NETO, Willibaldo R. A Igreja Apoiou Hitler? 1º Edição – Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2024.
Não há dúvida de que um dos momentos mais tenebrosos e assustadores da triste história da humanidade foi o nazismo, com a sua matança implacável de milhões de judeus e outras etnias. Acrescentando mais desgraça a esse horrendo episódio, infelizmente, a igreja protestante alemã não fez jus aos ensinos do profeta salvador do século I, participando e carregando nas costas, para a vergonha do cristianismo, o sangue de milhões de pessoas, por causa de sua visão racista e covarde em apoiar Hitler e, quando menos, de fechar os olhos para o que estava acontecendo - o terrível pecado da omissão.
Este livreto é de um Historiador cristão, Willibaldo R. Neto, Doutor em História na UFPR. Não existe aqui “passada de pano” para os pecados (e crimes) da igreja.
“Afinal, no tempo de Hitler, os alemães eram ‘um povo essencialmente de igreja’, tendo 95% das pessoas batizadas e dizimistas em igrejas católicas e protestantes. Dessa forma, fica claro que grande parte dessa igreja apoiou o Hitler, uma vez que ele, diferentemente de outros ditadores - em geral odiados pela maioria - foi ‘adorado obedecido e pontuado por quase toda população’.” P. 10.
“[Hitler] durante a caminhada política recebeu o apoio de muitos cristãos e foi até mesmo associado a Jesus Cristo por mais absurdo que pareça.” P. 11.
Neto argumenta vigorosamente contra o falatório do senso comum, de que Hitler era um louco e um monstro. Quando as pessoas dizem isso, elas erram o alvo. Para o autor, esses predicativos acabam tirando de certa forma, a responsabilidade dele. Não! Muito pelo contrário! Ele era são e normal, e, portanto, totalmente responsável pelo que fez. Não foram atitudes loucas, mas atitudes pecaminosas. Um ato da vontade. Os adjetivos louco e monstro em nada ajudam a entender a complexidade do que foi o nazismo.
Por mais estranho que possa soar, Hitler tinha grande amor pelos animais e pintou belos quadros. Passou pela tragédia de perder seu pai muito cedo e a sua mãe aos dezoito anos. As frustrações foram se avolumando desde cedo, sobretudo quando ele não conseguiu entrar na Academia. Aumentaram de modo avassalador com a derrota da Alemanha na primeira grande guerra. Hitler então se viu imbuído de uma grande missão: recuperar a glória da Alemanha e dos povos germânicos. Nele convergiram os desejos nacionais do povo alemão. E os cristãos foram seduzidos por suas ideias messiânicas.
“Hitler ‘fez realizações tão espantosas que muitos cristãos ouviam como resposta as suas orações’. Para certos cristãos, Hitler era uma espécie de Salvador, aquele que realizou o que mais desejavam, seus propósitos nacionalistas - muitos chegaram a ponto de substituir, em casa, imagens de Cristo por retratos de Hitler.” P. 24.
“Com o tempo Hitler mostrou sua verdadeira face, e inúmeros cristãos, progressivamente desiludidos, perceberam o mal que haviam permitido crescer com seu apoio, ou mesmo silêncio. Muitos despertaram e tentaram reverter o desastre, ou pelo menos sanar o mal conforme podiam escondendo judeus ou tramando secretamente contra o regime nazista.
Outros cristãos, porém, continuaram apanhando o nazismo, nos deixando uma dúvida dolorosa: ‘Por que o povo alemão, e mais especialmente a Igreja não se afastou de Hitler quando os seus verdadeiros planos se tornaram conhecidos?’ A resposta parece ser que muitos compartilhavam das terríveis ideias de Hitler, enquanto outros preferiram crer em suas promessas e se mantiveram no curso destrutivo, visando ao cumprimento dos sonhos nacionalistas. Assim como no tempo de Jesus, muitos escolheram Barrabás, uma espécie de Messias político, colocando sonho de um reino terreno acima dos valores do reino celestial.” P. 25.
Neto convincentemente argumenta que o medo e ódio aos judeus pelos alemães foi alimentado pelos antigos preconceitos, discriminação e demonização advindos do antijudaísmo medieval, alimentado pelos cristãos em geral e também por Lutero. Não há como escapar das abundantes evidências históricas quanto a isso, que envergonham a história da igreja.
“[...] evidente que o antissemitismo nazista obteve seu argumento e seu apelo emocional no antigo judaísmo cristão por mais que não se possa determinar a medida dessa influência. [...] embora antes de Judaísmo e antissemitismo sejam diferentes, estão relacionados de modo que um preconceito alimentou o outro e lhe deu forças.
[...] Hitler se valeu de uma posição que era religiosa em sua origem mas que já se tornava um preconceito racial. Com certeza foi bastante útil para ele o fato de já existir uma visão negativa a respeito dos judeus herdada da Idade Média. Certamente a oposição de Hitler é muito diferente daquela da igreja medieval, contudo, apesar de envolverem acusações diferentes, em ambos os casos há semelhanças na rejeição e demonização dos judeus, estabelecendo preconceitos que vão para além do campo religioso ou político.” P. 30-31.
Muitos detratores da religião cristã dizem que Hitler era cristão. Felizmente, quem é versado minimamente em sua biografia, sabe que isso não procede, e carece de bases factuais. O que aconteceu é que Hitler era o rei da dissimulação. O seu discurso “cristão” era convenientemente feito sob medida para atrair o povo alemão, majoritariamente, um povo de igreja. Na época havia um temor muito grande de que o comunismo adentrasse de vez na Alemanha, e já era de conhecimento público, que o comunismo soviético era implacável em sua perseguição as igrejas. O povo alemão não queria isso em seu país.
“[...] o Führer tinha duas posturas completamente opostas: em público, destacava que era católico, tendo sido batizado na infância e até mesmo se dizia defensor da cristandade no privado; entre seus amigos liderados mais próximos, debochava da fé cristã e tramava meios de eliminar o cristianismo estando determinado a extirpá-lo”. P. 36.
Como é tipico dos sistemas totalitários, Hitler usou e abusou de símbolos. O principal deles, a cruz gamada (suástica) foi gradualmente substituindo a cruz de Cristo, até mesmo em muitas igrejas. Para a “teologia” nazista, a cruz de Cristo era símbolo de derrota, visto que Jesus em sua luta contra os judeus, não conseguiu derrotá-los, sendo morto na cruz. Cabia a Hitler terminar o que Jesus começou.
“[...] Qual era a motivação por trás do uso da suástica nas igrejas? Segundo os nazistas, a cruz de Cristo seria um símbolo de derrota, e Jesus, em vez de ser Judeu, teria sido um ariano que lutou os judeus e não os venceu”. P. 48.
Para fechar o pacote de tantas distorções, mesmo antes da ascensão do nazismo, na Alemanha já se especulava a teoria estapafúrdia de que Jesus não foi judeu, mas um ariano com todas as características físicas agradáveis ao sistema racista daquela sociedade. Sendo Jesus da estirpe superior branca ariana, estava mais do que consolidado o ódio aos judeus, visto que eles o mataram. Não haveria motivo algum para considerá-los dignos de respeito, empatia, misericórdia... Com todos esses ingredientes mencionados até aqui, cristianismo e nazismo se mesclaram de tal forma que:
“[...] as suásticas nazistas ocupavam as igrejas e casas dos cristãos, de modo que mulheres cristãs se empenhavam em bordar a cruz de Cristo dentro das suásticas, dando vazão a seu desejo de mesclar ambas as coisas.
Muitos cristãos, portanto, decidiram depositar sua fé e esperança em Hitler para além da substituição da cruz pela sua suástica nas igrejas, houve, no coração de muitos, a troca da confiança na provisão de Deus pela fé na provisão do Estado nazista. As suásticas dentro das igrejas apenas refletiam a nova idolatria, como podemos ver nas palavras de Ernst Martin, reitor da catedral de Magdeburgo, em 1933: ‘Quem quer quem insulte este símbolo está insultando a Alemanha. [...] As suásticas em torno do altar transmitem esperança; a esperança de que esse dia esteja pelo menos a ponto de amanhecer’.
[...] os principais responsáveis por espalhar a ideia do Jesus Ariano pela Alemanha foram os próprios teólogos e pastores que acreditaram nela, de modo que ‘a adoração Adolf Hitler partia dos púlpitos alemães’.” P. 56.
O nazismo invadiu os ambientes eclesiásticos. O Movimento Cristão Alemão deu total apoio ao Nacional-Socialismo, colocando Hitler num pedestal quase divino.
“Em 1933, na eleição para representantes dos conselhos paroquiais da Confederação da Igreja Protestante Alemã (incluindo igrejas luteranas, reformadas e protestantes unidas), os partidários de Hitler conseguiram dois terços dos votos. Com essa, que foi votação mais surpreendente da história das igrejas protestantes, os nazistas tomaram postos no episcopado das igrejas da Alemanha, de modo com Movimento Cristão Alemão pareceu imparável, fazendo frente à igreja confessante, que se opunha a Hitler.
O Movimento Cristão Alemão tinha como grande objetivo a implantação da visão ariana dentro da igreja institucional protestante. Para alcançar isso, foi criado em 1939, o Instituto para Estudo e Erradicação da Influência Judaica da Vida Religiosa Alemã, entidade que apresentou novas versões da Bíblia, revisou hinos, mudou liturgia e, assim, procurou apagar os traços da origem judaica do cristianismo. Esse Instituto era formado não só por membros de igrejas cristãs, mas também por alunos de teologia, teólogos e pastores. Desse modo, em vez de servirem como porta-vozes da verdade do evangelho contra o regime nazista, muitos pastores e bispos decidiram ser apenas os transmissores da “verdade” revelada por Hitler. Serviram a Hitler como se ele fosse uma espécie de faraó, um deus encarnado.” P. 60-61.
Entretanto, claro que houve líderes eclesiásticos que se opunham ao regime hitleriano. Barth, Bonhoeffer e Niemöller, por exemplo. Este último lamentou profundamente a omissão generalizada da igreja frente a perseguição aos judeus. Palavras dele:
“Em 1933, e nos anos seguintes, havia aqui na Alemanha 14.000 pastores evangélicos e um grande número de paróquias (...) Se no início da perseguição aos judeus tivéssemos percebido que era o senhor Jesus Cristo quem estava sendo perseguido, atacado e chacinado ‘no mais humilde desses nossos irmãos’; se tivéssemos sido fiéis e confessado o seu nome, por tudo que sei, Deus teria ficado do nosso lado e toda a sequência de eventos teria tomado um rumo diferente.” P. 63-64.
Quanto ao papel do papa Pio XII, Neto nega que ele tenha sido o papa de Hitler, como ainda se propaga muito por aí. A história de que o papa foi conivente com as atrocidades nazistas, não passa de um mito patrocinado pela URSS. De fato, historiadores têm confirmado que, na verdade, o papa salvou muitos judeus.
O regime nazista é uma chaga na história alemã e na história das igrejas dessa nação. Para concluir, aqui vão longos trechos do livro:
“[...] Esse trauma se aplica à nação como um todo, mas de forma singular à igreja alemã, não somente pelo apoio que muitos cristãos alemães deram a Hitler, mas também porque mesmo grandes referências teológicas, que não se dobraram ao nazismo, foram marcadas pelo silêncio. Karl Barth, por exemplo, um dos grandes nomes da Igreja Confessante, teve seu tempo de silêncio antes de fazer a coisa certa, como lembrou Paul Tillich:
‘Em 1° de abril de 1933, as igrejas nada disseram quando os judeus foram atacados pela primeira vez e muitas vidas e propriedades foram destruídas. As igrejas nada falaram até que elas mesmas foram atacadas por Hitler. Essa foi uma das grandes falhas das igrejas alemãs e também de Karl Barth. Mas, logo após, Barth se tornou o líder da resistência intraeclesiástica ao Nacional-Socialismo. Finalmente, reconheceu o que antes havia negado, que o movimento encabeçado por Hitler era quase religioso e representava sério ataque contra o cristianismo’.
Karl Barth e a Igreja Confessante se colocaram contra Hitler. Porém, com o fim da segunda guerra e o término do pesadelo que foi o regime nazista, ficou o sentimento de que poderiam ter feito mais. O sentimento de que poderiam ter agido antes, ou mesmo com mais intensidade, fosse no caminho da conspiração, como Bonhoeffer, fosse no caminho da oposição teológica, relembrando a verdade do evangelho em oposição ao ódio destilado pelos nazistas. Por isso, após a guerra, Niemöller fez sua famosa declaração:
‘Quando os nazistas vieram buscar os comunistas, fiquei em silêncio; eu não era comunista. Quando prenderam os sociais-democratas, fiquei em silêncio; eu não era social-democrata. Quando vieram buscar os sindicalistas, não disse nada; eu não sindicalista. Quando buscaram os judeus, fiquei em silêncio; eu não era judeu. Quando eles vieram me buscar, já não havia ninguém que pudesse protestar.’
[...]
Essa culpa também marcou a Igreja Evangélica da Alemanha, tanto pela participação do Movimento Cristão Alemão como pelo silêncio daqueles que não fizeram parte dele. Isso fica claro na “Declaração de Culpa de Stuttgart” [...], de 19 de outubro de 1945, que afirma:
‘Por nossa causa, incalculável sofrimento foi infligido a muitos povos e nações. (...) Lutamos por muitos anos em nome de Jesus Cristo contra o espírito que encontrou terrível expressão no violento regime Nacional-Socialista, mas nos acusamos por não havermos confessado mais corajosamente, não havermos orado com mais fé, não havermos crido com maior alegria e não havermos amado mais apaixonadamente.’
Não foi necessário que alguém acusasse os protestantes alemães de serem cúmplices do nazismo, fosse por seu apoio, fosse por seu silêncio. Foi a própria igreja da Alemanha que, no fim da guerra, reconheceu e declarou sua culpa.
Antes do término da guerra, o pastor Franz Hildenbrandt (1909-1985) já havia culpado a igreja no sermão de 1º de marco de 1944, abordando o texto de Hebreus 6:6. Além de lembrar a prisão de seu amigo Martin Niemöller, Hildenbradt condenou os cristãos que perverteram o cristianismo, misturando-o com o nazismo, bem como todas as igrejas alemãs, católicas ou protestantes:
‘A traição que as igrejas cometeram contra Cristo será escrita em um livro por um autor contemporâneo; não há entre nós nenhum inocente dessa traição, ninguém que não tenha , sabendo ou sem saber, crucificado o Filho de Deus novamente e o exposto ao ridículo.’ P. 77-79.
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