segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

A Igreja Apoiou Hitler?


NETO, Willibaldo R. A Igreja Apoiou Hitler? 1º Edição – Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2024.

Não há dúvida de que um dos momentos mais tenebrosos e assustadores da triste história da humanidade foi o nazismo, com a sua matança implacável de milhões de judeus e outras etnias. Acrescentando mais desgraça a esse horrendo episódio, infelizmente, a igreja protestante alemã não fez jus aos ensinos do profeta salvador do século I, participando e carregando nas costas, para a vergonha do cristianismo, o sangue de milhões de pessoas, por causa de sua visão racista e covarde em apoiar Hitler e, quando menos, de fechar os olhos para o que estava acontecendo - o terrível pecado da omissão.

Este livreto é de um Historiador cristão, Willibaldo R. Neto, Doutor em História na UFPR. Não existe aqui “passada de pano” para os pecados (e crimes) da igreja.

“Afinal, no tempo de Hitler, os alemães eram ‘um povo essencialmente de igreja’, tendo 95% das pessoas batizadas e dizimistas em igrejas católicas e protestantes. Dessa forma, fica claro que grande parte dessa igreja apoiou o Hitler, uma vez que ele, diferentemente de outros ditadores - em geral odiados pela maioria - foi ‘adorado obedecido e pontuado por quase toda população’.” P. 10.

“[Hitler] durante a caminhada política recebeu o apoio de muitos cristãos e foi até mesmo associado a Jesus Cristo por mais absurdo que pareça.” P. 11.

Neto argumenta vigorosamente contra o falatório do senso comum, de que Hitler era um louco e um monstro. Quando as pessoas dizem isso, elas erram o alvo. Para o autor, esses predicativos acabam tirando de certa forma, a responsabilidade dele. Não! Muito pelo contrário! Ele era são e normal, e, portanto, totalmente responsável pelo que fez. Não foram atitudes loucas, mas atitudes pecaminosas. Um ato da vontade. Os adjetivos louco e monstro em nada ajudam a entender a complexidade do que foi o nazismo. 

Por mais estranho que possa soar, Hitler tinha grande amor pelos animais e pintou belos quadros. Passou pela tragédia de perder seu pai muito cedo e a sua mãe aos dezoito anos. As frustrações foram se avolumando desde cedo, sobretudo quando ele não conseguiu entrar na Academia. Aumentaram de modo avassalador com a derrota da Alemanha na primeira grande guerra. Hitler então se viu imbuído de uma grande missão: recuperar a glória da Alemanha e dos povos germânicos. Nele convergiram os desejos nacionais do povo alemão. E os cristãos foram seduzidos por suas ideias messiânicas. 

Hitler ‘fez realizações tão espantosas que muitos cristãos ouviam como resposta as suas orações’. Para certos cristãos, Hitler era uma espécie de Salvador, aquele que realizou o que mais desejavam, seus propósitos nacionalistas - muitos chegaram a ponto de substituir, em casa, imagens de Cristo por retratos de Hitler.” P. 24.

Com o tempo Hitler mostrou sua verdadeira face, e inúmeros cristãos, progressivamente desiludidos, perceberam o mal que haviam permitido crescer com seu apoio, ou mesmo silêncio. Muitos despertaram e tentaram reverter o desastre, ou pelo menos sanar o mal conforme podiam escondendo judeus ou tramando secretamente contra o regime nazista.

Outros cristãos, porém, continuaram apanhando o nazismo, nos deixando uma dúvida dolorosa: ‘Por que o povo alemão, e mais especialmente a Igreja não se afastou de Hitler quando os seus verdadeiros planos se tornaram conhecidos?’ A resposta parece ser que muitos compartilhavam das terríveis ideias de Hitler, enquanto outros preferiram crer em suas promessas e se mantiveram no curso destrutivo, visando ao cumprimento dos sonhos nacionalistas. Assim como no tempo de Jesus, muitos escolheram Barrabás, uma espécie de Messias político, colocando sonho de um reino terreno acima dos valores do reino celestial.” P. 25.

Neto convincentemente argumenta que o medo e ódio aos judeus pelos alemães foi alimentado pelos antigos preconceitos, discriminação e demonização advindos do antijudaísmo medieval, alimentado pelos cristãos em geral e também por Lutero. Não há como escapar das abundantes evidências históricas quanto a isso, que envergonham a história da igreja.

“[...] evidente que o antissemitismo nazista obteve seu argumento e seu apelo emocional no antigo judaísmo cristão por mais que não se possa determinar a medida dessa influência. [...] embora antes de Judaísmo e antissemitismo sejam diferentes, estão relacionados de modo que um preconceito alimentou o outro e lhe deu forças.

[...] Hitler se valeu de uma posição que era religiosa em sua origem mas que já se tornava um preconceito racial. Com certeza foi bastante útil para ele o fato de já existir uma visão negativa a respeito dos judeus herdada da Idade Média. Certamente a oposição de Hitler é muito diferente daquela da igreja medieval, contudo, apesar de envolverem acusações diferentes, em ambos os casos há semelhanças na rejeição e demonização dos judeus, estabelecendo preconceitos que vão para além do campo religioso ou político. P. 30-31.

Muitos detratores da religião cristã dizem que Hitler era cristão. Felizmente, quem é versado minimamente em sua biografia, sabe que isso não procede, e carece de bases factuais. O que aconteceu é que Hitler era o rei da dissimulação. O seu discurso “cristão” era convenientemente feito sob medida para atrair o povo alemão, majoritariamente, um povo de igreja. Na época havia um temor muito grande de que o comunismo adentrasse de vez na Alemanha, e já era de conhecimento público, que o comunismo soviético era implacável em sua perseguição as igrejas. O povo alemão não queria isso em seu país.

“[...] o Führer tinha duas posturas completamente opostas: em público, destacava que era católico, tendo sido batizado na infância e até mesmo se dizia defensor da cristandade no privado; entre seus amigos liderados mais próximos, debochava da fé cristã e tramava meios de eliminar o cristianismo estando determinado a extirpá-lo”. P. 36.

Como é tipico dos sistemas totalitários, Hitler usou e abusou de símbolos. O principal deles, a cruz gamada (suástica) foi gradualmente substituindo a cruz de Cristo, até mesmo em muitas igrejas. Para a “teologia” nazista, a cruz de Cristo era símbolo de derrota, visto que Jesus em sua luta contra os judeus, não conseguiu derrotá-los, sendo morto na cruz. Cabia a Hitler terminar o que Jesus começou.

“[...] Qual era a motivação por trás do uso da suástica nas igrejas? Segundo os nazistas, a cruz de Cristo seria um símbolo de  derrota, e Jesus, em vez de ser Judeu, teria sido um ariano que lutou os judeus e não os venceu”. P. 48.

Para fechar o pacote de tantas distorções, mesmo antes da ascensão do nazismo, na Alemanha já se especulava a teoria estapafúrdia de que Jesus não foi judeu, mas um ariano com todas as características físicas agradáveis ao sistema racista daquela sociedade. Sendo Jesus da estirpe superior branca ariana, estava mais do que consolidado o ódio aos judeus, visto que eles o mataram. Não haveria motivo algum para considerá-los dignos de respeito, empatia, misericórdia... Com todos esses ingredientes mencionados até aqui, cristianismo e nazismo se mesclaram de tal forma que:

“[...] as suásticas nazistas ocupavam as igrejas e casas dos cristãos, de modo que mulheres cristãs se empenhavam em bordar a cruz de Cristo dentro das suásticas, dando vazão a seu desejo de mesclar ambas as coisas.

Muitos cristãos, portanto, decidiram depositar sua fé e esperança em Hitler para além da substituição da cruz pela sua suástica nas igrejas, houve, no coração de muitos, a troca da confiança na provisão de Deus pela fé na provisão do Estado nazista. As suásticas dentro das igrejas apenas refletiam a nova idolatria, como podemos ver nas palavras de Ernst Martin, reitor da catedral de Magdeburgo, em 1933: ‘Quem quer quem insulte este símbolo está insultando a Alemanha. [...] As suásticas em torno do altar transmitem esperança; a esperança de que esse dia esteja pelo menos a ponto de amanhecer’.

[...] os principais responsáveis por espalhar a ideia do Jesus Ariano pela Alemanha foram os próprios teólogos e pastores que acreditaram nela, de modo que ‘a adoração Adolf Hitler partia dos púlpitos alemães’.” P. 56.

O nazismo invadiu os ambientes eclesiásticos. O Movimento Cristão Alemão deu total apoio ao Nacional-Socialismo, colocando Hitler num pedestal quase divino.

Em 1933, na eleição para representantes dos conselhos paroquiais da Confederação da Igreja Protestante Alemã (incluindo igrejas luteranas,  reformadas e protestantes unidas), os partidários de Hitler conseguiram dois terços dos votos. Com essa, que foi votação mais surpreendente da história das igrejas protestantes, os nazistas tomaram postos no episcopado das igrejas da Alemanha, de modo com Movimento Cristão Alemão pareceu imparável, fazendo frente à igreja confessante, que se opunha a Hitler.

O Movimento Cristão Alemão tinha como grande objetivo a implantação da visão ariana dentro da igreja institucional protestante. Para alcançar isso, foi criado em 1939, o Instituto para Estudo e Erradicação da Influência Judaica da Vida Religiosa Alemã, entidade que apresentou novas versões da Bíblia, revisou hinos, mudou liturgia e, assim, procurou apagar os traços da origem judaica do cristianismo. Esse Instituto era formado não só por membros de igrejas cristãs, mas também por alunos de teologia, teólogos e pastores. Desse modo, em vez de servirem como porta-vozes da verdade do evangelho contra o regime nazista, muitos pastores e bispos decidiram ser apenas os transmissores da “verdade” revelada por Hitler. Serviram a Hitler como se ele fosse uma espécie de faraó, um deus encarnado.” P. 60-61.

Entretanto, claro que houve líderes eclesiásticos que se opunham ao regime hitleriano. Barth, Bonhoeffer e Niemöller, por exemplo. Este último lamentou profundamente a omissão generalizada da igreja frente a perseguição aos judeus. Palavras dele:

“Em 1933, e nos anos seguintes, havia aqui na Alemanha 14.000 pastores evangélicos e um grande número de paróquias (...) Se no início da perseguição aos judeus tivéssemos percebido que era o senhor Jesus Cristo quem estava sendo perseguido, atacado e chacinado ‘no mais humilde desses nossos irmãos’; se tivéssemos sido fiéis e confessado o seu nome, por tudo que sei, Deus teria ficado do nosso lado e toda a sequência de eventos teria tomado um rumo diferente.” P. 63-64.

Quanto ao papel do papa Pio XII, Neto nega que ele tenha sido o papa de Hitler, como ainda se propaga muito por aí. A história de que o papa foi conivente com as atrocidades nazistas, não passa de um mito patrocinado pela URSS. De fato, historiadores têm confirmado que, na verdade, o papa salvou muitos judeus. 

O regime nazista é uma chaga na história alemã e na história das igrejas dessa nação. Para concluir, aqui vão longos trechos do livro:

“[...] Esse trauma se aplica à nação como um todo, mas de forma singular à igreja alemã, não somente pelo apoio que muitos cristãos alemães deram a Hitler, mas também porque mesmo grandes referências teológicas, que não se dobraram ao nazismo, foram marcadas pelo silêncio. Karl Barth, por exemplo, um dos grandes nomes da Igreja Confessante, teve seu tempo de silêncio antes de fazer a coisa certa, como lembrou Paul Tillich:

‘Em 1° de abril de 1933, as igrejas nada disseram quando os judeus foram atacados pela primeira vez e muitas vidas e propriedades foram destruídas. As igrejas nada falaram até que elas mesmas foram atacadas por Hitler. Essa foi uma das grandes falhas das igrejas alemãs e também de Karl Barth. Mas, logo após, Barth se tornou o líder da resistência intraeclesiástica ao Nacional-Socialismo. Finalmente, reconheceu o que antes havia negado, que o movimento encabeçado por Hitler era quase religioso e representava sério ataque contra o cristianismo’.

Karl Barth e a Igreja Confessante se colocaram contra Hitler. Porém, com o fim da segunda guerra e o término do pesadelo que foi o regime nazista, ficou o sentimento de que poderiam ter feito mais. O sentimento de que poderiam ter agido antes, ou mesmo com mais intensidade, fosse no caminho da conspiração, como Bonhoeffer, fosse no caminho da oposição teológica, relembrando a verdade do evangelho em oposição ao ódio destilado pelos nazistas. Por isso, após a guerra, Niemöller fez sua famosa declaração:

‘Quando os nazistas vieram buscar os comunistas, fiquei em silêncio; eu não era comunista. Quando prenderam os sociais-democratas, fiquei em silêncio; eu não era social-democrata. Quando vieram buscar os sindicalistas, não disse nada; eu não sindicalista. Quando buscaram os judeus, fiquei em silêncio; eu não era judeu. Quando eles vieram me buscar, já não havia ninguém que pudesse protestar.’

[...]

Essa culpa também marcou a Igreja Evangélica da Alemanha, tanto pela participação do Movimento Cristão Alemão como pelo silêncio daqueles que não fizeram parte dele. Isso fica claro na “Declaração de Culpa de Stuttgart” [...], de 19 de outubro de 1945, que afirma:

‘Por nossa causa, incalculável sofrimento foi infligido a muitos povos e nações. (...) Lutamos por muitos anos em nome de Jesus Cristo contra o espírito que encontrou terrível expressão no violento regime Nacional-Socialista, mas nos acusamos por não havermos confessado mais corajosamente, não havermos orado com mais fé, não havermos crido com maior alegria e não havermos amado mais apaixonadamente.’

Não foi necessário que alguém acusasse os protestantes alemães de serem cúmplices do nazismo, fosse por seu apoio, fosse por seu silêncio. Foi a própria igreja da Alemanha que, no fim da guerra, reconheceu e declarou sua culpa.

Antes do término da guerra, o pastor Franz Hildenbrandt (1909-1985) já havia culpado a igreja no sermão de 1º de marco de 1944, abordando o texto de Hebreus 6:6. Além de lembrar a prisão de seu amigo Martin Niemöller, Hildenbradt condenou os cristãos que perverteram o cristianismo, misturando-o com o nazismo, bem como todas as igrejas alemãs, católicas ou protestantes:

‘A traição que as igrejas cometeram contra Cristo será escrita em um livro por um autor contemporâneo; não há entre nós nenhum inocente dessa traição, ninguém que não tenha , sabendo ou sem saber, crucificado o Filho de Deus novamente e o exposto ao ridículo.’ P. 77-79.

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Filhos de Nazistas

 


CRASNIANSKI, Tania. Filhos de Nazistas. São Paulo: Vestígio, 2018. (PDF).

O nazismo deixou marcas indeléveis na história da Alemanha e do mundo. O seu legado cruel, abjeto e racista trouxe vergonha e opróbrio ao povo alemão, deixando feridas abertas que teimam em não cicatrizar, mesmo depois de muitas décadas de sua derrota na segunda guerra mundial em 1945. Passaram-se muitos anos, mais de uma geração, contudo, é um tema doloroso e difícil de falar e lidar. A Alemanha sente um peso enorme em suas costas, pelas atrocidades feitas por Hitler e seus comparsas criminosos. Junte-se a isso, a passividade e conivência da sociedade alemã, que não se importou com os judeus que até antes do início da guerra, já estavam sendo enxotados, perseguidos, presos (alguns mortos) e suas casas e pertencentes dilapidados pelos soldados nazistas, antes da “Solução Final”, já na guerra, que era nada mais nada menos que o seu total aniquilamento nos campos de concentração, trabalhando em condições escravas e, por fim, sendo envenenados nas derradeiras câmaras de gás. Os alemães perderam a guerra, foram derrotados e envergonhados mais uma vez, a exemplo da primeira guerra mundial (1914-1918), muitos de seus principais perpetradores foram presos, mortos, ou suicidaram-se. Mas eles deixaram descendentes.

É de conhecimento geral de que Hitler não deixou filhos. Era a vontade dele não tê-los. E até onde temos conhecimento, não chegou a ser pai. “Que problema se eu tivesse filhos! Acabariam por fazer de meu filho meu sucessor. E um homem como eu não tem a mínima chance de ter um filho capaz. É quase sempre assim nesses casos. Olhem o filho de Goethe, um incapaz!”. (P. 13). Não obstante, os seus companheiros de crime mais próximos, obviamente, foram pais. E é nos seus descendentes que o presente livro se concentra.

A advogada Tania Crasniansk, ela mesma, descendente de nazistas (seu avô), foi em busca da história dos filhos dos principais agentes do nazismo, e nos traz um pouco do que foram suas vidas, suas visões e interpretações das atitudes dos seus progenitores no assassinato de milhões de pessoas, em nome do Führer, da grandeza da Alemanha e do povo ariano. Defendendo os seus pais ou não, o fato é que marcas profundas foram cravadas em suas almas. A biografa deles naturalmente se entrelaça com a vida de seus pais. Crasniansk devota boa parte de cada capítulo a biografar o pai e a mãe de cada um.

O primeiro descendente que ela traz é Gudrum Himmler, filha de Heinrich Himmler, “mestre inconteste e fanático do aparato repressivo do Terceiro Reich. [...] homem-chave da Gestapo e da SS”. P. 15. Depois que o nazismo ruiu e seu pai morreu, Gudrum sofreu muita rejeição da sociedade, sendo preterida em colégios e outras instituições, pois era considerada uma criança incômoda. Teve a plena convicção de que seu pai era inocente e de que ele não cometeu suicídio, mas que foi assassinado na prisão. Durante toda a sua vida, o idolatrou, andou e confraternizou com simpatizantes nazistas de extrema-direita. Viveu até a sua morte (2018) em estado de negação, mesmo diante de todas as provas do legado maléfico e nefasto de seu pai. “Sua implicação nas organizações de ajuda a nazistas e seu apoio à extrema-direita alemã demonstram que não pretende apenas reabilitar seu pai, mas também perseguir seus funestos ideais.” P. 24.

O segundo descendente é Edda Göring, que a exemplo da anterior, também passou toda a sua existência pós-guerra inocentando o seu pai, Hermann Göring, capanga que esteve na origem da Gestapo, dos primeiros campos de concentração e foi o líder da força aérea alemã. Edda em sua infância foi tratada com todo o conforto que um general nazista do alto escalão podia proporcionar, devido as pilhagens que fazia. “Edda cresce na luxuosa mansão, cercada por um imenso parque e milhares de hectares de floresta habitados por bisões, búfalos, cervos, alces e cavalos selvagens.” P. 29. Mas quando a Alemanha perdeu a guerra, toda a vida de princesa cessou. Apesar de todas as agruras vividas depois da prisão de Göring, ela se tornou advogada na Universidade de Munique, apesar de não ter exercido a profissão. Jamais se conformou com o destino do pai. “[...] devota um amor incondicional ao pai, recusando-se a ver nele um dos maiores culpados pela Shoah. Edda está convencida de que ele não foi responsável pela perseguição aos judeus – ele que, em julho de 1941, ordenou a Heydrich a colocação em prática da Solução Final na Europa.” P. 36.

Wolf Hess é o terceiro da lista. Filho de “Rudolf Hess, o braço direito do Führer”. P. 38. Seu pai, assim como muitos outros nazistas, era um fanático e lunático por Hitler. “Não tenho consciência, minha consciência é Adolf Hitler”. P. 39-40. Depois que Rudolf foi preso, Wolf poucos anos depois viajou à África do Sul, onde o legado racista do seu pai aflorou vez. Para Wolf, os brancos mereciam lugar de destaque entre os demais, pois eram superiores, e, portanto a segregação era necessária.  Por questão de consciência, nega-se a prestar serviço militar, conseguindo a isenção. Forma-se em engenharia civil.  Ignorando todas as evidências, passou toda a sua vida defendendo a inocência do pai. Wolf nunca aceitou a condenação do pai. Sempre o idealizou, considerando-o um mensageiro da paz. [...] Orgulhoso do pai, Wolf Rüdiger considera que seu nome nunca foi uma maldição para ele, muito pelo contrário. [...] Até sua morte, Wolf Rüdiger Hess dirigiu a sociedade de defesa de Rudolf Hess, a Rudolf Hess Gesellschaft e.V. A organização, criada em 1988, tem por missão elucidar as razões da morte de Rudolf Hess, dando crédito à tese do assassinato.” P. 48.

Na contramão dos anteriores, o quarto protagonista, Niklas Frank, não viveu em estado de negação. Prontamente reconhece os graves erros cometidos pelo seu pai, Hans Frank, conhecido como o ‘açougueiro de Cracóvia’.” P. 50. Niklas desde criança, já se sentia deslocado e em questionamento com a dinâmica de sua família. Sua vaidosa mãe comprava a preços miseráveis os corpetes confeccionados pelos judeus, levando o pequeno Niklas com ela, ao gueto concentrado de presos. Aquilo já o incomodava. “O que fazem essas pessoas raquíticas, nesse bairro de uma pobreza assustadora e de uma imundice abjeta? – pergunta-se o menino. – Por que estão aí? Parecem ter medo. Suas roupas estão sujas e rasgadas. Estão quase pelados e tão magros que dá para ver os ossos! Por que estão descalços na neve? O que fizeram para estar nesse lugar horrível? Estão sendo castigados? E esses olhos, tão grandes! Parecem maiores do que os rostos. Não têm o que comer? Lá em casa, temos muitas coisas gostosas, inclusive chocolate!” P. 50. Quando seu pai é detido, Niklas, o mais caçula, tem apenas 6 anos. Aos 7, seu pai é enforcado. Niklas não derramou uma lágrima, pois apesar da pouca idade, compreendia que seu pai era um mentiroso e criminoso de guerra. Niklas acha que seu pai merecia ser executado, e fica feliz com isso. Também duvida de sua fé católica tardia.” P. 59. Durante toda a sua vida carregou a culpa e o remorso pelo que o seu pai fez.

O quinto é Martin Adolf Borman, filho deMartin Bormann, o secretário particular do Führer. [...] conhecido como ‘Führer das sombras’”. P. 73. O sobrenome Adolf é para homenagear Hitler. Devido as notas baixas na escola, seu pai o manda para um internato nazista de educação muito rígida. O seu pai além de muito ausente, não tem quase nenhuma afeição por ele, tratando-o com bastante severidade. Quando soube pela rádio, que Hitler está morto, ele e todos os internos são mandados embora do internato. Que se virem para encontrar os seus familiares em meio aos caos da guerra e da derrota. Ele muda de nome, para se precaver de uma possível detenção por ser filho de Borman. “O psicólogo israelense Dan Bar-On, que conversou com ele quarenta anos depois, destaca que Martin Adolf ainda não conseguia controlar suas emoções ao evocar aquele período de sua vida.” P. 77. “O jovem [Borman filho] tem dificuldade em lidar com seu passado e com sua filiação. Acredita que não podemos escapar dos nossos pais, ‘sejam quem forem’.” P. 78. Diante desse pesado fardo, ele vira padre, e anos depois vai ser missionário no Congo. Tempos depois, larga a batina e se casa. A exemplo do Niklas, ele reconhece que o pai cometeu atrocidades, mas que só Deus em sua perfeita justiça, poderá julgá-lo. Não o odeia. 

O capítulo seguinte concentra-se mais na história de Rudolf Höss, o frio e cruel comandante de Auschwitz, do que na história de seus filhos. Höss era o encarregado de matar os judeus nas câmaras de gás. Da sua moradia com esposas e filhos, muitas vezes dava para sentir o cheiro de carne humana queimada que os ventos traziam do campo de concentração. “A morte é o dia a dia de Höss: sua missão é matar, e ele a executa com todo o afinco. Foi treinado para exterminar e contar os mortos com uma obsessão maníaca pelas cifras e pela eficácia industrial.” P. 86. Quando da rendição da Alemanha, ele foge com a família, no entanto, sua esposa acaba-o entregando. É enforcado. “A família vive então na miséria e tenta ser discreta. Assume uma postura de negação, como se sua genealogia tivesse começado com a morte do pai.” P. 90. Brigitte, uma das filhas de Höss, depois de passar por vários países, vai para os EUA, onde trabalha para uma judia, que mesmo sabendo que ela foi filha de um grande criminoso nazista, sabe que não pode ser imputada a ela, os crimes do pai. Durante toda a sua vida, fez de tudo para esconder sua filiação a Höss por medo, revelando-a publicamente apenas em idade avançada. Em entrevista, minimiza os atos abjetos do pai.

Albert Speer, o “arquiteto do diabo” é o pai dos próximos filhos biografados. Resumindo a sua história, quando da rendição da Alemanha, ele é preso, julgado em Nuremberg, e por enganar bem o tribunal, alegando que apesar de fazer parte da máquina nazista, não sabia dos extermínios perpetrados, resultando numa leve sentença de 20 anos de prisão. Teve vários filhos, que tiveram de carregar o fardo de encarar a realidade brutal que o seu pai causou. Em 1966 é solto. Volta a ter contato com a família, no entanto, é relação estranha, fria, distante. Speer mantém apenas uma relação formal com os filhos, sem nenhum contato físico ou gesto caloroso, apenas uma polidez fria. Até a palavra ‘pai’ se torna tabu. Às vezes se pergunta se não seria melhor nunca mais voltar para a família. P. 99. “Segundo Hilde [sua filha], a culpa é uma noção complexa. Depois de ter pensado nisso por anos, a filha de Speer acredita que não se pode ser considerado responsável pelo que não se cometeu.” P. 103. “Margret Niessen [outra filha] se questiona sobre o pai. Como ele pôde colocar seu conhecimento profissional a serviço de um regime como aquele? Evoca o tempo da infância, o homem que ele era em casa, depois o que se tornou com a guerra, durante sua detenção e após sua libertação.” P. 103.

Chegando à última história, temos o advogado Rolf Mengele, um dos filhos de Josef Mengele, o anjo da morte. O médico responsável por liderar e fazer pesquisas médicas desumanas, grotescas e inimagináveis nos judeus e outros aprisionados. Ele consegue escapar da prisão e vive em liberdade por mais de três décadas, vindo parar no Brasil. Rolf rechaça de modo veemente a sua visão de mundo. Pelo contrário, minhas opiniões são diametralmente opostas às dele. Eu nem sequer tinha vontade de escutá-lo ou de me interessar por suas ideias. Rejeitava em bloco tudo o que me apresentava. Minha atitude pessoal em relação à política nacional e internacional nunca esteve em dúvida. P. 106. Quando criança, seu pai absolutamente não tinha tempo para estar com ele, depois de derrotado na guerra, sua maior preocupação era se manter escondido dos caçadores de nazistas. Nos anos setenta, finalmente ocorre o encontro dos dois, no Brasil. “Para Rolf, Josef Mengele permanecerá para sempre um estranho. E é por isso mesmo que deseja tanto o encontro, por mais que o velho recluso, depressivo e suicida que Mengele se tornou esteja bem longe do herói que sua mãe tinha inventado.” P. 112. São água e vinho. Palavras de Rolf: “[...] Nunca compreenderei como seres humanos puderam se comportar assim. O fato de se tratar do meu pai não muda nada. Para mim, o que aconteceu foi contrário a qualquer ética, a qualquer moral e lança uma sombra terrível sobre a natureza humana.” P. 113.