CRASNIANSKI, Tania. Filhos de Nazistas. São Paulo: Vestígio, 2018. (PDF).
O nazismo deixou marcas indeléveis na história da Alemanha e do mundo. O seu legado cruel, abjeto e racista trouxe vergonha e opróbrio ao povo alemão, deixando feridas abertas que teimam em não cicatrizar, mesmo depois de muitas décadas de sua derrota na segunda guerra mundial em 1945. Passaram-se muitos anos, mais de uma geração, contudo, é um tema doloroso e difícil de falar e lidar. A Alemanha sente um peso enorme em suas costas, pelas atrocidades feitas por Hitler e seus comparsas criminosos. Junte-se a isso, a passividade e conivência da sociedade alemã, que não se importou com os judeus que até antes do início da guerra, já estavam sendo enxotados, perseguidos, presos (alguns mortos) e suas casas e pertencentes dilapidados pelos soldados nazistas, antes da “Solução Final”, já na guerra, que era nada mais nada menos que o seu total aniquilamento nos campos de concentração, trabalhando em condições escravas e, por fim, sendo envenenados nas derradeiras câmaras de gás. Os alemães perderam a guerra, foram derrotados e envergonhados mais uma vez, a exemplo da primeira guerra mundial (1914-1918), muitos de seus principais perpetradores foram presos, mortos, ou suicidaram-se. Mas eles deixaram descendentes.
É de conhecimento geral de que Hitler não deixou filhos. Era a vontade dele não tê-los. E até onde temos conhecimento, não chegou a ser pai. “Que problema se eu tivesse filhos! Acabariam por fazer de meu filho meu sucessor. E um homem como eu não tem a mínima chance de ter um filho capaz. É quase sempre assim nesses casos. Olhem o filho de Goethe, um incapaz!”. (P. 13). Não obstante, os seus companheiros de crime mais próximos, obviamente, foram pais. E é nos seus descendentes que o presente livro se concentra.
A advogada Tania Crasniansk, ela mesma, descendente de nazistas (seu avô), foi em busca da história dos filhos dos principais agentes do nazismo, e nos traz um pouco do que foram suas vidas, suas visões e interpretações das atitudes dos seus progenitores no assassinato de milhões de pessoas, em nome do Führer, da grandeza da Alemanha e do povo ariano. Defendendo os seus pais ou não, o fato é que marcas profundas foram cravadas em suas almas. A biografa deles naturalmente se entrelaça com a vida de seus pais. Crasniansk devota boa parte de cada capítulo a biografar o pai e a mãe de cada um.
O primeiro descendente que ela traz é Gudrum Himmler, filha de Heinrich Himmler, “mestre inconteste e fanático do aparato repressivo do Terceiro Reich. [...] homem-chave da Gestapo e da SS”. P. 15. Depois que o nazismo ruiu e seu pai morreu, Gudrum sofreu muita rejeição da sociedade, sendo preterida em colégios e outras instituições, pois era considerada uma criança incômoda. Teve a plena convicção de que seu pai era inocente e de que ele não cometeu suicídio, mas que foi assassinado na prisão. Durante toda a sua vida, o idolatrou, andou e confraternizou com simpatizantes nazistas de extrema-direita. Viveu até a sua morte (2018) em estado de negação, mesmo diante de todas as provas do legado maléfico e nefasto de seu pai. “Sua implicação nas organizações de ajuda a nazistas e seu apoio à extrema-direita alemã demonstram que não pretende apenas reabilitar seu pai, mas também perseguir seus funestos ideais.” P. 24.
O segundo descendente é Edda Göring, que a exemplo da anterior, também passou toda a sua existência pós-guerra inocentando o seu pai, Hermann Göring, capanga que esteve na origem da Gestapo, dos primeiros campos de concentração e foi o líder da força aérea alemã. Edda em sua infância foi tratada com todo o conforto que um general nazista do alto escalão podia proporcionar, devido as pilhagens que fazia. “Edda cresce na luxuosa mansão, cercada por um imenso parque e milhares de hectares de floresta habitados por bisões, búfalos, cervos, alces e cavalos selvagens.” P. 29. Mas quando a Alemanha perdeu a guerra, toda a vida de princesa cessou. Apesar de todas as agruras vividas depois da prisão de Göring, ela se tornou advogada na Universidade de Munique, apesar de não ter exercido a profissão. Jamais se conformou com o destino do pai. “[...] devota um amor incondicional ao pai, recusando-se a ver nele um dos maiores culpados pela Shoah. Edda está convencida de que ele não foi responsável pela perseguição aos judeus – ele que, em julho de 1941, ordenou a Heydrich a colocação em prática da Solução Final na Europa.” P. 36.
Wolf Hess é o terceiro da lista. Filho de “Rudolf Hess, o braço direito do Führer”. P. 38. Seu pai, assim como muitos outros nazistas, era um fanático e lunático por Hitler. “Não tenho consciência, minha consciência é Adolf Hitler”. P. 39-40. Depois que Rudolf foi preso, Wolf poucos anos depois viajou à África do Sul, onde o legado racista do seu pai aflorou vez. Para Wolf, os brancos mereciam lugar de destaque entre os demais, pois eram superiores, e, portanto a segregação era necessária. Por questão de consciência, nega-se a prestar serviço militar, conseguindo a isenção. Forma-se em engenharia civil. Ignorando todas as evidências, passou toda a sua vida defendendo a inocência do pai. “Wolf nunca aceitou a condenação do pai. Sempre o idealizou, considerando-o um mensageiro da paz. [...] Orgulhoso do pai, Wolf Rüdiger considera que seu nome nunca foi uma maldição para ele, muito pelo contrário. [...] Até sua morte, Wolf Rüdiger Hess dirigiu a sociedade de defesa de Rudolf Hess, a Rudolf Hess Gesellschaft e.V. A organização, criada em 1988, tem por missão elucidar as razões da morte de Rudolf Hess, dando crédito à tese do assassinato.” P. 48.
Na contramão dos anteriores, o quarto protagonista, Niklas Frank, não viveu em estado de negação. Prontamente reconhece os graves erros cometidos pelo seu pai, “Hans Frank, conhecido como o ‘açougueiro de Cracóvia’.” P. 50. Niklas desde criança, já se sentia deslocado e em questionamento com a dinâmica de sua família. Sua vaidosa mãe comprava a preços miseráveis os corpetes confeccionados pelos judeus, levando o pequeno Niklas com ela, ao gueto concentrado de presos. Aquilo já o incomodava. “O que fazem essas pessoas raquíticas, nesse bairro de uma pobreza assustadora e de uma imundice abjeta? – pergunta-se o menino. – Por que estão aí? Parecem ter medo. Suas roupas estão sujas e rasgadas. Estão quase pelados e tão magros que dá para ver os ossos! Por que estão descalços na neve? O que fizeram para estar nesse lugar horrível? Estão sendo castigados? E esses olhos, tão grandes! Parecem maiores do que os rostos. Não têm o que comer? Lá em casa, temos muitas coisas gostosas, inclusive chocolate!” P. 50. Quando seu pai é detido, Niklas, o mais caçula, tem apenas 6 anos. Aos 7, seu pai é enforcado. Niklas não derramou uma lágrima, pois apesar da pouca idade, compreendia que seu pai era um mentiroso e criminoso de guerra. “Niklas acha que seu pai merecia ser executado, e fica feliz com isso. Também duvida de sua fé católica tardia.” P. 59. Durante toda a sua vida carregou a culpa e o remorso pelo que o seu pai fez.
O quinto é Martin Adolf Borman, filho de “Martin Bormann, o secretário particular do Führer. [...] conhecido como ‘Führer das sombras’”. P. 73. O sobrenome Adolf é para homenagear Hitler. Devido as notas baixas na escola, seu pai o manda para um internato nazista de educação muito rígida. O seu pai além de muito ausente, não tem quase nenhuma afeição por ele, tratando-o com bastante severidade. Quando soube pela rádio, que Hitler está morto, ele e todos os internos são mandados embora do internato. Que se virem para encontrar os seus familiares em meio aos caos da guerra e da derrota. Ele muda de nome, para se precaver de uma possível detenção por ser filho de Borman. “O psicólogo israelense Dan Bar-On, que conversou com ele quarenta anos depois, destaca que Martin Adolf ainda não conseguia controlar suas emoções ao evocar aquele período de sua vida.” P. 77. “O jovem [Borman filho] tem dificuldade em lidar com seu passado e com sua filiação. Acredita que não podemos escapar dos nossos pais, ‘sejam quem forem’.” P. 78. Diante desse pesado fardo, ele vira padre, e anos depois vai ser missionário no Congo. Tempos depois, larga a batina e se casa. A exemplo do Niklas, ele reconhece que o pai cometeu atrocidades, mas que só Deus em sua perfeita justiça, poderá julgá-lo. Não o odeia.
O capítulo seguinte concentra-se mais na história de Rudolf Höss, o frio e cruel comandante de Auschwitz, do que na história de seus filhos. Höss era o encarregado de matar os judeus nas câmaras de gás. Da sua moradia com esposas e filhos, muitas vezes dava para sentir o cheiro de carne humana queimada que os ventos traziam do campo de concentração. “A morte é o dia a dia de Höss: sua missão é matar, e ele a executa com todo o afinco. Foi treinado para exterminar e contar os mortos com uma obsessão maníaca pelas cifras e pela eficácia industrial.” P. 86. Quando da rendição da Alemanha, ele foge com a família, no entanto, sua esposa acaba-o entregando. É enforcado. “A família vive então na miséria e tenta ser discreta. Assume uma postura de negação, como se sua genealogia tivesse começado com a morte do pai.” P. 90. Brigitte, uma das filhas de Höss, depois de passar por vários países, vai para os EUA, onde trabalha para uma judia, que mesmo sabendo que ela foi filha de um grande criminoso nazista, sabe que não pode ser imputada a ela, os crimes do pai. Durante toda a sua vida, fez de tudo para esconder sua filiação a Höss por medo, revelando-a publicamente apenas em idade avançada. Em entrevista, minimiza os atos abjetos do pai.
Albert Speer, o “arquiteto do diabo” é o pai dos próximos filhos biografados. Resumindo a sua história, quando da rendição da Alemanha, ele é preso, julgado em Nuremberg, e por enganar bem o tribunal, alegando que apesar de fazer parte da máquina nazista, não sabia dos extermínios perpetrados, resultando numa leve sentença de 20 anos de prisão. Teve vários filhos, que tiveram de carregar o fardo de encarar a realidade brutal que o seu pai causou. Em 1966 é solto. Volta a ter contato com a família, no entanto, é relação estranha, fria, distante. “Speer mantém apenas uma relação formal com os filhos, sem nenhum contato físico ou gesto caloroso, apenas uma polidez fria. Até a palavra ‘pai’ se torna tabu. Às vezes se pergunta se não seria melhor nunca mais voltar para a família.” P. 99. “Segundo Hilde [sua filha], a culpa é uma noção complexa. Depois de ter pensado nisso por anos, a filha de Speer acredita que não se pode ser considerado responsável pelo que não se cometeu.” P. 103. “Margret Niessen [outra filha] se questiona sobre o pai. Como ele pôde colocar seu conhecimento profissional a serviço de um regime como aquele? Evoca o tempo da infância, o homem que ele era em casa, depois o que se tornou com a guerra, durante sua detenção e após sua libertação.” P. 103.
Chegando à última história, temos o advogado Rolf Mengele, um dos filhos de Josef Mengele, o anjo da morte. O médico responsável por liderar e fazer pesquisas médicas desumanas, grotescas e inimagináveis nos judeus e outros aprisionados. Ele consegue escapar da prisão e vive em liberdade por mais de três décadas, vindo parar no Brasil. Rolf rechaça de modo veemente a sua visão de mundo. “Pelo contrário, minhas opiniões são diametralmente opostas às dele. Eu nem sequer tinha vontade de escutá-lo ou de me interessar por suas ideias. Rejeitava em bloco tudo o que me apresentava. Minha atitude pessoal em relação à política nacional e internacional nunca esteve em dúvida. ” P. 106. Quando criança, seu pai absolutamente não tinha tempo para estar com ele, depois de derrotado na guerra, sua maior preocupação era se manter escondido dos caçadores de nazistas. Nos anos setenta, finalmente ocorre o encontro dos dois, no Brasil. “Para Rolf, Josef Mengele permanecerá para sempre um estranho. E é por isso mesmo que deseja tanto o encontro, por mais que o velho recluso, depressivo e suicida que Mengele se tornou esteja bem longe do herói que sua mãe tinha inventado.” P. 112. São água e vinho. Palavras de Rolf: “[...] Nunca compreenderei como seres humanos puderam se comportar assim. O fato de se tratar do meu pai não muda nada. Para mim, o que aconteceu foi contrário a qualquer ética, a qualquer moral e lança uma sombra terrível sobre a natureza humana.” P. 113.
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