Durante toda
a história do pensamento clássico ocidental, a verdade sempre foi vista como
objetiva ou absoluta. Por mais que houvessem discordâncias nas conclusões, havia
unanimidade de que a maioria via a verdade como correspondência. A verdade era
aquilo que é (Aristóteles). A verdade era descoberta, e não inventada. Não
havia muito espaço para o relativismo. Claro que existia um ou outro teórico, que
pendia para ideias relativistas ou algo semelhante. No entanto, o sentimento geral
era de que podia-se acessar a verdade sobre o mundo, a vida, a natureza, o
cosmos, Deus etc.
No século XX,
precisamente em sua segunda metade, o ambiente cultural mudou. A Modernidade caía
aos prantos diante da Pós-Modernidade. A verdade passa a ser vista como
relativa e contextual, sendo o ser humano incapaz de se desprender das amarras
sociais, para decodificar o mundo assim como ele é. Cada vez mais, a teoria da
verdade como correspondência foi sendo questionada e motivo de risos, pelos
mais cínicos filósofos, críticos literários e sociólogos. A verdade era vista
agora como um meio eficaz de oprimir os mais fracos, e de legitimar interesses
pessoais escusos. Os poderosos contam as suas verdades, que ocultam um poder de
coerção para organizar a vida social e até natural, para que continuem a moldar
a sociedade conforme os seus caprichos. Os ideais clássicos de verdade e razão
foram às favas.
Os departamentos
de História não escaparam dessa corrosão pós-modernista. A própria ideia de verdades
objetivas no campo do estudo histórico foi solapada por alguns historiadores de
grande influência. Alguns passaram a ver os estudos historiográficos como mera
ficção e manipulação de documentos antigos que nada tinham a ver com verdade e
objetividade. Eles não estavam pondo em xeque apenas as interpretações dos fatos
históricos, mas os próprios fatos. Interpretações diversas dos acontecimentos
sempre houve, os historiadores sabiam e sabem disto. A diferença é que agora, todas
as interpretações não eram mais do que jogos de palavras e proposições sem consonância
com o mundo real, mas apenas coadunavam-se com a visão e ideias subjetivas de
quem escreve a história.
Felizmente, apesar
de todos os estragos intelectuais feitos, a maioria dos historiadores não
caíram no canto da sereia, segundo nos conta John Tosh, em seu livro A Busca da
História.
Régine
Pernoud, Historiadora, Arquivista e Paleografa, com um Ph.D em Letras na Ècole
Nationale des Chartes, não caiu nessa maracutaia. Na sua obra Idade Média: O
Que Não Nos Ensinaram, livro que foi tema da postagem passada, ela é cristalina
quanto a busca da verdade objetiva no campo da história.
Pernoud sintetiza
bem, o que historiadores relativistas pensam e fazem, e lhes dá uma resposta:
“‘Eu, compreenda, quando faço história, não é para saber se
tal fato é exato ou não; procuro apenas aquilo que possa promover minhas
ideias.’ Impunha-se uma resposta: ‘Então, caro senhor, por que faz história? Volte-se
para a política, para o romance, o cinema, o jornalismo! A História não tem
interesse a não ser quando busca a verdade; ela deixa de se chamar História
desde que seja outro seu objetivo’. P. 112.
Para ela:
“[...] a História é o estudo paciente de documentos, às vezes
bastante áridos, mas sempre concretos, traços de acontecimentos vividos por
pessoas vivas, pouco preocupadas de se condicionar a teorias pré-fabricadas, ou
a obedecer a estatísticas determinadas.” P. 112.
A objetividade
deve pautar a pesquisa do historiador.
“Impossível negar de modo mais ingênuo ou com menos pudor a História.
A liberdade de pensamento que ela exige e necessita como toda pesquisa
científica, não pode ser confundida de forma alguma com fantasias intelectuais
de um indivíduo ditadas por suas opções políticas, opiniões pessoais, impulsos
momentâneos ou mais simplesmente pelo desejo de escrever um volume de grande
tiragem. A História tem seu campo. Ela deixa de existir quando não for procura
de verdade, fundamentada em documentos autênticos; ela se evapora literalmente;
ou melhor, ela nada mais é do que fraude e mistificação. É, aqui, a ocasião de
citar a belíssima definição de História de Henri Irénée Marrou: ‘Homem de
ciência, o historiador, encontra-se, como nomeado por seus irmãos, os homens,
para conquistar a verdade’.” P. 113.
Claro que
podem e de fato existem muitas interpretações que deixam a desejar. Erros metodológicos
contaminam a credibilidade e veracidade da pesquisa. Mas é precisamente a
objetividade que faz com que esses erros sejam notados e corrigidos.
“Remontar às fontes, mas não a qualquer fonte, porque a
confusão é frequente em demasia, entre fontes literárias e fontes históricas. É
evidente que quando se toma ‘em primeiro grau’, ao pé da letra, o teor das
canções de gesta ou dos romances de cavalaria, e se deseja fazer de seus personagens
tipos de vida quotidiana, a humanidade que se descreve povoa se de monstros, de
grandes crimes, de aberrações. O simples bom senso, parece, deveria bastar para
retificar erros deste gênero. Isto não é nada. Vimos comentaristas, na França,
principalmente, obstinados em tomar em uma acepção literal obras de pura
fantasmagoria. Tudo o que se pode pedir a uma obra literária é que seja eco de
uma mentalidade, não a descrição de uma realidade, ainda menos sua descrição
exata.” P. 116.
A história
sendo ficção para entretenimento dos leitores, está cagando para isso.
O verdadeiro
trabalho de pesquisa histórica é árduo e cheio de percalços e dificuldades.
“Ciência árdua, que exige que se debruce, longamente, sobre
cacos e escritos ilegíveis — os escritos ilegíveis a que os historiadores
marxistas acharam bem tratar com desprezo, porque duvidam de sua própria existência
enquanto historiadores. Pesar e repesar o valor histórico de cada fonte de
documentação, desde a consistência da cerâmica até a carta ou ata do notário;
isolar, lentamente, de uma justaposição de fatos controlados a substância viva,
a que permite reconstituir peça por peça o itinerário de um personagem, sua
obra, às vezes, quando se tem uma documentação suficiente- mente abundante e
falante, sua mentalidade — isto exige anos de trabalho e em nossa época de
facilidade é, ainda uma vez, quase heroico, mas é apenas a este preço que se
faz História.” P. 132-133.
Não há problema
em iniciar uma pesquisa, imbuído de uma certa visão, contanto que se os
documentos analisados a desmentirem, o historiador abandone-a.
“Um preconceito como ponto de partida é estimulante por
certo, mas é necessário saber se resignar a abandoná-lo sempre que os
documentos assim o impuserem.” P. 133.
Isto é
precisamente o que historiadores relativistas não farão. Ou as vezes nem são
relativistas, apenas querem porque querem manter seus preconceitos a despeito
de toda e qualquer evidência que os contrariem.
PERNOUD, Régine. Idade Média: O Que Não Nos Ensinaram. São Paulo: Linotipo Digital, 2016. (PDF).
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