sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Régine Pernoud e a Objetividade da História

Durante toda a história do pensamento clássico ocidental, a verdade sempre foi vista como objetiva ou absoluta. Por mais que houvessem discordâncias nas conclusões, havia unanimidade de que a maioria via a verdade como correspondência. A verdade era aquilo que é (Aristóteles). A verdade era descoberta, e não inventada. Não havia muito espaço para o relativismo. Claro que existia um ou outro teórico, que pendia para ideias relativistas ou algo semelhante. No entanto, o sentimento geral era de que podia-se acessar a verdade sobre o mundo, a vida, a natureza, o cosmos, Deus etc.

No século XX, precisamente em sua segunda metade, o ambiente cultural mudou. A Modernidade caía aos prantos diante da Pós-Modernidade. A verdade passa a ser vista como relativa e contextual, sendo o ser humano incapaz de se desprender das amarras sociais, para decodificar o mundo assim como ele é. Cada vez mais, a teoria da verdade como correspondência foi sendo questionada e motivo de risos, pelos mais cínicos filósofos, críticos literários e sociólogos. A verdade era vista agora como um meio eficaz de oprimir os mais fracos, e de legitimar interesses pessoais escusos. Os poderosos contam as suas verdades, que ocultam um poder de coerção para organizar a vida social e até natural, para que continuem a moldar a sociedade conforme os seus caprichos. Os ideais clássicos de verdade e razão foram às favas.

Os departamentos de História não escaparam dessa corrosão pós-modernista. A própria ideia de verdades objetivas no campo do estudo histórico foi solapada por alguns historiadores de grande influência. Alguns passaram a ver os estudos historiográficos como mera ficção e manipulação de documentos antigos que nada tinham a ver com verdade e objetividade. Eles não estavam pondo em xeque apenas as interpretações dos fatos históricos, mas os próprios fatos. Interpretações diversas dos acontecimentos sempre houve, os historiadores sabiam e sabem disto. A diferença é que agora, todas as interpretações não eram mais do que jogos de palavras e proposições sem consonância com o mundo real, mas apenas coadunavam-se com a visão e ideias subjetivas de quem escreve a história.

Felizmente, apesar de todos os estragos intelectuais feitos, a maioria dos historiadores não caíram no canto da sereia, segundo nos conta John Tosh, em seu livro A Busca da História.

Régine Pernoud, Historiadora, Arquivista e Paleografa, com um Ph.D em Letras na Ècole Nationale des Chartes, não caiu nessa maracutaia. Na sua obra Idade Média: O Que Não Nos Ensinaram, livro que foi tema da postagem passada, ela é cristalina quanto a busca da verdade objetiva no campo da história.

Pernoud sintetiza bem, o que historiadores relativistas pensam e fazem, e lhes dá uma resposta:

“‘Eu, compreenda, quando faço história, não é para saber se tal fato é exato ou não; procuro apenas aquilo que possa promover minhas ideias.’ Impunha-se uma resposta: ‘Então, caro senhor, por que faz história? Volte-se para a política, para o romance, o cinema, o jornalismo! A História não tem interesse a não ser quando busca a verdade; ela deixa de se chamar História desde que seja outro seu objetivo’. P. 112.

Para ela:

“[...] a História é o estudo paciente de documentos, às vezes bastante áridos, mas sempre concretos, traços de acontecimentos vividos por pessoas vivas, pouco preocupadas de se condicionar a teorias pré-fabricadas, ou a obedecer a estatísticas determinadas.” P. 112.

A objetividade deve pautar a pesquisa do historiador.

“Impossível negar de modo mais ingênuo ou com menos pudor a História. A liberdade de pensamento que ela exige e necessita como toda pesquisa científica, não pode ser confundida de forma alguma com fantasias intelectuais de um indivíduo ditadas por suas opções políticas, opiniões pessoais, impulsos momentâneos ou mais simplesmente pelo desejo de escrever um volume de grande tiragem. A História tem seu campo. Ela deixa de existir quando não for procura de verdade, fundamentada em documentos autênticos; ela se evapora literalmente; ou melhor, ela nada mais é do que fraude e mistificação. É, aqui, a ocasião de citar a belíssima definição de História de Henri Irénée Marrou: ‘Homem de ciência, o historiador, encontra-se, como nomeado por seus irmãos, os homens, para conquistar a verdade’.” P. 113.

Claro que podem e de fato existem muitas interpretações que deixam a desejar. Erros metodológicos contaminam a credibilidade e veracidade da pesquisa. Mas é precisamente a objetividade que faz com que esses erros sejam notados e corrigidos.

“Remontar às fontes, mas não a qualquer fonte, porque a confusão é frequente em demasia, entre fontes literárias e fontes históricas. É evidente que quando se toma ‘em primeiro grau’, ao pé da letra, o teor das canções de gesta ou dos romances de cavalaria, e se deseja fazer de seus personagens tipos de vida quotidiana, a humanidade que se descreve povoa se de monstros, de grandes crimes, de aberrações. O simples bom senso, parece, deveria bastar para retificar erros deste gênero. Isto não é nada. Vimos comentaristas, na França, principalmente, obstinados em tomar em uma acepção literal obras de pura fantasmagoria. Tudo o que se pode pedir a uma obra literária é que seja eco de uma mentalidade, não a descrição de uma realidade, ainda menos sua descrição exata.” P. 116.

A história sendo ficção para entretenimento dos leitores, está cagando para isso.

O verdadeiro trabalho de pesquisa histórica é árduo e cheio de percalços e dificuldades.

“Ciência árdua, que exige que se debruce, longamente, sobre cacos e escritos ilegíveis — os escritos ilegíveis a que os historiadores marxistas acharam bem tratar com desprezo, porque duvidam de sua própria existência enquanto historiadores. Pesar e repesar o valor histórico de cada fonte de documentação, desde a consistência da cerâmica até a carta ou ata do notário; isolar, lentamente, de uma justaposição de fatos controlados a substância viva, a que permite reconstituir peça por peça o itinerário de um personagem, sua obra, às vezes, quando se tem uma documentação suficiente- mente abundante e falante, sua mentalidade — isto exige anos de trabalho e em nossa época de facilidade é, ainda uma vez, quase heroico, mas é apenas a este preço que se faz História.” P. 132-133.

Não há problema em iniciar uma pesquisa, imbuído de uma certa visão, contanto que se os documentos analisados a desmentirem, o historiador abandone-a.

“Um preconceito como ponto de partida é estimulante por certo, mas é necessário saber se resignar a abandoná-lo sempre que os documentos assim o impuserem.” P. 133.

Isto é precisamente o que historiadores relativistas não farão. Ou as vezes nem são relativistas, apenas querem porque querem manter seus preconceitos a despeito de toda e qualquer evidência que os contrariem.

PERNOUD, Régine. Idade Média: O Que Não Nos Ensinaram. São Paulo: Linotipo Digital, 2016. (PDF).

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