu. Trocando em miúdos: tenho certeza de
que algumas pessoas encontram conforto e pertencimento na internet. São
realmente felizes, têm amigos e vivem de forma real no mundo virtual. Para cada
uma delas, contudo, existe outra (talvez dezenas ou centenas de outras) que
mergulhou numa solidão perniciosa e nefasta.” P. 36.
Por mais
desagradável que muitas vezes seja, conviver com pessoas que têm gostos e
pensamentos distintos dos nossos, nos ajudam a evoluir.
“Menos popular e igualmente importante, o atrito dentro de
certos limites razoáveis estabelece uma fronteira ao meu narciso ou a
diminuição do sentimento de vaidade e de onipotência. Viver com outros é negociar.
Grupos de pessoas são pedras sendo limadas e roladas pelo exercício da
convivência. A diferença, os ritmos distintos, a busca de consensos ou de
diálogos, os enfrentamentos: tudo se constitui em escola vital. A companhia é
um alívio e também uma dificuldade. No prazer da fruição do outro e no próprio
atrito da fruição está parte do segredo de se conhecer e não ser dominado pelo egocentrismo.”
P. 38.
Até Jesus, o
filho de Deus, foi deixado na solidão, quando exclamou na cruz: “Deus meu, Deus
meu, por que me abandonaste?”
“Slavoj Žižek leu essa frase, a do abandono, do sentimento
dolorido da solidão, de um jeito interessante. Para o filósofo, o Deus cristão,
dentre todos os deuses que postulam para si a ideia da onisciência, é o único
que pode realmente afirmar que o é, pois experimentou a morte. Deus morreu na
cruz, de forma banal e comum. Sem essa experiência, os demais deuses podem apenas
dizer que tudo conhecem em teoria. Apenas Cristo experimentou a morte na
prática.” P. 76.
As origens do
termo solidão e suas transformações:
“Em um estudo bastante interessante, a professora de
literatura inglesa Amelia Worsley mapeou o surgimento da própria palavra
solidão (loneliness) na língua de Shakespeare. Percebeu que, até o século XVII,
a palavra quase nunca era usada. Quando o era, designava algo muito distinto do
que concebemos hoje. Em um glossário de palavras pouco usadas, compilado em
1674 por John Ray, ‘solidão’ é definida como estar ‘longe dos vizinhos’. Ou
seja, era condição física, um isolamento perigoso, pois indicava que alguém
estava longe da proteção oferecida pelo grupo. Quando lemos o clássico de
Milton O paraíso perdido, de 1667, deparamo-nos com uma das primeiras criaturas
solitárias na literatura inglesa: o Demônio. Satã é descrito como aquele que dá
‘passos solitários’ para fora do inferno, enquanto se direcionava ao Jardim do
Éden para tentar Eva. Se lermos com atenção, veremos, como Worsley chamou
atenção, que a solidão do Diabo não é uma condição psicológica, mas, sim,
física: ele dá passos solitários, pois sai de seu terreno conhecido para andar
onde nenhum anjo antes andara [...].
Ao longo dos séculos seguintes, especialmente no movimento
romântico, tanto na Europa quanto nas Américas, solidão se transformou de algo
físico, uma condição de vulnerabilidade advinda do isolamento, em um
sentimento, uma condição da mente. Poetas, escritores e artistas de toda
espécie passaram a criar em função da solidão. A nova concepção de estar só era
sinônimo de escapismo, uma escolha pessoal para que o indivíduo pudesse, conscientemente,
fugir das angústias da vida em sociedade. A sociedade, especialmente a vida urbana,
passa a ser vista como fútil e plena de relações pessoais superficiais. Lord Byron,
descrevendo como poucos esse pessimismo, essa insatisfação com a vida, escreveu
que ‘é na solidão que estamos menos sós’. Não se elimina a ideia de que estar
só envolve perigo.” P. 99-100.
Solidão no casamento...
“No começo de uma relação, dizer que a alma gêmea não precisa
falar nada porque te conhece com um simples olhar pode parecer virtude. Com o
tempo, as não palavras podem virar silêncios que duram dias. O enfado
previsível do outro. Sei o que ele vai dizer, sei o que ela fará antes mesmo
que diga ou faça. Monotonia e previsibilidade são sintomas dessa solidão a
dois. Outro é o amor apenas na distância. Amar intensamente a pessoa, desde que
ela esteja longe. Por mensagens de celular, demonstrações públicas de carinho,
o amor é impávido colosso. Tão logo a campainha toca, tudo o que era sólido se desmancha
no ar. O único desejo é que nossa cara-metade suma, pois vivemos melhor sem
ela. Se dedicação e entrega viram exigência e obrigação, podemos estar
acompanhados, mas nossa condição é de solidão profunda. Abrir a boca para que,
se isso gerará briga e (mais) rancor? Se estar sozinho pode ser bom, a solidão
a dois é terrível, uma prisão autoimposta. Paradoxos da vida conjugal, vivemos
numa solitária em companhia indesejável.” P. 109-110.
A solidão dos
idosos...
“Não é incomum que encontremos idosos em festas de família. O
raro é encontrarmos essa pessoa perfeitamente enquadrada nas conversas da família.
No geral, está sentada num canto, ouvindo os mais jovens ou nem isso. Foi
levada ao encontro, mas não foi convidada a falar, não encontrou ninguém
disposto a ouvir ou, depois de um tempo em que a situação se repete, ela
própria talvez nem queira mais falar. O mundo que nos formou morre antes de
nós. Quando nos tornamos velhos, nossas referências de mundo já caducaram.
Alguém com 90 anos ouviu Carmen Miranda na infância. Com quem conversa sobre
isso numa festa apenas com pessoas mais jovens? O idoso é isolado. Sua solidão
pode ser no meio de muita gente e funcionar como uma solitária social.” P.
112.
A solidão é um
problema de saúde pública.
“Vale lembrar que a Organização Mundial da Saúde classifica a
solidão como fator de risco maior que o tabagismo e tão grande quanto a obesidade
para a saúde humana. Somente na Europa, mais da metade dos idosos com mais de
75 anos mora sozinha. Isso, em si, não é problema, apenas sinal dos tempos,
pois muitos desses idosos estão bem com a situação e o fazem por opção. Mas
outros tantos estão em quadros de solidão intensa devido à dispersão de seus
familiares.” P. 113.
A solidão as
vezes é necessária...
“É compreensível a solidão para fugir do mundo cheio de
incômodos. As pessoas nem sempre são agradáveis, e nós, muitas vezes, não queremos
ser obrigados à gentileza eterna. Custa energia sorrir quando você quer berrar.
Fugir da multidão virou um produto de luxo. Áreas mais reservadas no avião custam
mais. Quanto mais gente, mais barato. Praias isoladas, comprar sua ilha, estar
sozinho em um carro e não no transporte coletivo, ter um apartamento por andar,
visitar lugares sem ninguém, e assim vai. Sair do grande grupo é privilégio
extremo. Não estou pensando no indivíduo abastado na reclusão da primeira
classe, especialmente se estiver lá postando fotos para causar inveja ao mundo.
Comprou o isolamento e o privilégio de menos gente para conversar com a
multidão virtual.” P. 132.
...
“Terminaremos todos solitários em um túmulo algum dia.” P. 133.
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